Esta
é uma história de Páscoa, mas é também uma história verídica. Verdade que terá
já a provecta idade de cinquenta anos, ou perto disso, porém não será menos vera. Ao certo só lembro ter sido na Páscoa, num dia quente, radiante de sol,
uma segunda-feira, como hoje, mas dos meados da década de 70, e a esta
distância sou incapaz de precisar com exactidão, lembro somente que o 25 de
Abril não tinha inda ocorrido, se tivesse lembrar-me-ia pois
desde aí o país passou a andar em alvoroço e todas as liberdades à solta,
consentidas, usadas e abusadas.
Portanto
ponto assente, naquela tarde de segunda-feira usou-se e abusou-se da liberdade
que ainda nem havia, talvez o tenham feito com anuência, com consentimento, a
liberdade exige algo mais que naquele dia ninguém tinha, ninguém teve, e todos pisaram
essa linha ténue entre o eu e o outro que o 25 de Abril marcou, delineou,
gritou, e grita, grito a que todos fizeram e fazem orelhas moucas.
Mas
a intenção desta história não é a de pregar aos peixinhos, mais a mais sermões já ninguém os ouve, e naquela tarde eu procurara sossego, levara a Micas comigo
numa
Casal K181,uma mota bonita e robusta que adaptara a meu gosto e deitara
no meio dos mesmos arbustos em que nos acoitámos e ficámos pensando na culpa,
na penitência, na absolvição, morte e ressurreição, comendo carne claro, era a segunda-feira
do borrego bolas e tradição é tradição, é para se cumprir, mais a mais nenhum
dos dois berrou, não fosse a carne a maior tentação de todos nós.
Estávamos
nisto, falando, comendo e retoiçando quando vimos a uns cem ou cento e
cinquenta metros um grupo indistinto aproximando-se. Baixámo-nos mais ainda e ficámos
à coca. Ela era bonita, de cara e de corpo, tão bonita quão a A.P.B. e espigada
para a idade, digo como se diria na época, boa, uma bomba, uma mulheraça, boa como o milho, pernas
altas, peito cheio, e linda, sorridente, como quem tem a vida toda pela frente,
confiante, e também se chamava Ana.
Devíamos
andar todos entre os dezasseis e os dezanove, vinte, não mais, não o creio, ela
era única, viva, vivaça, tal qual a A.P.B. sei já o ter dito mas é importante frisar
quanta alegria havia naquela vida, naquele corpo, espírito, mente. E eles, oito
ou nove, ou mais, não eram muito diferentes dela, aliás notava-se à distância e
em todo o grupo o deslumbramento que na altura eu entendi mal e hoje os direi
fascinados pela descoberta da sensualidade, da sexualidade, do sexo, andavam
feromonas pelo ar e a testosterona fez daquela tarde uma loucura.
(1)
Vi-os,
de longe mas vi-os, melhor será dizer vimo-los, nada fizemos por isso mas
vimo-los, inadvertidamente deixaram-se ver, e quando demos por eles estavam possuídos
de uma alienação insensata, descontrolada, irreflectida, estavam todos endoidecidos, tudo aquilo era demais, desinteressámo-nos, era demasiado até para
a nossa ideia de amor, mesmo a de amor livre como ficou conhecida essa época
que então se iniciava por cá e assentava num slogan curioso, make love not war (1) oriundo do movimento flower power, pelo que eu e a Mica nos virámos um para o
outro ignorando o agreste e insensato mundo que nos envolvia.
Depois
fiz a tropa, mobilizações, desterros, abriladas, contra abriladas, e só voltei
a ouvir falar naqueles fulanos e naquela Ana passados muitos anos. Casara com
um deles, não sei qual o critério seguido, ou se houve critério, ou ordem
judicial, nem tão pouco se essa ordem terá caído sobre o primeiro se sobre o
último, aquilo foram todos à vez, a cena parecera-me a duma cadela no cio
rodeada de cães famintos, ou se de entre todos ela escolhera o que amava, não
deixa de ser igualmente uma hipótese válida.
Não
foram felizes, sei que não foram embora não vos saiba dizer por quê. No máximo
posso conjecturar, ele teve que gramar mas não aceitou uma mulher que foi de
todos, cagou-se na tolerância, no amor livre, parece que em casa lhe batia,
nunca lhe fez filhos. Ela perdeu o sorriso, a alegria de viver, o brilho dos
olhos, e por muito amor que lhe tivesse certamente e somente isso não a preencheria.
Tudo
isto se passou há quase cinquenta anos, ela matou-se há vinte, ou trinta, não
sei precisar, toda a história me ficou sempre atravessada na garganta como uma
espinha, fui incapaz de a engolir, há verdades que nos mutilam, e desde então,
cada segunda-feira de Páscoa é para mim um martírio.
Houve
culpa mas não houve perdão, ao invés houve castigo, ela morreu, matou-se, talvez tenha havido crime, crime
moral, crime psíquico. Quer
a matilha quer o moralista que destruiu Ana continuam cá, estão entre nós, vivos e bem vivos, este
último desnudando-se na protecção da sua casa frente às alunas da UE no outro
lado da rua, um exibicionista, um valente.
Não
sei onde querem que o país vá ou chegue com esta gente, com gente desta…
(1) Panfleto largamente espalhado pela PIDE em 1973 numa manobra de contra-informação e contrariando um idêntico, e original, oriundo dos USA, versando a guerra do Vietnam (e todas as guerras) e dizendo algo como: "MAKE LOVE NOT WAR" parecendo a mesma coisa, não o era, reparem bem.