684 - SOBRE O VIVER E O PENSAR by MARIA LUISA BAIÃO *
Vi-a
vasculhando um caixote, depois outro. Virava e revirava os conteúdos,
seleccionava os frascos, cujas tampas abria e, cheirando-os, com os dedos
magros e sujos aproveitava o pouco ou nada que podia. Caía uma chuva miudinha,
daquelas que não incomodando nos repassa se distraídas, a roupa e a alma.
Era
lusco-fusco, os faróis dos carros acesos, redondos, projectavam-se rectilíneos
e infindos no piso molhado, espelhado, sem poças. Não a incomodavam já os
olhares de quem passava e menos ainda de quem, como eu, sentada à mesa e à
janela, caneta e papel na mão esperando motivo e inspiração para mais uma
crónica, a olhava surpreendida primeiro, compreensiva depois.
Que
esconderiam aqueles andrajos? Aquela sofreguidão por algo que pudesse levar à
boca? Aquela quase insolência para com o tempo, o desdém por quem a olhava? Não
proíbem já a mendicidade como dantes parece, pelo contrário, estar a
democratizar-se a pobreza.
Globalizámos
a pobreza e a miséria. Não precisamos mais das imagens do Sudão, da Etiópia, de
Darfur. A globalização galopante e impante dos nossos dias coloca-nos à mesa
queijo francês, frutas tropicais, vinhos internacionais. Mas igualmente na
nossa peugada, os chacais de cujos restos os velhos e novos pobres aguentam os
dias e os ais.
São
vidas preenchidas de tédio, mergulhadas em hábitos de limos que os ventos, em
lamentos sibilantes, sopram em nossa direcção entristecendo-nos,
envergonhando-nos. Sobre os ombros um xaile coçado. Pensei ter sentido o cheiro
desse xaile.
Um
mistério naquela rua sombreada, com pouco movimento. No céu, escuro, brilharam
relâmpagos, ecoaram trovões.
A
mulher vasculhava, vasculhava, como se a sua sobrevivência estivesse em jogo. A
mim assaltavam-me náuseas, angustia. Via-a e ouvia-lhe o silêncio do esgaravatar
no lixo, a silhueta débil, como se a vida lhe fosse estreita e estranha, por
certo não lhe permitindo extravagâncias.
A
noite caía na directa proporção da mágoa que me crescia na alma. A sombra que a
mulher é agora entreolha, espreita, faz-me calafrios. Estou petrificada perante
essa sombra cujo rosto não diviso. Ela ignora que lhe invado os segredos, lhe
traço mentalmente o carreiro do destino, lhe percorro o fado. Olho-a daqui,
deste meu castelo onde habito segura. Sinto vontade de chorar. A vergonha
tolhe-me.
Que
fazer com esta sombra que se multiplica na minha consciência a ponto de
parecerem já mil, dez mil sombras, dez milhões?
Terá
alguma vez sido cliente da PT, provável consumidora da EDP, tido porventura
conta na CGD, consumidora fiel da GALP, ficado com dívidas a alguma seguradora?
Aproximo-me da sacada e vejo a rua negra e, na sombra, essa sombra que se
arrasta e ameaça dissipar-se na névoa que se espalha.
Um
vazio entorpece-me, sinto esse vazio nas ruas desertas onde, em que, a
madrugada irá mitigar esta angústia. As histórias de pobreza e de miséria
repetir-se-ão, como miragens de horizonte em horizonte e retornarão às minhas
horas atrás da janela olhando as ruas distantes, porque não as sinto já minhas
mas de uma multidão de indigentes, crescente, vindos, nados, nas prosperidades
de outras gentes que não eu, que me envergonho deste progresso que criei, que
criámos.
Aqui fiquei, assim fiquei, nesta solidão escura de minha casa onde, em
sobressalto o coração bateu. Não fugi, não reagi, não dormi, nem a vontade se
impôs contra este sobrenatural desvelo com que à valeta encostamos os novos e
os velhos.
O
silêncio quedou-me, sussurrou-me verdades nada atreitas às amenidades burguesas
de que desfruto, há muito atormentada, agora em luto. Silêncios que encobrem
esquecimentos, desinteresses, recusas. O silêncio arquitectou-me planos, deu-me
argumentos contra o sofrimento infligido por aqueles que não jogam limpo.
Silenciar este silêncio incómodo é gritar aos quatro ventos quanto sou, quanto
somos cúmplices dessas vidas que o não são, que não ouvimos, que não vimos, que
não dizem nada, nada mais do que nos conta uma expressão magoada, lágrimas,
choro, vergonha.
Olhares
sombrios de amargura, momentos tristes de vidas que o foram, agora em suplício,
em despedida, em medo, em indiferença a nós votada. Sucesso, prazer,
reconhecimento, status, graça, alegria, dinheiro, fama. Vãs glórias que não
escondem a pobreza fingindo existências surdas, mudas, cegas aos nossos olhos
bem pensantes.
“Tenho
tanto sentimento que frequente / me persuado de que sou sentimental / Mas
reconheço ao medir-me / que tudo isso é pensamento / que não senti, afinal /
Temos, todos que vivemos / uma vida que é vivida / e outra vida que é pensada /
e a única vida que temos / é essa que é dividida / entre a verdadeira e a
errada / Qual porém é verdadeira / e qual errada / ninguém nos saberá explicar
/ e vivemos de maneira / que a vida que a gente tem / é a que tem que pensar “ **
* Maria Luísa Baião, editado em 07-04-2012 no Facebook
** Fernando Pessoa – 1933 – “Sobre o Viver e o Pensar“