E cá
estou eu de novo mergulhado nos teus braços sem que tal imaginasse. Mal meti o
pé fora da estação de Entrecampos e tudo num repente se me tornou familiar.
Dantes nem estação havia, somente um viaduto debaixo do qual todos se acoitavam
se chovia, se havia que estacionar o carro, não passava de um terrado cheio de
pó, chovendo tornava-se lamacento, eivado de poças e contudo gaiatos ranhosos chutavam
por ali permanentemente bolas de trapo. Esse viaduto simples tem agora 4
linhas, vários
pisos, níveis, andares, interfaces para o Metro, para o Alfa, para a CP/ Fertagus, para as linhas urbanas e regionais, chegam e partem dele diariamente mais
comboios num só dia que em Évora durante um ano, porém continua o mesmo sitio
desabrigado por onde o vento rugia.
Ruge
de novo agora e com força nesta lembrança, paro, escuto, olho, há muito mais movimento
agora na Avenida da República mas tudo me continua familiar à esquerda e à
direita. Avanço pela direita rumo à João XXI e à Caixa Geral de Aposentações agora
funcionando no edifício majestoso da Caixa Geral de Depósitos.
É o
mesmo o sol que mima o Campo Pequeno, já restaurado, na vinda entro no Apolo
70, tomo uma bica e parece-me até ver o teu sorriso, ouvir o teu gargalhar se acontecia
calhar ouvires uma piada, ou qualquer outro motivo ridículo e digno de risota. Vejo
nitidamente os teus olhos vivos brilhando, os dentes brancos santificando-te o fácies,
o modo, os trejeitos, e nós de mãos dadas, agora como dantes. Na volta faço tempo, fui
despachado bem mais cedo do que esperava e depois de uma breve passagem pela 5 de
Outubro e pela Caixa Nacional de Pensões, queimo tempo até ao comboio que me
levará de regresso.
Sem
querer passeio-me ao sol e faço de novo o percurso que tantas vezes palmilhámos,
arrasto-me ao lado do que fora a Feira Popular e onde tantas vezes nos perdêramos
no tempo, agora um Central Park sem garden. Dantes o frango assado, a roda onde
de mãos dadas e tremendo de medo e emoção experimentávamos a força
centrífuga que nos empurrava contra a parede daquele poço da morte, girando sem cessar
e sem desacelerar, para logo desafiarmos o vómito nos braços de um polvo gigante
rodando sem parar e ora levantando ora descendo os tentáculos. Por vezes sardinhas assadas,
música, as mãos dadas, os dedos engalfinhados como quando no quarto que tínhamos logo ali mais
acima, ao Rego.
Está
quente o sol, caminho devagar no sentido do Campo Grande, no cruzamento da
Avenida das Forças Armadas com a Avenida dos Estados Unidos da América paro, contemplo
a estátua a que nem ligávamos e erguida em honra dos heróis da Guerra Peninsular.
Para lá dela só o Santa Maria onde cursavas, toda a nossa vida era deste lado
por isso me virei, olhei para trás em busca do lugar de hortaliça onde vezes sem
conta nos abastecemos e pela primeira vez nos confrontámos com os códigos de barras e a leitura por laser, mas também com a atenção solícita e pressurosa de D.
Guiomar, sempre olhando-nos com um sorriso maroto tal qual uma catequista sem
fé e;
- Voltem
sempre meus queridos.
e nunca nos cobrava os sacos
de plástico que cobrava a toda a gente, como se quisesse penitenciar-se da sua
matreirice.
Mas não, não perguntei por ela pois ninguém me
saberia dar novas ou velhas notícias da D. Guiomar, porque a loja, esse lugar de
hortaliça já foi, é agora uma moderna loja Dia da rede Continente, portas
automáticas, uma pipa de automatismos, ninguém ri, ninguém fala, autómatos
entrando mudos e saindo calados, é a IA, a inteligência artificial dizem, é a mesma
estupidez e ignorância de sempre, é o individualismo digo eu, a frieza dos
números e da vida nesta metrópole a que já nem acho graça, a graça e o fulgor
que tu lhe davas, por isso e ainda que fosse cedo para tal apontei ao
restaurante onde tantas vezes nos empanturrávamos. Cinderela se chama agora, talvez em tua homenagem, naqueles tempos confesso que nem o nome lhe conheci, nem tal interessava, abarrotava de estudantes oriundos do ninho de faculdades que por ali havia, e há, comia-se
bem e barato e agora nem pensar, cheio de azulejos nas paredes, luzes no tecto,
toalhas de pano, empregados solícitos e empertigados escrevendo numa máquina
quando dantes gritavam para a cozinha ou para o balcão, no fim uma outra
maquineta cobra-nos o almoço, virtualidades destes tempos virtuais.
Já
nem sei se estarei mesmo no mesmo restaurante que guardava para ti as garrafas
de Casal Garcia e de Mateus Rosê, tu que nunca as acabavas numa refeição e desse modo lhes garantias voltar, por isso eu agora só rosés e mais rosés como se tu voltasses,
pudesses voltar e eu acreditasse no que sei impossível de acreditar mas contudo
teimo, tal qual eles teimavam em guardar para ti, para nós, sempre a mesma mesa
no meio da sala, no centro da sala como se tu um candelabro irradiando luz e
animando tudo e todos com a tua alegria e os teus modos brejeiros.
E
depois do jantar o Nimas, o Apolo 70 ou o Roma, uma fita romântica, ou outras, algumas vezes o piolho no Rego, sempre na berra com a revolução Cultural de Mao e o Destacamento
Vermelho Feminino heroicizando a mulher guerreira, lutadora. Aquele verão
quente exigia muito de nós, exigiu sempre muita cerveja fresca e esqueci
quantas vezes as noites acabaram na Feira Popular e depois era comigo, apanhar
o 32 até Alcântara não sem que antes te deixasse no Santa Maria, era hora e
meia dali até ao meu destino, balançando no segundo andar do autocarro como se
na ponte do NRP Pereira da Silva sulcando os mares, os mares de cobalto tantas
vezes sulcados para te depositar nos dedos um rubi, uma esmeralda, e agora nada,
agora só um mar encapelado, hostil, indesejado, quando não um mar chão,
aplanado, liso, parado, quando ao invés e contigo estava sempre picado e tu, e
eu, e nós na crista da onda, surfando antes desta moda do surf, vivendo ao
ritmo de um país novo que se fez velho, sem graça, sem presente nem futuro,
apenas passado, foi tudo um sonho, nada passou de um sonho, de uma oportunidade
perdida, bem o dizias, tinhas razão, e dantes tudo em frente e tudo sim e agora
tudo parado, regredindo, e tudo não.
NÃO HÁ DINHEIRO, o Gaspar tinha razão, não havia
nem haverá tão depressa, fomos felizes, ainda vivemos no tempo das vacas gordas,
agora nem gordas nem magras, não há vacas, só vaquinhas e panelinhas como tu dirias,
e padrinhos e afilhados e outros depravados. Esta
democracia virou obscenidade, pior que o Ballet Rose. Olhai esta cidade padecendo
de modernidade mas morta de vacuidade, esta novel estação prenhe de escadas rolantes
subindo e descendo, máquinas automáticas para bilhetes, bebidas, doces, tabacos,
refrigerantes, camisas, digo camisinhas, acessos a metros, aos intercidades, aos
alfas, e tudo e todos correndo sem o vagar que tivemos, sem a vida tão calma quão turbulenta que levámos, sem o amor que
partilhámos.
Estás
em tudo, neste sol que me aconchega, nos passeios que calcorreio, nos lugares
onde paro, nas ruas e avenidas que percorro, nas lembranças que me acodem, nas
memórias que reavivo e contigo disputam esta manhã ensolarada em que me perco em
ti, nos lugares partilhados, nos sonhos vividos e realizados, por isso esta dor,
esta mágoa com princípio mas sem fim de que padeço, alimento e cresto, qual chaga
a que metodicamente arranco a crosta, porque só ela me liga a ti e não te quero
perder, por isso esta tortura que alimento, este silício a que não ponho fim pois
esquecer-te é perder-te e não consigo, antes
a morte que tal sorte.
Viro
para norte, traço um azimute que me levará ao Rego, à Avenida de Berna, ao muro
baixo do Jardim da Gulbenkian onde tantas vezes descansámos as pernas e demos
corda às conversas sem fim que desfiámos. Lá mais adiante a Praça de Espanha, o
largo das camionetas da Rodoviária Nacional antes das modernas estações como a de
Sete Rios, à direita o IPO, a Columbano Bordalo Pinheiro à esquerda, e a IBA,
em cuja montra espreitávamos as Hondas, depois e devagar o regresso, o Rego, o
quarto, o desassossego, o sono dos justos, o aconchego.
Quem
me dera adormecer e jamais acordar.
Esta
visita a Lisboa volveu viagem ao passado, nem vou contar nada disto à Fatinha,
decerto não iria gostar, ela que tanto me tem amado e ajudado a esquecer, a superar, a
aguentar…