Sebastião é um homem
simples, de parcos conhecimentos e ainda menos recursos económicos, mas com um
coração de uma grandeza que só a alma excede. Vive numa das favelas do Rio de
Janeiro e encarrega-se da limpeza e manutenção de um grande prédio de uma não
menor multinacional.
Circunscreve os seus
passeios quase exclusivamente ao caminho casa trabalho, trabalho casa, porque a
vida lhe é madrasta e quer neste percurso quer nas horas vagas, deambula por
obras e aterros garimpando ferro velho, restos das obras, mosaicos partidos,
arames, tudo que a sua imaginação torna passível de transformação.
Na favela, onde as
barracas se amontoam disputando espaços exíguos num mar de miséria, onde o
crescimento só é possível em altura desde que paus, tábuas e sobras de caixotes
aguentem o esforço, Sebastião foi paulatinamente construindo, como quem compõe
um puzzle, de que fez o seu hoby, com os restos garimpados àqueles a quem a
vida permitiu desperdícios, uma casa sólida, de ferro e argamassa, talvez a
única segurança que na vida tem.
Nessa casa, que se
foi destacando das demais não pelo tamanho mas pelo apurado sentido estético e
originalidade que Sebastião lhe imprimiu, foi expressando a criatividade
através de ousadas decorações, prenhes de inovação cromática, veros testemunhos
da sua capacidade inventiva.
Nessa obra colocou
Sebastião todo o entusiasmo e poesia, dando corpo a uma decoração fantástica, a
sublimes formas de expressão plástica e de estilo genial, a que não foi alheio
um apurado sentido estético, cuja originalidade, diversidade e riqueza o colocaram
no limite do delírio artístico.
Pelas suas
características a casa tornou-se forçosamente notada, uma nota dissonante no
meio da homogeneidade e singularidade da favela. Não se sabe como mas a notícia
da sua existência atraiu curiosos, tendo chegado mesmo aos ouvidos de quem
desconhecendo Sebastião, conhecia um mundo que ele jamais vira ou sonhara
sequer existir.
Alguém falou de Gaudi
a Sebastião, que ele prontamente esclareceu não conhecer, não ser pessoa da sua
intimidade e muito menos ter com ele qualquer comprometimento, não não,
Sebastião era pessoa séria, pobre mas honesta e nunca vira sequer ao longe esse
tal de Gaudi ...
Disseram-lhe então
que Gaudi fora um grande mestre modernista
do Séc. XX, talvez mesmo o mais original arquitecto dos últimos séculos,
que vivera entre 1852 e 1926, que se distinguira pela integração de elementos
de arte islâmica e gótica na arquitectura local Catalã, o que pôs Sebastião de
pé atrás, mais confuso ainda do que estava no início.
Lhe contaram que
também Gaudi professara uma estética romântica
(não românica), que das suas mãos saíram formas de escultura orgânica e
naturalista, que enfim, se distinguira por ser apóstolo da Arte Nova, o que só
conseguiu fazer com que Sebastião abrisse mais a boca e acentuasse o cenho.
Então falaram-lhe na
Sagrada Família, a catedral mais famosa do mundo, rica pela volumetria e
variedade de formas arquitectónicas, biológicas, vegetais e animais que apresenta,
um exemplo de crença na fé, no amor e na esperança, um conjunto vivo, modelado
pelo próprio Gaudi, que pretendeu com ela dar corpo às palavras de Cristo; “ Eu
sou a luz do mundo”.
Foi então que, a quem
praticamente nunca tinha saído da favela alguém pagou uma viagem a Barcelona,
com guia e tudo. E ao chegar, Sebastião sentiu-se menos sozinho e mais
compreendido. Não passeou como um normal turista, observou com atenção os pormenores
desprezados pela maioria e sem que alguma vez tivesse estudado ou conhecido
Gaudi, foi directo àquilo que o mestre mais vincara, afagando mosaicos,
observando ângulos, analisando cores e perspectivas.
Sebastião compreendeu
no momento que não estava só, que não era a ave rara da favela que muitos lhe
tinham feito crer, Sebastião chorou de emoção e comoção, demonstrando uma
sensibilidade que só aos grandes mestres é permitido aceder. A televisão por
vezes surpreende-nos, não consegui suster uma lágrima, só não sei se por Gaudi
se por Sebastião.
***** Texto escrito por Maria Luísa Baião por volta do ano de 2005 e nesse mesmo ano publicado no jornal Diário do Sul, coluna Kota de Mulher .