Terminámos
a Quaresma, período litúrgico significativo pelo que comporta em si. Período de
reflexão e preparação para a Páscoa, período que nos deve levar à introspecção,
ao recolhimento, à austeridade, especialmente à contenção nesta sociedade de
consumo onde nos atolámos.
Período que nos deve levar igualmente à solidão, tão necessária para repensar o homem e a vida, o outro, o próximo e, naturalmente a frugalidade, o jejum, mas também a superação de nós mesmos. Jesus não se retirou para o deserto sem comer por quarenta dias e quarenta noites antes de iniciar a sua vida pública ? Quaresma é sinónimo de jejum, de abstinência da carne, de mortificação, de caridade e de oração.
O homem
vive rodeado de tentação, de tentações que não o engrandecem, antes aviltam, a
igreja nunca soube fazer entender ao seu rebanho quanto perigo se esconde
nestas tentações, no aviltamento a que o rebanho se deixou e deixa reduzir e o apequena,
a apequena.
É um
caso de perfeito divórcio entre doutrina e prática, entre a teoria e a práxis
consentida, permitida, diria mesmo convidativa, manipuladora, sedutora, mas
jamais redentora, redentora ou demonstrativa da superior racionalidade do homem.
Quaresma
é esforço, rigor, e um apelo à conversão, um convite a que pensemos e mudemos
em nós o que está fora do preceito cristão e racional, o que cai fora do âmbito
da dignidade humana, dignidade pela qual tantos homens têm lutado e tombado
antes e depois de Jesus, ele próprio cordeiro no altar dos sacrifícios que deviam
remir todas as nossas faltas. Respeitemo-lo pelo menos, mas lembremos também a
sua redentora travessia do deserto, redentora e purificadora.
Os
tempos actuais deviam levar-nos a pensar melhor a Quaresma e a Páscoa, pois
atravessamos tempos agitados em que a liberdade de expressão é posta em causa e
se torna opressão e manipulação em vez de informação e libertação. Quando a emoção
se sobrepõe à razão e a guerra mobiliza mais o homem que a paz, é caso para que
nos interroguemos se não deveríamos pensar durante quarenta dias antes de agirmos.
A
tradição cristã é uma regra normativa confluindo para a paz e a concórdia entre
os homens, e é-o para todos os homens, mesmo para os não-cristãos, mesmo para
os agnósticos, mesmo para os ateus, todos estes porventura até mais
necessitados por não encontrarem com facilidade quem lhes aponte algum caminho
mais indicado para ser trilhado, percorrido e cumprido para o bem de todos.
Os
mandamentos de qualquer fé são sempre universais, mas nunca obrigatórios, há
caminhos que temos ou devemos percorrer por vontade própria não por Imposição.
Ser cristão é percorrê-los mesmo que não aceitemos a submissão a essa ou a qualquer
outra doutrina.
Ser
homem é ser herdeiro de uma tradição que se estende das catacumbas aos nossos
dias, ser homem é acreditar que todos somos irmãos, que todos somos
descendentes do mesmo mar, não por acaso Santo António pregava aos peixinhos, não
por acaso todos temos uma espinha, uma primordial espinhal medula, uma coluna
espinhal. Não por acaso o símbolo dos primeiros cristãos após Spartacus (109 ac
– 71 dc) foi o peixe, o desenho de um peixe que um bordão iniciava traçando-o
nas areias de qualquer chão e outro bordão completava identificando assim secretamente
os irmãos entre si.
Hoje
todos somos irmãos todos conhecemos o mistério da nossa origem. Mas
conheceremos o nosso destino comum ?
Quaresma,
Páscoa, tempos de dádiva, entrega-te.
Depois
da ressurreição e antes de subir ao Céu, durante outros quarenta dias Jesus
instrui os seus discípulos nos mistérios e quesitos da dignidade, faz tu o
mesmo em relação a ti próprio e, num recolhimento íntimo, pensa-te, ajuíza-te,
avalia-te, e age.