Cansam-me os dias,
porque a rotina se instala e ninguém vê neles brecha por onde a bruma se esfume
e entre o luar da aurora. Cansam-me os dias, porque vivo em contramão sonhando
a todo o momento erguer do chão o lamento que envolveu o pensamento de um povo
que já foi capaz.
Olho o Céu, a quem
amiúde rogo que se olhe para mais longe, para lá do universo, para lá de um véu
que dilui o que de falso nos ilude. Olho em redor e confesso, que me apraz ver
que ainda há gente com coragem para resolver o que é simples e urgente, gente que
por palavras e actos escapa à vertigem voraz do que é imediato e fugaz, como um
hiato.
Constroem-se teorias
que ultrapassam Urano, mas olvidam-se soluções para o mais pequeno e profano
dos males que nos afligem. Ventos solares nos fustigam, quer à esquerda ou à
direita e enfunando toscas velas, caem por terra esquecidas, estrelas cadentes
surgidas em momentos de quimera. Jazem por terra, inanes, ídolos idolatrados
nos momentos em que, insanes os erguemos por engano muito acima dos telhados. E
quando aparece alguém cuja visão apurada enxerga mais que o instante, logo lhe
atiramos acima com o infame mais sonante.
Ergueram-se em tempos
idos os cristãos das catacumbas. Conforta saber que agora, quando horas e
promessas não cumpridas nos ameaçam com penumbras há muitos anos não vividas,
as suas palavras certeiras buscam arrancar-nos novamente do fundo de
existências brejeiras a que muitas consciências se acossaram receosas das
carteiras, temerosas dum lampejo de partilha.
E não será maravilha
que caladas há bem meio século, venham agora em arrulho mais próprio de asas de
anjos, com palavras calculadas emendar os desarranjos, que é o mesmo que dizer
que condenam os desmandos dos que, na embriaguez do calor que lhes fustiga a
soleira, esquecem todo e qualquer um que, sem eira nem beira errando, de
enganos e intrigas vitima, seja também português.
Nem ser soez é
forçoso, basta apenas ser bondoso, caridoso, consciente do mal que aflige a
gente para quem é mais urgente apontar, dizer que chegou a vez, a oportunidade
ansiada de trilhar, auspicioso, o caminho que tardava. Desvendamos, pródigos e
ufanos os mistérios do universo, incapazes de, de humanos, dar provas num
simples verso. Não são velhos do Restelo quem por aí prega de novo, são a
consciência acordada de um povo que avidamente, espera que alguém com coragem,
solde a esta carruagem o elo que está quebrado.
Vivemos só uma vida,
e nada, nada aconselha que a vivamos separada por uma antepara erguida com as
nossas próprias mãos, pois quebrada a coesão, nem ministro ou sabichão carreará
de novo para os trilhos um povo que desse nome, só tenha esquecidos os brilhos.
Olho em redor e não sei se sou eu que estou parada, ou se em todo o meu redor
tudo roda tão inerte que por tal rodar não dou. A velocidade empunhada como
flama de um progresso que na esteira inflama e queima os deserdados da sorte
(?) só tem parelha à altura da insensibilidade e rudez, com malvadez cultivada,
como destino apregoada e apontando caminhos estreitos, caminhos de um só
sentido, sem regresso nem apelo que conduzem ao cutelo, e a morte mais que
certa.
Que apareça um homem,
precisamos dum só homem, carregando as dores do rebanho, diferenciando o que é
diferente e, indiferente ao clamor dos igualitários de serviço, calma e
pausadamente trace com rigor um caminho mais suave para os viventes nesta dor
que abomino. Será tarefa ciclópica, emendar, remediar, males por si não
gerados, mas, se pecados tiver, o que em verdade duvido, certo é que em sua
honra lhe sejam todos perdoados.
Lembrando um livro
mirado donde meus olhos roubaram parágrafo sublinhado, inda lembro bem o lido;
para o autor,
infeliz, “ a vida era como se lhe batessem com ela”…
Oremos.
“ INTERVALO
DOLOROSO “ *
Tudo me cansa, mesmo o que não me
cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo
barcos de papel num tanque da quinta, com um docel rústico de entrelaçamentos
de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca
água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue.
Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê,
se o raciocínio é um esforço e quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos
banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não
possuo o da alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o
accionante [?] daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro
suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu
querê-la e se me posticia [?] de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a
uma Cousa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do
pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio
estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão
falho de gestos e de actos.
Por mais que por mim me embrenhe todos
os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho
intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas.
Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da
minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-1as durezas. Todos os
pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A (minha) vida é como se
me batessem com ela.
* in Bernardo Soares - Livro do
Desassossego
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.
Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete
Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado
Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 344.
"Fase decadentista", segundo
António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I.
Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.