Não
posso deixar neste momento de falar sobre o nosso mundo, mais precisamente de alinhavar umas palavras sobre terrorismo. Na realidade meditei um pouco
sobre o que dizer que não estivesse já dito, sem deixar de agradar a quem
me ouvisse (ou lesse), mantendo contudo a preocupação de contribuir para abanar
consciências porventura adormecidas, em especial aquelas que parecem percorrer
os caminhos sem se darem conta dos pormenores que os ladeiam.
Não
vou portanto falar-vos do terrorismo que quer televisões quer jornais tanto se
esforçam por quotidianamente trazer à superfície e de que vamos estando
saturados, o que não significa contudo que o terrorismo, sob outros prismas
menos visíveis, não seja também terrorismo e razão aduzida e suficientemente preocupante
para meditarmos sobre ele. Ao reportarem esses atentados constantes no presente
e no passado os mídia demonstram à saciedade os resultados do terror,
preocupam-se todavia muito menos em nos mostrar as suas causas.
São
várias essas causas e sem que pretenda defender aqui o terrorismo ou sequer
incentivar a sua apologia, é com pertinência que colocarei algumas questões
passíveis de perturbar as consciências melhor instaladas, generalizadamente
egocêntricas, porque etnocêntricas. Começo por lembrar-vos a necessidade e
virtualidades do adormecido “Diálogo Norte-Sul”, poderia evidentemente recuar
mais no tempo, mas não julgo necessário, este é um ponto de partida tão bom
como qualquer outro, para tanto basta que nos lembremos de quando tudo começou
e por que começou, tentando colmatar necessidades sentidas há muitos, mesmo
muitos anos.
A
disparidade de desenvolvimento entre o hemisfério norte, rico e poderoso, e o
hemisfério sul, pobre, subdesenvolvido e populoso, foi sempre fonte de
preocupações por via das desigualdades chocantes e das assimetrias criadas.
Porém pouco ou nada foi feito, e o que foi, como o “diálogo” atrás referido,
além de sol de pouca dura, mais não conseguiu que motivar algumas consciências
bem intencionadas e clarividentes, cujas vozes foram contudo pronta e
eficazmente abafadas ou caladas.
A
pobreza mundial, que conduz à ausência da própria esperança e a que muitos nada
tenham a perder quando perdida, pode explicar hoje o sacrifício dos “homens
bomba” na Palestina, como explicou a imolação pelo fogo de muitos outros no
extremo asiático, ou o fanatismo que um pouco por todo o globo levou ou leva a
actos tresloucados, verdadeiras bandeiras erguidas em nome de uma causa,
derradeiras e desesperadas chamadas de atenção a tantas e tão gritantes injustiças
disseminadas pelo planeta.
A
cada vez maior desproporção de meios e de riqueza entre nações cria autênticos
“guetos” de revolta, e não foi colonizando, neo colonizando e explorando
avidamente muitos dos povos espalhados pelo mundo que se lhes incutiu, nem
incutirá um espírito de partilha e compreensão pelos direitos humanos. Afinal
quem “inventou”, para quem e para quê esses mesmos direitos ? Luta-se e
lutou-se para impor modos e vontades que garantem o bem estar do Ocidente,
luta-se contra tudo e todos que ousem perturbar a nossa paz celestial, mas
quando foi que se lutou do mesmo modo para impor esses direitos, que deveriam
ser universais ?
Envaidecemo-nos
com os nossos ténis fabricados por crianças trabalhando horas sem fim por uma
côdea de pão, com jóias extraídas por quem come o pão que o diabo amassou,
bebemos pela manhã o cacau que escravos colheram para não morrer à fome nesse
dia. Perturbamo-nos com isso ? Deitamos ao lixo, para manter os preços no
produtor, toneladas de bens alimentares que poderiam saciar a fome no mundo, e
impomos nas Bolsas de Nova Iorque, Londres, Paris, Bona, o preço de bens
essenciais para nós mas produzidos por outrem no outro lado do mundo. Somos
católicos uns, escuteiros outros, mas em quantos dias da nossa vida praticamos
realmente uma boa acção ?
Em
Angola, diamantes e petróleo começam a alimentar uma guerra que irá deixar sem
pão gente cuja única ambição é viver em paz, minas ceifam vidas todos os dias
porque alguém as fabricou e com elas fez fortuna. A fortuna de uns é o
infortúnio de outros. Sinto-me incapaz perante tanta abjecção, sinto-me incapaz
e culpado, mas não inconsciente, alheado ou desencorajado para fazer algo. O
quê, na verdade ainda não sei, talvez seja bom começar por agitar consciências,
a minha inclusive, mas textos destes, se bem que muitos os possam produzir,
haverá na certa bem poucos que os queiram reproduzir.
Diz-vos algo esta afirmação ?
Onde
quer que rebente uma guerra os maus de hoje foram os amigos de ontem, tudo vale
desde que os interesses não sejam tocados, a televisão só já nos mostra o que
nos querem dar a conhecer, mas é de enaltecer que, para bem das nossas
consciências (demonstram as evidências), de há alguns meses para cá não vimos
mais aquelas crianças famélicas morrendo aos milhares todos os dias e em
directo na TV, agonizando as nossas dietas ao almoço e ao jantar,
estragando-nos a vontade de ir ao bar.
Todos
os dias surgem novos conflitos, somos como o beija-flor, esta serve, a outra
compromete. E assim uns morrem enquanto outros se divertem. A diplomacia e os
interesses tudo justificam, por isso impera por esse mundo fora o “Terror de
Estado” que ninguém contesta, ainda que o mesmo solte a besta que há em todos
nós. Sou mancebo, e mesmo agora percebi porque o sou ou inda o sou. Homem
maduro, experiente, vivido e consciente não serve como carne para canhão. Pegam
portanto em adolescentes, da realidade inconscientes, ávidos de glória e de
medalhas, corações cheios de Pátria, mentes fixas na honra e ideias tais, e que
inconscientemente avançam cegos para os cais de embarque em viagens sem
retorno. Que maior glória poderão desejar ? Uma lápide, uma memória, uma
medalha. Metralha que tralha de gente nos (lhes) despeja em cima. Quem fabrica
as armas de destruição em massa que hoje nos apresentam como ameaça e pode ser
usada por grupos terroristas, fanáticos, lunáticos, fundamentalistas,
simpáticos, apáticos, neuróticos, psicóticos, políticos, músicos,
hipocondríacos, paralíticos, míticos ?
Armas
biológicas, químicas, atómicas, intercontinentais, cuja quantidade e custos
poderiam ter terminado com a fome no mundo continuam a produzir-se a ritmos
impensáveis. O ambiente vai sendo defendido para inglês ver, o mundo só acordou
para o nazismo e o fascismo demasiado tarde, como demasiado tarde estamos a
entender ou a enfrentar o terrorismo e o miserabilismo. Gastam-se milhões na
prevenção de situações que nada justificaria acontecessem, milhões que poderiam
ser usados em cooperação. O homem é egoísta, é louco, em toda a parte vê ameaças,
em nenhum lado esperanças.
Que
é o terrorismo ? Não sei, todos somos cobaias e vitimas potenciais da cegueira que nos envolve e isso é terror,
porque é de loucos. O apocalipse pode estar perto, como próxima está toda a
desordem que o homem criou no mundo. Se todos caminhamos para o suicídio,
seremos todos loucos suicidas ? Não creio, mas negar que essa loucura existe,
negar que os caminhos que trilhamos não são os mais correctos, negar que o pior
cego é o que não quer ver, também é terrorismo. Os senhores da guerra que o
neguem.
* Texto extraído do meu discurso
de fim de curso quando da formação em “Terrorismo e Contra-Terrorismo” na
PUC-Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no ano de 1978.
Este texto (com ligeiras alterações) foi em tempos publicado no Diário do Sul.