quarta-feira, 29 de novembro de 2017

478 - JÁ A GAIVOTA CAGOU NA BÓIA * ................


O primeiro a cair foi um graduado, não que viesse na frente da coluna mas porque por alguma inexplicável razão não retirara as divisas dos ombros tendo o dourado funcionado como um chamariz, é sabido que quando avistamos uma cobra a cabeça é a parte que lhe devemos cortar primeiro. Tombou ao primeiro tiro embora tenha sido impossível dizer com exactidão de quantos fora alvo, quando os enterrámos parecia um passador e, naquelas circunstâncias Deus só exige que se enterrem os mortos a fim dos seus cadáveres não serem profanados pelos animais.

A operação correra bem, será caso para dizer que o Senhor esteve connosco, connosco ou do nosso lado, desconhecerem o terreno foi-lhes fatal, de outro modo uma desproporção de um para três a desfavor teria ditado a nossa má sorte, mas não desta vez. Havia dois dias que os víramos e controlávamos, persegui-los e emboscá-los foi uma consequência lógica, afinal também eles nos procuravam para nos abater, havia largos meses que as aldeias do sul, uma das nossas bases e dois ou três acampamentos tinham sido objecto da sua inclemência, o assunto não ficara por agora totalmente resolvido, mas travar-lhes-ia o ímpeto antes de pensarem em nova incursão fronteiras adentro. Desta vez apanhámo-los a leste de Ruacana, vilazita onde as àguas do Cunene guinam para oeste fazendo fronteira entre a Namíbia e Angola, uma zona quente, o triângulo que fazia com Outapi e Ondangwa era um inferno e perto desta última localidade desconfiávamos haver um aquartelamento base dos sul-africanos, base de hélis e de artilharia de campanha. 

Em redor tudo “ardia”, arder é modo de dizer, a norte e a nordeste o antigo Congo Belga e a leste e sudeste a antiga Rodézia estavam em erupção, surgira o Zaire ou Republica Democrática do Congo, a Zâmbia, o Zimbabwe ("Zimbábue ou Zimbabué" em português), a sul a Namíbia onde a SWAPO era um tampão pronto a saltar sob pressão, mas Angola contava com o braço armado do ANC (African National Congress), Umkhonto we Sizwe a lança da Nação Zulu e o braço armado do Congresso Nacional Africano fundado a 16 de Dezembro de 1961 pelo ANC de Nelson Mandela e pelo Partido Comunista Sul-Africano (SACP), como resposta à opressão política, social e económica movida contra a população negra e mestiça, por sua vez neste barril de pólvora cabia ainda a citada SWAPO (South West Africa People's Organization), que por aqueles dias alinhava ao lado da UNITA, esta por seu lado e curiosamente apresentando como seu mais importante aliado, precisamente o exército sul-africano que combatíamos.

Aviões e tanques cubanos e russos aqueciam esta guerra fria, a África do Sul temia que toda a África austral se incendiasse e, sub-repticiamente apoiava os peões em jogo ou retirava-lhes apoio com a mesma rapidez de um drible em campo, aproveitando-lhes as forças e as fraquezas de acordo com interesses momentâneos. Alianças e divergências emergiam condicionando tudo e todos a todo o momento e de um dia para o outro vimo-nos acossados pela SWAPO, então unida à UNITA e esta por sua vez alvo de ricos apoios económicos e logístico/militares por parte da Africa do Sul, ciosa da manutenção do seu estatuto de apartheid, uma coisa obscena que os tempos condenavam mas a todo o custo a maioria branca tentava manter. 

O oficial sul-africano recuou com o impacto do tiro e parecia ter sido atirado para trás quando se lhe dobraram os joelhos, caindo curvado sobre eles como se fosse rezar. Antes de beijar o chão mais quatro ou cinco elementos da coluna tinham sido atirados por terra e sucumbido, os restantes surpreendidos, deitaram-se no capim baixo procurando abrigo, reduzindo o corpo oferecido às balas e a descoberto. Fizeram-no talvez no intuito de, ganhando tempo, se reorganizarem ou pensarem na retirada. Melhor abrigo que cosidos ao chão não encontrariam duzentos metros em redor e no entretanto o Pereira, um pexito de Sesimbra e especialista com a metralhadora pesada, fazendo-a crepitar e saltitar no tripé obrigava-os a manter as cabeças baixas enquanto lhes gritava:

- Não mexe ! A gaivota tá cagando na bóia seus cabrões !  *

O que quer que fizessem seria inútil, estavam condenados, o erro custar-lhes-ia caro, não se caminha em fila por campo aberto pois cercados cairão todos na mesma ratoeira, em campo aberto caminha-se em linha, uns ao lado dos outros, intervalos de vinte metros, pouco menos, poderá cair um ou dois mas não cairá a linha, dificilmente cairá, será muito improvável abarcá-la e tombá-la toda.


Dispusera os meus homens em V, com o vértice a jusante da projecção do rumo seguido pela fila de tropas da SADF (South African Defence Force), cada lado desse V não ficaria com o outro lado, onde metera todas as mulheres do grupo, na linha de mira, na linha de fogo e cobriria qualquer tentativa do inimigo, estavam cobertos, estavam encurralados, estavam fodidos.

Havia que ser rápido e fomo-lo, rápidos e eficientes, aquela coluna não trazer um transmissor nem um homem das transmissões só poderia significar estar por perto outra força mais numerosa. Esta seria composta somente por batedores, portanto tinhamos que apressar-nos, por isso nem os enterrámos muito fundo, no fim lançámos-lhes umas pedras em cima, rezou-se uma oração e estava a coisa feita, acabada, numa das sepulturas deixámos o molho de chapas de identificação, alguém as procuraria e apressámo-nos a sair dali. A qualquer momento um helicóptero poderia surgir vindo do nada, apesar da rapidez a tarefa ocupára-nos quase a tarde inteira, era muita gente mas a consciência ficar-nos ia pesando se os não enterrássemos.

Sim era a guerra, mas até a guerra tem leis, e há a ética, a moral e o caracter, há princípios, a vida não pode ser vivida numa selva.

Quase sem munições e com dois feridos ligeiros encetámos o regresso à base, seriam três a quatro dias de marcha penosa debaixo do sol arrasador do Planalto Central da Namíbia, quase tão hostil quanto o Calaári, ou então caminhávamos somente de noite, mais uma operação de busca e ataque e mais um sucesso, cumpríamos a Cartilha João de Deus, como dizia o Massumba, mostrando os dentes brancos que lhe enfeitavam a frente e na verdade tratava-se disso, cumprir a cartilha, cumprir os preceitos, aquela coluna não o fizera e agora estava toda enterrada e bem enterrada.

Isto da guerra também tem o seu quê, saber montar uma emboscada significa também saber o suficiente p’ra não cair nelas, é preciso saber, saber se há nevoeiro a levantar ou a manter-se, saber se o sol irá estar a nosso favor ou na nossa frente e encandeando-nos a nós ao invés do inimigo no momento de atacar, conhecer o terreno, saber se caminhamos na orla, no fundo de um vale ou se numa das encostas, aplicar a táctica ou a estratégia correcta se a ravina ao nosso lado sobe ou desce quando e se estamos sendo atacados ou somos os atacantes, nada disto é despiciendo numa emboscada, devemos escolher os lugares cimeiros, e nunca caminhar pelos vales mas sim no cimo das ravinas. É crucial saber dispor os homens em cada um destes cenários para que tenham vantagem sobre o inimigo e não se matem a eles mesmos, saber a cartilha é isso, saber a cartilha será a nossa única safa no meio do caos duma qualquer guerra. Naquela foi.

Saber significa ficar, resistir, durar, viver …  A ignorância mata ...


* " agora já é tarde " linguagem popular da população piscatória Sesimbrense.