É provável que todas
(os) conheçam a história do famoso capitão Ahab, figura terrível, empedernida,
que aos poucos foi ficando sem amigos, tendo o seu fim sido ditado pelo
isolamento a que se votou, a que o votaram. Julgando-se senhor da razão,
melhor, da vida e da morte, logrou arrastar consigo muitos que só por temor o
seguiam já, quais marionetas despidas de sentido e de vontade, e muito menos da
integridade que lhes devia aconselhar antes
mortos que domados.
É dos
livros, quem não leu nem imagina ter perdido a história do vilão vencido que
unicamente para o seu sonho vivia, sonho de tal modo nele empedernido que não
distinguia noite e dia, a verdade da fantasia. Gritando ordens do convés,
fazendo-se senhor da verdade absoluta e exigindo para ontem o que ordenava
hoje, achincalhando quem de entre os marinheiros ousasse estar entre os
primeiros, fez da vida uma afronta aos outros, uma tormenta tal, que só de
forma casual os elementos alguma vez chegaram a conseguir igual.
Errou
julgando-se imortal, e tanto errou que hoje só a morte lhe evitou a banal sorte
de qualquer de nós. O irascível o perpetuou, a imoralidade o transformou em
história, a falta de escrúpulos o sequestrou ao esquecimento, exemplo do que
não devemos ser, do que não devemos fazer, daquilo em que não podemos crer.
Levou
a vida perseguindo quem ousara opor-se-lhe à arbitrária vontade, tombou caindo
nas profundezas dos desígnios que desafiara. Esqueceu quão grande é o mundo e o
destino, esquecera o que aprendera em pequenino. Moby Dick a baleia branca o
consumiu em vida, se lhe tornou túmulo de algo que era maior que ele, a
arrogância desmedida, a indiferença desprendida, a malvadez feita vida.
Sabido
que é que só os verdadeiros amigos nos chamam a atenção quando temos a cara
suja, nunca houve ninguém que tivesse dito a Ahab quanto a sua precisava ser
lavada. Ahab nunca teve ninguém com quem partilhar tristezas sonhos e desejos,
muito mais que imoral, Ahab era amoral. Ahab vive entre nós, pela mão de Herman
Melville, como Dantas vive sob a pena de Almada Negreiros;“ Morra o Dantas,
morra ! Pim ! O Dantas é o escárnio da consciência ! O Dantas é a vergonha da
intelectualidade portuguesa ! O Dantas é a meta da decadência mental ! E ainda há
quem não core quando diz admirar o Dantas ! E ainda há quem lhe estenda a mão ! E
quem tenha dó do Dantas ! Morra o Dantas ! Morra! Pim !
Melville
legou-nos a saga de Ahab e da baleia branca para que possamos tomar consciência
de quanto a alma pode ser negra, Almada deu-nos o Dantas para que possamos
conhecer até onde pode ir a falta de pudor, o manobrismo, a ambiguidade, a
manipulação. Quer com um quer com outro é difícil distinguir o absoluto do
definitivo, o consciente do inconsciente, o bem e o mal, o primitivismo e a
selvajaria. São combates simbólicos entre homens e monstros numa
interpenetração entre os seres que lhes deram vida e o tempo em que a viveram.
Os
tempos são hoje outros, hoje a vida compõe-se de soluços, fungadelas e
sorrisos, com predominância de fungadelas, nenhuma de nós é tão esperta como
todas nós juntas, Melville sabia-o, Almada sabia-o, mas há ainda muito quem o
não saiba. Melville, viveu entre 1819 e 1891. A sua obra vende-se hoje aos
milhões, mas morreu pobre e obscuro, incompreendido pelos seus pares. Foi
tripulante desde muito novo em navios veleiros, cedo se tornou imediato e
depois capitão de um baleeiro. As agruras da vida e do destino levaram a que
tivesse perdido o estatuto de capitão num tempo em que a sociedade se
hierarquizava de uma forma muito rígida atirando-o para o fim da escala social.
Diz a
lenda que antes de morrer terá perguntado a quem lhe roubou a inocência “se
o queriam como amigo ou inimigo?”, consta que ainda hoje a sua alma
vagueia atormentando os descendentes de todos quantos estiveram do lado do
capitão Ahab.