Foi preciso que aquela abécula me
tivesse tirado do sério para perder a fé que tinha nos homens, não em todos os
homens confesso, pois havia uma réstia deles, poucos, cada vez menos, a quem
por empatia dava toda a minha simpatia e confiança desde o primeiro momento.
Como disse não eram todos. Era até um
restrito grupo deles, um grupinho especial, uma categoria à parte. Nem eu soube
nunca a que se devia esta minha aceitação ou abertura a quem poderia nunca na
vida ter sequer visto antes por um momento que fosse.
Todavia, desde que se chamassem
Inocêncio, Adão, Abel, Santos, Moisés, Espírito Santo, Salvador, Epifânio, Amadeu (s) Anjos, Ângelo ou Cândido, era como se
estivessem cobertos por uma aura divina que lhes permitisse franquear todas as
portas devido a um qualquer misterioso aval celestial.
Nunca me dei mal com esta minha atitude,
nunca ou quase nunca (pois não há Bela sem senão) ocasião única em que quer eu
quer o meu marido comungávamos procedimentos. Ele dava e dá toda a abertura e
confiança a toda a gente desde o primeiro momento, retirando-a se vier a não ser
merecida, eu vou-a concedendo à medida que é merecida, partindo de pouca ou
nenhuma.
Opções. Modos de ver o outro e de agir, eu
jogo pelo seguro, ele avança de olhos vendados pelo arame e já tem caído, já se
tem lixado, eu ou porque levo a mão sempre no travão de mão, ou porque não
conduzo prego a fundo estampo-me menos vezes, mas com as angelicais figuras de
que atrás vos falei nunca tive um berbicacho, a não ser c’um coitadinho cujo
apelido já nem lembro. Mas lembro o nome, Amadeu, Amadeu camafeu, que por razões que vos conto
não fez jus a quem lho deu, e muito menos o mereceu.
Dizia Einstein que idiotice e estupidez
eram a coisa mais bem distribuída ao cimo da Terra, igualitariamente distribuída
dizemos nós na brincadeira, como dizemos que o cérebro é uma coisa maravilhosa
e toda a gente devia ter um. Quer uma Quer outra premissa se aplicam que nem
uma luva a este Amadeu cujo nome não mereceu e que ainda mereceu menos a minha
concordância, simpatia ou tolerância. Nunca tive paciência p’ra gente tolinha.
Mas eu conto-vos, não vos quero ver em
pulgas como vi o Amadeu que às tantas nem sabia como estar na cadeira onde o
zurzi.
Corria 84, talvez 85, e eu já casada, já
mulher, 27 ou 28 anos, vi-me aluna deste inefável Amadeu por causa de quem até
vim a desgostar de Mozart. Dava-me música mas não me alegrava este marmelo, ou
cantava muito bem mas não me convencia, apesar de se dizer mestre em psicologia.
Eu constituíra o meu clã, a minha tribo,
o meu grupo, a minha família, e por essa altura o meu filho andaria pelos 9
anos já, indo para dez e eu qual loba solitária e ciosa da alcateia, da cria e
da vida, tinha e tive que aturar o Amadeu amador em duas cadeiras vagamente intituladas
Psicologia de Grupo, ou de
grupos, a fim de mais tarde sobreviver nas escolas às criancinhas e saber lidar
com elas. Uma idiotice pegada, e disse-o ao amador do Amadeu;
- Grupo só faço com o meu marido, tão
individualista quanto eu.
e era verdade, pelo que quer eu quer ele, meu
marido, recusámos terminantemente integrar ou integrarmo-nos num grupo. Já
tínhamos o nosso grupo, já estávamos habituados a caçar emparelhados, a ninhada
criada, há muito éramos um grupo de dois, daqueles grupos que há uns anos atrás
a Pide não queria ver estacionados nem a andar parados, como se dizia. Se não
era isto era uma coisa parecida, pensem, ou agrupem-se e meditem que eu tenho
mais que fazer.
O
trabalho exigido por ele Amadeu fez-se. Eu e o meu marido, em dois ou três fins-de-semana,
umas tardes e umas noites, garrafas de licor ou de cerveja na mesa, gelo, copos
gelados, o que é certo é a coisa se fez mesmo, com intervalos para cambalhotas
e tudo, num grupo deve haver e sobrelevar a harmonia, certamente nenhum de vós
estará contra, ficámos até muito contentes e orgulhosos do nosso trabalho mas…
Mas
quando as notas saíram o trabalho teve nota negativa, o que a juntar a outras
notas nada famosas nos ameaçava a ida a exame naquela cadeira. Fiquei tão fula
com o Amadeu que não descansei enquanto não o achei e interpelei. O meu marido só
me recomendava calma, ele que calma foi coisa que nunca teve, podem ver como eu
estaria…
Fui dar com ele, ele Amadeu, encafuado num gabinete
alcatifado, ar-condicionado, num primeiro andar do Palácio da Inquisição. Bati,
e depois de ouvir a autorização abri, para meu espanto dei de caras com o padre
José Alves chefe do respectivo departamento. (nessa
altura só padre, foi nomeado Arcebispo de Évora em Janeiro de 2008, tendo
resignado por limite de idade em 2018),.
Perguntei pelo Doutor Amadeu, com o queixo o senhor
padre indicou-mo, estava atrás da porta, a um canto, encolhido ou escondido por
uma secretária e só me lembro de lhe ter perguntado se se julgava Deus.
O belo do Amadeu começou a gaguejar e eu
aproveitei para rematar e atirar a matar. O padre José Alves surpreendido sustinha
a custo um sorriso irónico ante a barraca que se armava na sua frente. Nunca
por palavras ou gestos tentou colocar termo na desavença e tenho para mim que
gostaria tanto do Amadeu quanto eu.
O Amadeu não era Deus nem podia negar o
individualismo, o carácter e personalidade de cada um, gritei-lho. Nem eu nem o
meu marido andávamos ali para aturar melgas ou adesivos colados às nossas
costas e aproveitando-se do nosso trabalho mas não tendo habilidade para alinhavar
duas linhas. Disse-lhe que tinha já um filho em casa e não estava para aturar
os filhos dos outros nem para lhes dar de mamar ou os desmamar.
E
depois apontei-lhe o dedo, num grupo, até num grupo, mesmo num grupo numa alcateia,
numa matilha, num bando, num rebanho, há uma matriarca que ordena põe e dispõe,
ou um macho Alfa que comanda, um grupo não é nada sem um líder, sem uma vanguarda,
e ele Amadeu que não contasse comigo para engrossar o rebanho, dar de mamar aos
borreguinhos ou desmamar cabritinhos e que como professor de uma turma de psicologia de grupos que organicamente liderava
não liderava coisa nenhuma, deixando até muito a desejar ao não ter considerado
no grupo a charneira, a liderança, a vanguarda esclarecida que a dirigisse e
mais e mais e tudo e tudo e blá blá blá, o Amadeu encolhido e o padre José
Alves rindo da sova dada ao desgraçado.
- E livre-se de não me levar a exame porque
até o morderei. Onde nós chegámos, já tudo é professor universitário, onde
iremos nos acabar ?
Deixei no ar a interrogação, dita ou
gritada directamente ao padre José Alves (eu não cabia nem estava em mim, o meu
marido ria e dava-me palmadinhas no ombros, nas costas). Retirei-me com uma vénia,
desejos de bom fim-de-semana e não sei que mais.
Saldo final da contenda, no fim do ano não
fomos a exame, o que foi para ambos uma completa surpresa.
Pois não fomos mesmo, o bom do Amadeu
dera-nos a nota ambicionada, o que nos dispensou da charada.
Nunca mais o vi ou ouvi falar
dele. Vejam só a minha sorte...
*
NOTA: Hoje mesmo, ao consultar casualmente um atlas geográfico, dei com esta
crónica da minha Luisinha, manuscrita, com mais de trinta anos e que na altura
eu não quisera bater á máquina porque não quis que ela publicasse aquela
crónica, Estive entretido a bate-la durante tarde e agora sim já pode ser
publicada. Os pressupostos contra os quais eu me insurgira já não se colocam,
pelo que seria injusto mantê-la incógnita. Obrigado.