Deambulava
por ali quando a vi, avançando calma e segura entra a parafernália ao longo de
anos abandonada pela história, a maior parte dos trastes ofuscados pelo limbo ou
vicejando tímidos sob o manto dum verdete confundindo-se com o musgo daquela
floresta de enganos onde, os canos, silenciosos e quedos, despejavam soluços enfastiados
entre as orlas duma ribeira, sem tão pouco fazerem ondas ou sequer ao menos bulirem
com sinuoso caudal correndo lento para um oceano de artifícios, acabando entre as
algas que um dia fariam parte do mesmo logro, no Mar dos Sargaços onde ela, como Moisés
sobre sarça-ardente e deslumbrante, por momentos haveria de pairar para melhor
mirar os horizontes.
Por
onde quer que passasse a denunciava um fio de água em que me apressei a pegar a
fim de a não perder, seguindo-o com extremo cuidado não fosse o dito
quebrar-se. Ténue fio através do qual ela me conduziu entre os factos da
história que vos citei, abandonados uns, para ali atirados outros, alguns
empilhados, e bem poucos com jeito de terem sido dispostos com cuidado. Nunca
tal fio de água se quebrou, porém escoava-se-me entre os dedos antes de ter
tempo de indagar onde, ou para que lado ficaria o seu princípio ou fim, de onde
partira ou pretenderia chegar.
Teimando
adivinhar-lhe a trajectória, numa dessas vezes dei de caras com solene depósito
mostrado incapaz de resistir à minha espicaçada curiosidade e, mal toquei no
ferrolho e nos cadeados que o cerravam, sentindo-me menos perdido na minha
busca confesso-vos, de uma forma algo brusca alguma coisa me invadiu,
apossando-se desta personalidade de que sempre fui cioso talvez em demasia. Todavia,
ao olhar espantado as pesadas portas abrindo-se de par em par sem que eu tão
pouco tal coisa tivesse imaginado ou sequer sonhado, senti-me realizado com tão
prosaico Abre-te Sésamo, contudo foi-me dado a ver pela fresta, inda que por escassos
momentos uma pilha de emolumentos e guias de mobiliário novo, impecável, inoxidável,
de que o futuro havia de usar e abusar por ninguém ousar duvidar de que em
potência tudo é possível ver inventado, nado ou criado, tudo esperar ou tudo
aguardar.
Em
potência tudo é possível de concretizar, todas as coisas e toda a gente terá
potencial de realização, estará ou será livre, liberto, ou poderá livrar-se,
tornar-se, salvo, independente, isento, desimpedido, licencioso, mas, há sempre
um mas, jamais a floresta permitirá ver a árvore e o potencial desabrochar de
cada alma e de cada ser pois será ou ficará ocultado pela intensa, desenfreada e densa
ramagem em redor, protegendo mas ocultando, integridade e perfeição.
Apesar
do fugaz relance com que me foi permitido espreitar o futuro lá estava ela,
pairando sorridente entre aqueles moveis puros, limpos, dominando a dimensão íntima
em que se agrupavam, não logrando apesar de tudo quais deles seriam a nossa
salvação ou perdição e, quando mau grado essa imposição me sentia já um herói
por ter gozado num vislumbre do que a todos é negado dei comigo interrogando-me,
analisando-me, intimando-me a prosseguir o caminho introspectivo do qual não me
desviaria nunca, enquanto em simultâneo o brilho do futuro me ofuscava e os graves
portões se uniram com um estrondo tal que fizeram cair ao chão essa auto-análise por
mim feita e cerimoniosamente elaborada, qual novelo cujas pontas me desafiassem
a encontrá-las dando início a severa confrontação comigo mesmo, eu herói e
inimigo de mim e a quem o virtuosismo do caracter não permite desvios, vitórias
ou derrotas, sob pena de me sentir enleado no meu próprio eu.
Enquanto
isso e como que pairando em nuvens disseminadas pelos baixios ela olhava-me
expectante, desafiante, de braços abertos como quem… Foi quando senti latejar
violentamente a artéria cubital tendo eu igualmente aberto os braços,
esperançoso que por eles se me escoasse a alma e, saindo p’la ponta do mindinho
pudesse com ela estabelecer uma qualquer comunhão ou ligação cósmica, sei lá,
deixar de ser eu e passar a fazer parte de algo maior, parte do todo que tece o
universo numa rede de relações em que o dar e o receber transita por percursos inimagináveis,
capilares, cada vez mais estreitos, cada vez mais finos, cada vez menos fios e
mais ondas cósmicas e astrais alimentando-nos o karma, dando viço à aura,
alinhando os chacras, numa espécie de telegrafia sem fios ou ondas hertzianas, abstractas,
mas onde firmemente se alicerçam as existências humanas, sempre de dedinho no
ar, qual antena parabólica apta e sedenta das vibrações que só o coração emite
no seu pulsar imagético e magnético alimentando ao longo de séculos e milénios
a hagiografia dos santos e agora nos confunde com hologramas de santas da Ladeira
neste mundo pejado de Tântalos e Sísifos, sequiosos ou padecendo de amor, amor electro correndo ou escoando-se
à velocidade da luz por cabos de fibra óptica deixando o mundo espreitando um caleidoscópio
onde um prisma muda a óptica com que observador e observado se medem, se interpretam
e interpenetram, confundindo-se, fundindo-se, destruindo-se e reconstruindo-se
.
.
Mas
não ela, não eu, não nós que apesar das tempestades e tormentas nos mantemos
hirtos, quais soldadinhos de chumbo, ou santinhos em pagelas digitais e outros artifícios
tais que não os do estar e do ser pois que, apesar do ser ou não ser ser a
questão, não duvidámos nem hesitámos um momento em estender as mãos, construir
pontes como agora soa dizer-se, e ao tocarmo-nos, ponta do dedinho com ponta do
dedinho, mindinho com mindinho, pude sentir fluir entre nós os conteúdos das
almas e experimentar-lhe a leveza, a insustentável leveza dela pelo que, antes
que me fugisse como o balão dos oitenta dias ou se demorasse como Ulisses num barco
enfunando as velas em direcção a Ítaca e Penélope, lhe atei uma guita, um fio,
um atilho, uma fita, um baraço, um fiozinho vermelhinho que contudo ou sobretudo
me segure e assegure esta de que tanto gosto, pela supina inteligência e o fino
fio de ironia que a percorre de alto a baixo e lhe permite, com inocente altivez,
caminhar no céu como fio de prumo entre moveis de pátina decapê, lavada ou
satinê tal qual uma deusa.