sexta-feira, 4 de maio de 2018

APITA O COMBOIO E REGRESSA AO FUTURO*…

Estação de Évora, velha automotora sem serventia


Quando menino, merencório, por vezes ficava ali na brincadeira, depois do jogo, porque de xis em xis horas adorava ver as despedidas, os beijos, abraços e choros de quem partia, ou chegava, mas sobretudo por haver três coisas que sobremaneira me impressionavam, entre elas uma gorda sempre presente, como que ali presa, com as chaves, a corneta, a lanterna e uma bandeira verde enrolada no pau enquanto guardava uma outra, vermelha, debaixo do braço. Outra delas o mistério simples da cancela que ao abrir-se, mal a largassem voltava sozinha ao lugar de repouso como tendo uma mola, um elástico, qualquer coisa que na verdade não tinha e eu me esfalfava por descobrir, sendo a última impressão que retive e me retinha a buzina roufenha da grazine, o seu andar vagaroso, bonacheirão, o desacerto das horas a que calhava passar, contudo sempre esperada pela gorda.                                                                                                                                                                                                                                              
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Sempre a mesma mulher gorda que ali presa sem o estar ora os cumprimentava com amigável aceno, ora se desviava para que um deles descesse em andamento reduzido ao mínimo mas não chegando a parar, o homem medindo distâncias e velocidades, pondo um pé no chão e acabando numa curta corrida de meia dúzia de passos porque ao sétimo afocinhava, estendia-se e espalhava pelo chão o conteúdo da caixa marmita em folha de zinco cuidadosamente pintada de amarelo, o mesmo amarelo da grazine, o mesmo amarelo com que o meu vizinho ferroviário e reformado nas horas de ócio pinta e repinta os portões da garagem e do quintal.                                                                  
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983

Ali ficava sentado, mergulhado em solitude, olhando o sem fim da linha à esquerda e à direita, pegando-se lá longe, fundindo-se, impressionando-me e confundindo-me, como se aguentaria o comboio nos carris assim unidos, ele que passava ante mim resfolgando, assustando, nunca parando, sem vagar nem embalagem para parar. E quem diz o comboio diz a automotora, pesada, grande, sempre cheia de gente mas que embora bufando parava a horas certas no apeadeiro, pingando água, óleo, carregando e pingando gentes, de onde viriam, para onde iriam, que mundos haveria para lá do ponto mágico e misterioso onde as linhas se fundiam ?                                                                                                                                               
O comboio descendente de Zeca Afonso **


No dia dos meus doze anos senti-me confiante o suficiente para enfrentar o desconhecido, desbravar o fim da linha como quem se dispõe a descobrir o pote de oiro no fim do arco-íris ou, como o professor Pulga dizia, descobrir a magia no fim da viagem do Gama. Era manhã e avancei nascente adentro andando ao ritmo das travessas de madeira até que deslumbrado dei com a estação, um viveiro de gentes, mais linhas, mais comboios, um dia a coragem me levaria mais adiante, e levou, anos mais tarde, até o comboio me despejar no Évora, um cacilheiro enfrentando as ondas Tejo adiante em direcção à outra banda.

Ganha coragem com o nascente aventurei-me dias depois com o poente, barrou-me a altura da ponte-de-ferro do Xarrama e de onde se avistavam veados e corças na quinta do Menino de Oiro, os pomares de laranjeiras, a barragem enorme, a larga curva que a linha descrevia ao tombar para os lados de Azaruja. Desbravando caminhos estaria para mim como muitos para Maimônides quando da leitura do Guia dos Perplexos, o caminho faz-se caminhando, a luz encontra-se indo ao seu encontro, inda que eu soçobrasse em confusão e estivesse mui longe de mim o significado de racionalismo...                                                                                                                                 
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Quando abalei daquele bairro parecia-me ter passado ali a vida inteira, todavia fui-me embora no preciso dia em que caiaram novamente o apeadeiro já de si sempre branco, sempre asseado, sempre concorrido. Lembro bem esse dia por os magalas reclamarem não poderem sentar-se, estirar-se, mas na semana seguinte estourou-lhes nas mãos uma festa de cravos e, aos poucos, de eufóricos e em magotes, passei a ver cada vez menos magalas, tal qual passados anos passeando-me por ali casualmente com a Vitória esbarrei no apeadeiro sem cor, na passagem sem cancelas, na linha sem comboios, no país sem magalas, algumas linhas sem linha e em vez de comboios, automotoras ou grazines, ciclistas, peões, marchantes, atletas, corredores, andarilhos, cavalos, cães, até desportistas.                        
O monstro previsto para a nova linha Sines - Caia com passagem por Évora  


Ouvi que se preparam para reactivar a linha, agora que não há magalas nem gentes nem apeadeiro, esbarrondou, esboroou-se, como o país, dizem que serão comboios sem fim, a perder de vista, só comboios sem automotoras nem grazines, nem homens descendo à velocidade mínima, mas comboios, muitos comboios sem fim, seguindo-se uns aos outros, sem pararem, embalados à velocidade máxima, ligando o principio e o fim do mundo.

Deito a cabeça no regaço da Vitória, adormeço e sonho, sonho-nos aos dois aqui vendo-os passar, pouca terra pouca terra. Nefelibata, estico as pernas, faço rodar as estrelas das esporas na relva, o antigo oeste ainda é como sempre o pintaram, lá longe um comboio espuma fumo e espirra baforadas de vapor, apita, apita três vezes, ouvi-lo-ão e persegui-lo-ão os índios ? Bandidos já temos, estará o meu sonho andando para trás no tempo como no Regresso Ao Futuro ?

Que histórias da carochinha nos contarão agora ? Será que ao menos os ouviremos apitar ? Será que irão apitar ? Três vezes ? Será ? 


Vista da linha na direcção de Estremoz