Ao chegar trazia
Júlia a bagagem recheada de conhecimentos, uma autoconfiança difícil de igualar
e coisa rara em Portugal, onde a maioria é de um paroquialismo de pasmar e ao
qual Júlia contrapunha um cosmopolitismo vivido, e, para além deste, uma boa ligação profissional,
enfim um bom partido para qualquer interesseiro, não que Júlia procurasse
homem, não procurava, era mais do género de escolher um bonitão à mão e dar-lhe
ordens, ciente e convencida que estava de que os homens fugiam dela, tinha perfil
a mais para eles dizia ela.
Eu só comento ou transmito não sou de me meter na
vida alheia, o problema era ela ter tido quantos queria mas não conseguir o que
desejaria, Júlia tinha voz grossa, calçava botas, gostava de gritar ordens e
adorava ficar por cima, demasiadas particularidades, digamos antes que
demasiados predicados para qualquer garanhão luso, ou macho latino, incapaz de
suportar as esporas nos quadris ou levar para casa uma fêmea sem o freio nos
dentes.
Mas já que
esmiuçamos aqui o perfil ou a vida de Júlia, e quando digo esmiuçamos, nós
esmiuçamos, é bom que esclareça quem seja este nós, esta entidade plural e na
mesma linha e para não ficar anónimo o narrador sou eu mesmo, digamos para
simplificar que HB, ou mais singelamente H, pois não estou aqui para desbobinar
a minha história mas a história de Júlia e de outros personagens e agora sim
chegámos ao nós, nós em redor de uma mesa de café vendo a vida passar e
cuscando neste e naquele, que é como quem diz nesta e naquela, desta vez calhou
a sorte a Júlia, a sorte ou o azar, não iremos perder muito tempo com ela, a
fila é grande, enorme, e os personagens vão passando à nossa frente em
passinhos cadenciados, a maioria soma e segue, de quando em vez detemo-nos mais
tempo que o habitual neste ou naquela, ou porque tenha uma vida que colida ou
impulsione, ou interaja, agora diz-se interaja, portanto seja interaja mais com
os demais, ou porque tenha dado uma qualquer palmada, ou arranjado um qualquer
lugar à amante, à mulher ou à família, ou até, valha-nos Deus mas temos que
dizê-lo em nome da verdade que reclamamos, ou porque alguma que passe diante de
nós sobressaia da fila, é uma fila e não uma bicha, na bicha é pressuposto
alguém estar à espera de algo o que não acontece aqui, aqui ninguém espera nada
de ninguém pelo menos desde a idade média, cada um amanha-se como pode, a vida
está difícil, é impossível a cada um governar-se levando-a direita pelo que há
que arranjar sempre um esquemazinho, um complementozinho, ninguém leva a mal,
compreende-se, mau mau é a coisa rondar uns milhões, muito acima das necessidades
portanto criticável, mas debrucemo-nos sobre a bicha, perdão fila, uma bicha
traz conotações duvidosas de género e número e não queremos aqui nada disso
portanto fila, observamos a fila da mesa do café como se duma alta janela de
sacada o fizéssemos, e este por isto, aquele por aquilo, quem diz este diz
esta, até por simplesmente umas mamas de valorar, umas pernas de encantar, um
cuzinho de apreciar com mais acrimónia, é beleza, trata-se de beleza, de arte, as nossas apreciações são sempre na esfera do artístico, do louvável, do que
sobressaia dentro dos cânones estabelecidos desde a antiguidade clássica,
passando pelo rejuvenescimento do renascimento até nos determos no rococó ou
nos pormenores do barroco, e Júlia, posso garantir-vos quase tinha arrancado a
unanimidade a esta mesa não tivesse sido o revanchismo do Lopes.
É bom tipo
acrescento eu, custou um nadinha a adaptar-se à reforma mas foi ao lugar, claro
que ficam sempre recordações, dos colegas, mais das colegas, dos dias de
trabalho, do envolvimento, do stress, sim esse, o da Lusa sim, esse mesmo, o
irmão do bancário, exactamente ele era o mais novo, tal e qual, acertaste em
cheio, linda, sim, essa mesmo, casou com ela ou não sabias? Um mulherão, uma
mulher lindíssima, que eu saiba sempre foram muito felizes, exactamente dantes
era a ANOP, só mudou depois do 25 de Abril, se brinca com modelos, acho que
sim, desde gaiato que ele adorava e coleccionava modelos, tinha centenas, bem
agora deve ter milhares, modelos à escala, automóveis, carros de bombeiros, da
policia, eu sei lá, bom tipo o Lopes mas a merda é que veio estragar o perfil
da Júlia, todos a votar sim e vem ele com uma abstenção, ao menos tivesse-se
afirmado, ou sim ou sopas, ou sim ou não, e afinal a história tem uns trinta
anos, ou à volta disso, nada que justificasse o voto fora do baralho do Lopes,
passados trinta anos ainda não engoliu aquilo, mais valia ter ficado em Olhão
em vez de ter regressado, ou então ter lá deixado essas lembranças negativas,
mas não, continua o mesmo machista de sempre, sempre negou mas a verdade aí está
a ditar-lhe esta pequena vingança, razão tinha ela em não querer por nada ser
colega deste malacueco, enfim, coisas que já lá vão, esqueçamos, o que
interessa reter é o facto de Júlia ter arrancado sempre, repito e reforço
sempre, a unanimidade positiva desta mesa até há pouco tempo e já ela vai com
quarenta e muitos ou cinquenta, e agora que o Lopes apareceu como quem vem das
catacumbas é que votações tão limpinhas são colocadas em causa e o assunto gera
dissensões nesta mesa.
Sempre houve
ou haverá gente que se recuse a engolir ou a vomitar a verdade, digamos que a
admiti-la, ou a aceitá-la, o Lopes era um desses. Fora colega de Júlia escasso
tempo, escassos momentos, mas a personalidade dela deixara-o marcado para
sempre, ele não tinha pedalada para ela, e só reparou nisso tarde demais. Júlia
fora-lhe recomendada:
- Ó Lopes, vai-te aparecer aí um mulherão, uma
nova colega das reportagens, alta, boa como o milho, é francesa, faz o que
puderes por ela, colaboração máxima, e põe-te a pau, evita merdas, a gaja é
agora a coqueluche da redacção e o Peres não é capaz de lhe negar nada,
aproveita e apoia-a, faz o melhor que puderes, abraço.
Resumidamente
fora assim que a nova colega lhe fora apresentada, ou recomendada, Júlia era
nessa época efectivamente do melhor que a ANOP tinha mas pouco tempo foram
formalmente colegas pois Júlia acabaria detestando-o, enfim, uma história com
dezenas de anos...
Sucede que
acerca daquele tão bem guardado episódio da vida do Lopes como se de um secreto
segredo se tratasse se poderia dizer com alguma certeza só a Mariazinha o
conhecer, foi ela quem nos contou tão caricato episódio, com o devido cuidado e
cortesia, a fim de que o Lopes não se apercebesse da manobra não fosse ele começar a
escoicear pois não há nada mais perigoso que um macho latino se lhe trilham os
tintins.
A história, essa
mesma história tem diversas versões umas mais alarves que outras, umas mais
romanceadas, curtas ou compridas, hilariantes ou trágicas, mas no fundo andam
todas à volta da mesma questão principal, questão essa que o Lopes nega veementemente
e Júlia não confirma nem desmente. Por mim ficar-me-ei pelo essencial, pelo
básico, cada um de vocês que tempere a coisa a desejo, que a pinte cómica ou a
imagine trágica, já os gregos iam para o palco com três máscaras que o actor
mudava consoante o guião da peça, por isso não me cabe a mim ajuizar da
veracidade ou fidelidade da história que é contada há mais de trinta anos.
Estariam os
dois a beber umas cervejas empoleirados naqueles bancos altos e ao balcão da
“Choupana”, e, ou porque a sapateira demorasse a partir, ou os percebes a
cozer, ou a arrefecer, o que se diz é que o Lopes andava quente há demasiado
tempo, eu diria a escaldar como fazem às lagostas na dita “Choupana”, e terá
avançado com algum dito menos feliz ou mais mal recebido, e é aqui que a
história carece de base porque o que o Lopes terá dito, ou como ele diz, nunca
disse, é coisa que só os deuses saberão, é pormenor que nos escapa e até o
Manel da “Choupana” que os servia, não o ouviu, só a ouviu a ela e
posteriormente contou, com todas as letras, vírgulas e pontos finais, e de
exclamação, suponho, foi mais ou menos isto pois também eu, que lá não estava
fujo de apostar aqui a minha reputação, vamos a isto;
- Ó amigo Lopes,
guarda lá o tostão (ou tostãozinho, as versões divergem) e a tesão que
eu detesto gajos querendo saltar-me para a cueca, até nem és dos mais feios e
já me tinha ocorrido levar-te para a cama mas a tua precipitação e a falta
de jeito deitaram-te a perder, eu gosto de ser fodida mas com romantismo,
jamais por um qualquer galo convencido, vamos esquecer isto e ficar amigos como
dantes?
Claro que
nunca mais ficaram amigos como dantes, o amor-próprio do Lopes foi arrastado pelo
chão, ele ficou vermelho que nem um pimentão, guardou a carteira (ia pagar
quando largou o infeliz dito e ela retrucou de modo azedo) ao descer do banco
de cavalete tropeçou e quase se estendeu ao comprido, desapareceu e por longos
meses ninguém o viu na “Choupana”. Terá sido na sequência deste infeliz
episódio que o Lopes se empenhou em mudar e só parou quando o conseguiu, foi
para a Olhão, chefiar a recém inaugurada agência da ANOP ou da Lusa no Algarve
tendo regressado ao nosso convívio somente decorridos mais de trinta anos de
esquecimento em que ninguém esqueceu coisa nenhuma. Há acontecimentos que se
nos colam à pele como uma chaga, como lepra como um estigma acompanham-nos vida
fora, até ao caixão. E agora entretém-se fodendo-nos as votações…