Entre operações mandriava-se, perdão, corrijo, entre missões folgava-se, o pessoal descomprimia, descansava, cuidava da manutenção das armas, bebia umas Cucas geladinhas se houvesse combustível, gerador, electricidade, frio, e entretinha-se debicando umas pitadas de sal, destressava.
A seu modo cada um buscava um entretém que lhe ocupasse as horas mortas e a mente. Escreviam-se uns aerogramas, lia-se, disputavam-se umas partidas de damas ou xadrez, cuidava-se da fardamenta e ensebavam-se as botas com especial cuidado. Uma borrega atrasaria toda a coluna, exporia a maiores riscos todos nós incluindo o seu “dono” que, para acertar a ritmo dos restantes seria colocado `a cabeça da fila, alvo da chacota e das queixas de quantos eram mor disso condicionados na marcha, na maior exposição ao perigo, enfim, um lugar que ninguém invejava, todos temiam e raramente era ocupado voluntariamente.
Por mim optei por me dedicar a esfolar todo o bicho careta que tivesse pele e estivesse à mão, não somente os que aleatoriamente caçava, ali era mais fácil o acesso a carne fresca e tenra que a quaisquer dietas vegetais, mas aproveitava todos os que me caíssem nas mãos. As peles e os escassos fardamentos militares caídos em desuso e esporadicamente oferecidos como gentileza pelo comando da província para com a sanzala constituíam quase tudo que os indígenas tinham, para vestir, para alimentar o seu artesanato, para viver. As peles bem curtidas eram impermeáveis, delas se fazendo alforges para água, sacos para o que desse e viesse, roupas, tiras para atar o necessário, cobertores, almofadas, bancos, digo pufes originais, assim a preparação e acabamento das peles fossem cuidadas desde o início.
Uma borrega não dava lã mas dava chatices que bastassem, dores e mau estar, vi feridas que viraram chagas dificílimas de curar pelo que ao chegar o sofredor ansiava descalçar as botas, tirar as meias, preparando-se para o suplício habitual em casos tais, álcool, mercurocromo ou sulfamidas, pomadas caseiras, sebo de macaco, uma ligadura de gaze e descanso, dependendo do estado em que o desgraçado chegasse. Alguns não chegavam a passar por todo este calvário, arrastando os pés, cambaleando a marcha, ora pisando à esquerda ora à direita até pisarem uma mina e pum ! Lá se ia a borrega, o pé, a perna, e mor das vezes o desgraçado todo. Não sucedia todas as semanas mas inda assim durante a minha comissão e sob o meu comando aconteceu duas ou três vezes. Só não aconteceram mais acidentes porque o castigo de ocupar o primeiro lugar da coluna os levava a ter mais cuidado com as botas que com as mães. Não tivesse sido essa exigência e muitos mais de entre nós teriam sido enterrados no sul de Angola. A título de esclarecimento adianto-vos que fora essas ocasiões em que o lugar tinha um incauto a ocupá-lo era eu quem o preenchia. Mais de noventa e nove por cento das vezes lá estava eu, dando o exemplo, transmitindo coragem e confiança aos meus homens, mas também de olhos bem abertos e orelhas escancaradas. A cabeça da coluna não era lugar para se brincar, dás umas risada, viras por uns segundos a cara, descuras a terra recém mexida na picada e pum ! Vais para o caralho feito em picado.
Foi assim, brincando e como passatempo das horas vagas que me especializei em esfolar e curtir peles. A brincar também se aprende, retira-se a pele com um mínimo de gorduras agarradas, estica-se bem e limpa-se o interior raspando-o com uma faca bem afiada, salga-se à maneira, arma-se com uns caniços dispostos em cruz patriarcal ou dos arcanjos, isto é com dois braços, e coloca-se a secar em local arejado para a ajudar a conservar e afastar moscas e respectivos parasitas que infectariam e estragariam a pele. Depois é traçar, cortar, coser com recurso a finas tirinhas da dita em vez de linhas de costura, que não há, e teremos à mão uns lindos calções à Tarzan. Tenho algumas fotos envergando um par deles, se as encontrar no baú postá-las-ei aqui para vosso deleite e para que vejam quão belo era este mancebo por volta dos vinte anos.
Hoje tudo que diga respeito a couros é comigo, sou uma verdadeira autoridade na matéria, afinal brincando se aprende e o custo, bem vistas as coisas nem foi elevado por aí além, trocámos lições de curtimenta por lições de histofisiologia, o ponto comum ? A faca, a mesma faca bem afiada que raspa a pele depois de esfolada serve para muitas mais coisas desde que a saibamos escolher e manter bem afiada claro. A ferramenta tem que ser adequada à função sob pena de não retirarmos dela a devida e esperada rentabilidade, ou rendibilidade ?
Assim sendo, uma faca ideal para raspar deverá ser muito mais pequena que uma catana mas ter a lâmina comprida e direita, apenas ligeiramente curvada na extremidade, o que ajudará na esfola e, volto a frisar, naturalmente bem afiada, afiadíssima. Muita gente não o sabe e pensará haver uma ou duas dúzias de diferentes facas, grande engano, há facas para todos os gostos e todas as funções. Ali junto ao Cunene uma boa faca era não só um objecto de primeira necessidade como de primeira ordem, não olvidemos que algumas vezes, felizmente poucas, a nossa sobrevivência numa inesperada luta corpo a corpo dependeu sobretudo da faca usada. Por mim preferia-as sempre com um pouco mais de dois palmos de uma ponta à outra, bico bicudo, ligeiramente encurvado no gume e, este ondulado dessa curva até meio da lâmina, continuando o resto a direito e toda ela sempre bem afiadíssima como já vos dissera. Acompanhava-me a coxa direita.
Há quem as prefira com um efeito de serrilha no contra gume, ideal para cortar ligamentos, músculos, ramificações nervosas, tendões, óptimas para desmembrar animais, para os desmanchar, porém éramos soldados, não magarefes, matar o inimigo que nos combate sim mas nunca desmembrámos nenhum, não éramos bárbaros, éramos sobreviventes, quem vai à guerra dá e leva lembras-te ? E se não dás levas, um tiro, uma facada, uma catanada, daí a faca sempre afiada e esquece a serrilha, a serrilha sim é dispensável, mas não descures o ondulado do gume na lâmina, é prático, ajuda-te a cortar sem te obrigar ao moroso e cansativo vai vem do serrar, para a frente, para trás. Numa luta quem se pode dar a esse luxo ? Quem está para perder tempo com isso ? Espetas no ventre do magano a faca que terás bem firme e segura na mão, forças a lâmina para cima que ela de per si e ajudada por esse leve ondulado correrá célere acompanhando a mão, o gesto e o porco ficará aberto num segundo, arrumado, não mexe mais, em segundos estará acabado, esvaído, chafurdando numa poça do próprio sangue
Se não quiseres ir tão longe ou ser tão incisivo, tão letal, podes simplesmente correr a curva do gume na barriga do porco. Se fores Dextro bastará um golpe horizontal da esquerda para a direita e tens o tipo aflito, agarrado as tripas, de qualquer modo estará no fim, pensando somente em si mesmo e encostado às boxes, implorando, chorando, por vezes chamando pela mãe e implorando perdão.
Atenção, nunca procures dar azo ao movimento contrário, isto é abrir de cima para baixo, a lâmina ficará encalhada, presa, retida no externo e será travada pelas costelas e tu exposto, desarmado. O Movimento deverá ocorrer sempre de baixo para cima, desde os tecidos moles até atingir as ditas costelas, este gesto será mais que suficiente.
Mas, toma nota, uma última lição, se procuras silenciar uma sentinela, ou acabar de vez com uma justa, e tendo tu a possibilidade de aplicar ao inimigo uma manobra de mata leão que te permita aplicar um golpe de misericórdia que cale de vez o indivíduo sem chinfrim, é enfiar-lhe a faca num rim de modo a atravessar-lhe o corpo e tocar o outro rim, ou passar-lhe pela garganta o fio da lâmina num golpe rápido apontando a carótida ou a jugular e nem piam, é remédio santo, coisa que eu não sou, inda que seja bom rapaz e um rico homem, não digo um homem rico mas um rico homem.
Isto é sapiência. Sapiência do meu mister era assim trocada divertidamente pelos segredos das peles. Na verdade de posse desta aprendizagem, em casa, calçado, casacos e sofás de cabedal andam sempre impecáveis, flexíveis e luzidios. Quanto a eles não sei até que ponto o saber de mim herdado terá sido traduzido em talento, tanto mais que regressei à metrópole antes da grande prova, da mãe de todas as batalhas africanas, a de Cuíto Cuanavale* a sul de Angola. Cinco meses de morticínio no qual pereceram segundo se calcula perto de quinhentos mil africanos. Essa grande batalha pelo poder teve lugar já depois do meu regresso, porém e como todos sabemos, “o saber não ocupa lugar” pelo que sinceramente espero que a formação por mim proporcionada lhes tenha sido de algum modo útil. Capice ?