699 - NÃO, NÃO GOSTAVA DELA
Não,
não gostava dela, não me caiu na simpatia e cedo dei por perdido o dinheiro dos
dois ou três livros dela que, numa entusiasmada expectativa comprara num
impulso onde se misturava a solidariedade, o apreço, o reconhecimento pela obra
de uma vida, e o individualismo interesseiro em passar regalado algumas horas
debruçado sobre a sua poesia.
Começaram
sendo mastigados à força, aquilo saía dos cânones, não era poesia não era nada,
era uma mistura ecléctica de recordações e pensamentos dispersos dificílimos de
entender e mais difíceis ainda de deglutir.
Mas
de tanto teimar e tanto mastigar acabei ruminando a coisa e, gradualmente
foi-se fazendo luz, aos poucos fui entrando no seu espírito, compreendendo o
seu ponto de vista, ou pontos de vista e, o que me parecera inicialmente uma
floresta desordenada começou aos poucos surgindo como um daqueles olivais
intensivos (esses sim sem graça) que agora se vêem muito pelo Alentejo, e os
seus poemas ordenados, com sentido, quais soldadinhos de chumbo alinhados na parada,
petingas enfiadas num palito.
E
então, comecei a lê-la com gosto, como quem degusta um bom petisco, sentado na
cadeira de repouso da varanda, numa mão o livro, a devoção, na outra uma
cerveja fresca fazendo fluir a função, página atrás de página, golada atrás de golada,
e assim foi degolada a aversão que lhe tinha e, agora, conheço-a desde menina
porque ela me conta cada medo, cada pensamento, cada sentimento vivido.
Vejo-a
nitidamente, desfiando um rosário que aperta na mão e passa mágoa a mágoa, trauma
a trauma, desejo a desejo, numa inaudível e inconfundível voz poética com que
me grita quão lhe pesa e a fere o tormento da existência individual e do livre arbítrio.
Mudo
de livro, tenho vários dela, agora já redimido de mim, vogando na austera beleza
com que ela, Louise Glück, teima contar-me no seu modo quão a beleza tem de universal,
e me ilumina verso a verso os mais ínfimos aspectos da natureza, aspectos em
que eu jamais me concentrara e agora, milagre, foi como se alguém me tivesse
dito:
- Ergue-te,
e vê.
A sua
poesia fala, e fala-me numa voz doce e de um modo franco e triste de quem
passou a vida isolado, isolada, e os seus poemas tornaram-se-me secretas expressões
do seu viver e sentir, estrofes duma experiência que me quer transmitir e, á
noite, deitado na cama e antes de adormecer, eu que adoro a história ouço-a segredar-me
dos mitos de outrora numa intensidade emocional que há muitos anos não sentia,
melhor dizendo, não sentia desde que criança a minha avó Inácia, que me contava
contos à lareira, ia depois pé ante pé ajeitar-me a roupa junto do pescoço,
para que o frio não entrasse nem o calor saísse, pensando que não a via ou
ouvia, quando eu, nem adormecia sem sentir o seu aconchego, por isso, Louise
Glück não me conta dos mitos, conta-me contos.
Que mais vos posso dizer ? Que ouçam a poesia, que a natureza assim flua em vós como o sangue nas veias, o pensar no cogito, a beleza na alma, como vinho que ascende ao espírito.