segunda-feira, 29 de outubro de 2018

539 - UM OUTRO OLHAR, by Maria Luísa Baião*...


Passei um destes dias frente à Igreja de S. Vicente. Um panejão adejava levemente, a figura nele desenhada prendeu-me a atenção, uma perspectiva das arcadas da cidade, alongada propositada e verticalmente aproveitava o pano, lembrando os arcos da loggia superior de uma catedral, ou a sua nave, vista de viés. É certo que não passava de uma imagem trabalhada das arcadas da cidade, todavia, vistas sob um outro olhar.

Entrei, Évora era a personagem da história contada por Joaquim Carrapato, uma história contada pelo seu olhar de fotógrafo amador que aquela exposição credita como profissional. Ele que o não negue, a sua mestria no aproveitamento e uso da luz e da cor, dão-nos novas perspectivas da simultaneamente voluptuosa e indiferente passagem do tempo, parecendo sussurrar-nos os textos maravilhosos de Paulo Barriga, sobre Évora, e que tive oportunidade de apreciar num evento da Feira de S. João.

Este outro olhar de Joaquim Carrapato, as novas imagens por si encontradas dos velhos recantos e encantos do nosso burgo, todas elas de uma riqueza cromática inigualável, ali despidas da desatenção que quotidianamente atiramos aos pormenores, criam novas perspectivas que nos repovoam o imaginário, desconstruindo aparências, criando novas probabilidades como se de novos lugares se tratasse.
Carrapato não procura acasos, elegeu Évora para nela subverter o observado ali feito incógnita, dando novo corpo à nossa condição de voyeurs, através de nuances lumínicas novas, exteriorizando uma reflexão visual e intencional muito próprias e um sentido delirante do percepcionista calmo, malabarista no manuseio da objectiva, marcando a presença da intenção e da calma inerentes a quem comanda a mão que manuseia a máquina, oferecendo-nos um trabalho todo ele fruto de labor e da insistência de um autodidacta gentleman, roubado às horas livres do bancário cativante e simpático, todo ele e sempre um contínuo esforço ou jogo de paciências, empatia e delicadeza para connosco.

Fica mais que provado ser a fotografia o repositório da sua paixão, permitindo-nos descobrir nele uma apurada complexidade dos sentidos, redundando no encantamento transitivo de si para a imagem e para os supremos valores clássicos desta arte que por vezes aflora assomos místicos, fundindo temas, recriando novos e novas imagens pictóricas, testemunho da objectividade documental arrancada à objectiva.

Joaquim Carrapato é já um mestre nestes jogos com a luz, na graduação de cores tons e vislumbres que nos desestabilizam o sistema perceptivo para nos ciciar a intimidade do misticismo messiânico que o anima, oferecendo-nos novas e subtis metamorfoses dos mesmos lugares de sempre, através da sua criativa construção das imagens que tornam enigmático o espaço enquadrado.

Quem olhar aquela exposição não negará haver ali uma fúria de vencer a estética vigente, num esforço simultaneamente hierático e de erotismo, ao abominar a rotina, deixando descobrir uma forma muito pessoal de olhar para a cidade, descobrir-lhe a poesia e as sombras da noite.

Parabéns a Joaquim Carrapato, que, recriando memórias se vai aos poucos tornando o nosso Koda. Vá vê-lo, esta crónica saiu mais cedo para que tenha tempo para isso. A exposição está aberta até Domingo, 29 do corrente. Só ganhará com isso.


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito num Domingo, ‎a 15‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006 e como homenagem a um amigo.