terça-feira, 11 de abril de 2017

000426 - UMA VOTAÇÃO VINGATIVA......................


Ao chegar trazia Júlia a bagagem recheada de conhecimentos, uma autoconfiança difícil de igualar e coisa rara em Portugal, onde a maioria é de um paroquialismo de pasmar e ao qual Júlia contrapunha um cosmopolitismo vivido, e, para além deste, uma boa ligação profissional, enfim um bom partido para qualquer interesseiro, não que Júlia procurasse homem, não procurava, era mais do género de escolher um bonitão à mão e dar-lhe ordens, ciente e convencida que estava de que os homens fugiam dela, tinha perfil a mais para eles dizia ela.

Eu só comento ou transmito não sou de me meter na vida alheia, o problema era ela ter tido quantos queria mas não conseguir o que desejaria, Júlia tinha voz grossa, calçava botas, gostava de gritar ordens e adorava ficar por cima, demasiadas particularidades, digamos antes que demasiados predicados para qualquer garanhão luso, ou macho latino, incapaz de suportar as esporas nos quadris ou levar para casa uma fêmea sem o freio nos dentes.

Mas já que esmiuçamos aqui o perfil ou a vida de Júlia, e quando digo esmiuçamos, nós esmiuçamos, é bom que esclareça quem seja este nós, esta entidade plural e na mesma linha e para não ficar anónimo o narrador sou eu mesmo, digamos para simplificar que HB, ou mais singelamente H, pois não estou aqui para desbobinar a minha história mas a história de Júlia e de outros personagens e agora sim chegámos ao nós, nós em redor de uma mesa de café vendo a vida passar e cuscando neste e naquele, que é como quem diz nesta e naquela, desta vez calhou a sorte a Júlia, a sorte ou o azar, não iremos perder muito tempo com ela, a fila é grande, enorme, e os personagens vão passando à nossa frente em passinhos cadenciados, a maioria soma e segue, de quando em vez detemo-nos mais tempo que o habitual neste ou naquela, ou porque tenha uma vida que colida ou impulsione, ou interaja, agora diz-se interaja, portanto seja interaja mais com os demais, ou porque tenha dado uma qualquer palmada, ou arranjado um qualquer lugar à amante, à mulher ou à família, ou até, valha-nos Deus mas temos que dizê-lo em nome da verdade que reclamamos, ou porque alguma que passe diante de nós sobressaia da fila, é uma fila e não uma bicha, na bicha é pressuposto alguém estar à espera de algo o que não acontece aqui, aqui ninguém espera nada de ninguém pelo menos desde a idade média, cada um amanha-se como pode, a vida está difícil, é impossível a cada um governar-se levando-a direita pelo que há que arranjar sempre um esquemazinho, um complementozinho, ninguém leva a mal, compreende-se, mau mau é a coisa rondar uns milhões, muito acima das necessidades portanto criticável, mas debrucemo-nos sobre a bicha, perdão fila, uma bicha traz conotações duvidosas de género e número e não queremos aqui nada disso portanto fila, observamos a fila da mesa do café como se duma alta janela de sacada o fizéssemos, e este por isto, aquele por aquilo, quem diz este diz esta, até por simplesmente umas mamas de valorar, umas pernas de encantar, um cuzinho de apreciar com mais acrimónia, é beleza, trata-se de beleza, de arte, as nossas apreciações são sempre na esfera do artístico, do louvável, do que sobressaia dentro dos cânones estabelecidos desde a antiguidade clássica, passando pelo rejuvenescimento do renascimento até nos determos no rococó ou nos pormenores do barroco, e Júlia, posso garantir-vos quase tinha arrancado a unanimidade a esta mesa não tivesse sido o revanchismo do Lopes.

É bom tipo acrescento eu, custou um nadinha a adaptar-se à reforma mas foi ao lugar, claro que ficam sempre recordações, dos colegas, mais das colegas, dos dias de trabalho, do envolvimento, do stress, sim esse, o da Lusa sim, esse mesmo, o irmão do bancário, exactamente ele era o mais novo, tal e qual, acertaste em cheio, linda, sim, essa mesmo, casou com ela ou não sabias? Um mulherão, uma mulher lindíssima, que eu saiba sempre foram muito felizes, exactamente dantes era a ANOP, só mudou depois do 25 de Abril, se brinca com modelos, acho que sim, desde gaiato que ele adorava e coleccionava modelos, tinha centenas, bem agora deve ter milhares, modelos à escala, automóveis, carros de bombeiros, da policia, eu sei lá, bom tipo o Lopes mas a merda é que veio estragar o perfil da Júlia, todos a votar sim e vem ele com uma abstenção, ao menos tivesse-se afirmado, ou sim ou sopas, ou sim ou não, e afinal a história tem uns trinta anos, ou à volta disso, nada que justificasse o voto fora do baralho do Lopes, passados trinta anos ainda não engoliu aquilo, mais valia ter ficado em Olhão em vez de ter regressado, ou então ter lá deixado essas lembranças negativas, mas não, continua o mesmo machista de sempre, sempre negou mas a verdade aí está a ditar-lhe esta pequena vingança, razão tinha ela em não querer por nada ser colega deste malacueco, enfim, coisas que já lá vão, esqueçamos, o que interessa reter é o facto de Júlia ter arrancado sempre, repito e reforço sempre, a unanimidade positiva desta mesa até há pouco tempo e já ela vai com quarenta e muitos ou cinquenta, e agora que o Lopes apareceu como quem vem das catacumbas é que votações tão limpinhas são colocadas em causa e o assunto gera dissensões nesta mesa.

Sempre houve ou haverá gente que se recuse a engolir ou a vomitar a verdade, digamos que a admiti-la, ou a aceitá-la, o Lopes era um desses. Fora colega de Júlia escasso tempo, escassos momentos, mas a personalidade dela deixara-o marcado para sempre, ele não tinha pedalada para ela, e só reparou nisso tarde demais. Júlia fora-lhe recomendada:

 - Ó Lopes, vai-te aparecer aí um mulherão, uma nova colega das reportagens, alta, boa como o milho, é francesa, faz o que puderes por ela, colaboração máxima, e põe-te a pau, evita merdas, a gaja é agora a coqueluche da redacção e o Peres não é capaz de lhe negar nada, aproveita e apoia-a, faz o melhor que puderes, abraço.

Resumidamente fora assim que a nova colega lhe fora apresentada, ou recomendada, Júlia era nessa época efectivamente do melhor que a ANOP tinha mas pouco tempo foram formalmente colegas pois Júlia acabaria detestando-o, enfim, uma história com dezenas de anos...

Sucede que acerca daquele tão bem guardado episódio da vida do Lopes como se de um secreto segredo se tratasse se poderia dizer com alguma certeza só a Mariazinha o conhecer, foi ela quem nos contou tão caricato episódio, com o devido cuidado e cortesia, a fim de que o Lopes não se apercebesse da manobra não fosse ele começar a escoicear pois não há nada mais perigoso que um macho latino se lhe trilham os tintins.

A história, essa mesma história tem diversas versões umas mais alarves que outras, umas mais romanceadas, curtas ou compridas, hilariantes ou trágicas, mas no fundo andam todas à volta da mesma questão principal, questão essa que o Lopes nega veementemente e Júlia não confirma nem desmente. Por mim ficar-me-ei pelo essencial, pelo básico, cada um de vocês que tempere a coisa a desejo, que a pinte cómica ou a imagine trágica, já os gregos iam para o palco com três máscaras que o actor mudava consoante o guião da peça, por isso não me cabe a mim ajuizar da veracidade ou fidelidade da história que é contada há mais de trinta anos.

Estariam os dois a beber umas cervejas empoleirados naqueles bancos altos e ao balcão da “Choupana”, e, ou porque a sapateira demorasse a partir, ou os percebes a cozer, ou a arrefecer, o que se diz é que o Lopes andava quente há demasiado tempo, eu diria a escaldar como fazem às lagostas na dita “Choupana”, e terá avançado com algum dito menos feliz ou mais mal recebido, e é aqui que a história carece de base porque o que o Lopes terá dito, ou como ele diz, nunca disse, é coisa que só os deuses saberão, é pormenor que nos escapa e até o Manel da “Choupana” que os servia, não o ouviu, só a ouviu a ela e posteriormente contou, com todas as letras, vírgulas e pontos finais, e de exclamação, suponho, foi mais ou menos isto pois também eu, que lá não estava fujo de apostar aqui a minha reputação, vamos a isto;

- Ó amigo Lopes, guarda lá o tostão (ou tostãozinho, as versões divergem) e a tesão que eu detesto gajos querendo saltar-me para a cueca, até nem és dos mais feios e já me tinha ocorrido levar-te para a cama mas a tua precipitação e a falta de jeito deitaram-te a perder, eu gosto de ser fodida mas com romantismo, jamais por um qualquer galo convencido, vamos esquecer isto e ficar amigos como dantes?

Claro que nunca mais ficaram amigos como dantes, o amor-próprio do Lopes foi arrastado pelo chão, ele ficou vermelho que nem um pimentão, guardou a carteira (ia pagar quando largou o infeliz dito e ela retrucou de modo azedo) ao descer do banco de cavalete tropeçou e quase se estendeu ao comprido, desapareceu e por longos meses ninguém o viu na “Choupana”. Terá sido na sequência deste infeliz episódio que o Lopes se empenhou em mudar e só parou quando o conseguiu, foi para a Olhão, chefiar a recém inaugurada agência da ANOP ou da Lusa no Algarve tendo regressado ao nosso convívio somente decorridos mais de trinta anos de esquecimento em que ninguém esqueceu coisa nenhuma. Há acontecimentos que se nos colam à pele como uma chaga, como lepra como um estigma acompanham-nos vida fora, até ao caixão. E agora entretém-se fodendo-nos as votações…