"Pintura de 1962 por Walter Moinho... Título: 'A vida em 2022" |
Entalados
entre a espada e a parede, confinados, extremados e de ânimos exaltados
entreolhámo-nos, como dois cínicos, cada um ciente da sua verdade. O convívio
obrigatório despia-nos sem contemplações por isso nos mantínhamos ambos de pé
fincado, para não cedermos. Não nos olhámos como dantes, felizes, embevecidos e
arrebatados. Desta vez entreolhámo-nos prenhes de animosidade, porque não já
aquela vontade de nos olharmos nos olhos, como quando neles a esperança, a paz
e a harmonia do mundo. Sim, desta vez foi com o pé fincado, na certeza das
certezas absolutas, na firmeza de convicções inabaláveis, como se o mundo fosse
ainda um lugar nosso, onde a nossa voz valesse e, ambos cegos, cegos ao facto
de o mundo nunca ter sido nosso nem alguma vez vir a ser. O único mundo que
criáramos e tivéramos fora aquele do qual agora abrir mão nenhum queria,
convictos de certezas que só o eram ou foram, enquanto durou aqueloutro mundo
nosso, que pacientemente construíramos e que na cegueira do momento julgávamos
inquestionável, inevitável, eterno.
Conta
a lenda que Berenice, rainha do Egipto e conhecida pela sua beleza e encanto,
terá oferecido aos deuses, em troca da vitória dos seus exércitos, a formosa
cabeleira que a animava. Afrodite terá ficado deslumbrada com a beleza desses
cabelos, levando-os egoisticamente para o céu, com os quais passou a deleitar-se.
Ora discutindo ora discernindo, ora ainda revivendo lendas e contos antigos e
antiquíssimos para matar o tempo, assim nos ocupávamos por vezes pois adoro as
lendas clássicas tanto quanto as detesto, dependendo do fruto das suas fruições
ou dos pesadelos que me provocam as suas lembranças. Não é a mesma coisa
vivê-las, digo sonhá-las, ou submeter-me ao seu tormento.
Por isso hoje estou
magoado, não zangado ou ressabiado com quem tantos momentos únicos me prendou.
Qual Medeia, a bela, também Berenice, que me alimentou sonhos e ilusões, vi
transformada em fonte de sentimentos tão belos quanto contraditórios, senão
mesmo cruéis. Cada quezília extremava-nos e afastava-nos sem que déssemos conta
de tal. Eu fumando cigarro após cigarro, pegando num livro para logo o largar
porque sem interesse ou tentando outro e a mesma sorte, manuseando os CD’s, e
nenhum me agradando e arrasando os nervos com este silêncio ensurdecedor que somente
a tua lembrança atenuava, e já que não eu, que pelo menos tu tenhas encontrado
uma solução porque eu não e me flagelo pelas certezas que tinha e eram minhas
quando afinal nem certezas, e agora só dúvidas.
Fumando
e bebendo, quantas vezes fumando o que há muito não fumava entregava-me a um
ostracismo por mim mesmo fomentado embalando em sonhos que me consumissem o
tempo, desta feita numa ventura iniciada numa fortaleza sobranceira ao mar e
que em Mil Fontes, estirado numa esplanada e sorvendo um café forte adorava
imaginar então, e lembrai ser eu do tempo em que os animais falavam,
imaginar-me dizia eu, seduzido pela beleza da paisagem e pelo mar azul anil,
por ali me ficando a metade do ano em que nos pólos faz frio e no equador calor
em demasia. Não só por isso me avezei àquele lugar banhado por águas tépidas
onde nenúfares perfumam o ar e servem de leito a dezenas de sereias que, como
eu, fugindo dos rigores gelados ou cálidos de seu mundo ali passam igualmente o
período estival. Entre elas, uma teve o condão de me encantar com o seu canto. Loira,
de uma beleza ímpar até para sereias, cabelo caracolado, pareceu-me trocar há
séculos comigo insuspeitos e cúmplices olhares e intenções, tendo eu num dia de
fumo mais intenso chegado a julgar ter ela deixado livre para mim um dos muitos
e gigantes nenúfares onde se espraiava, tomando sol, cantarolando, dizem que
atraindo com o seu canto, depois do poente, navios e marinheiros.
Pareço
um condenado quando saio às compras, evito até passar nas ruas que calcorreámos
por temer-me e à reacção que poderia ter, nem sei qual, se voltar a correr para
ti e abraçar-te, olhando-te quedado, estático, falando perdidamente ou se
ficarei incapaz de mexer-me, como se num sonho mau acometido por um touro, as
pernas recusando mexer-se, eu assustado, temente, acordando em sobressalto no
momento do impacto, mas quando finalmente exalo a baforada, paralisia nenhuma,
touro nenhum, apenas eu e o meu medo de enfrentar o touro, a ti, a mim, por não
saber que fazer, por ignorar como emendar os meus erros, como voltar atrás no
tempo, emendar a mão, arrepender-me ante ti das minhas faltas, das nossas
faltas, não te culpo, também as tuas assumo, não o seriam se eu não me tivesse
atravessado no teu caminho e, quero ver-te sorrir de novo, esse sorriso rasgado
e contagiante, o teu cabelo ondulando ao vento, os olhos como contas de vidro,
novamente vivos, vivaços, para que eu finalmente redimido possa dormir,
descansar deste enervante esgotamento que me consome, deste isolamento que me
enlouquece e de novo os dias alegres me encantem. Muitas vezes sonho com o avô
Palma, os dois deitados numa esteira olhando os céus nas noites calmas de verão
em que olhávamos as estrelas. Entre nós dois uma “Galena” com a qual me seduzia
e entretinha girando um botão, enquanto me pedia que colasse a ela o ouvido,
isto é, que ficasse atento.
-
Escuta esta, Sidney, deve ser a Rádio Antípodas, falam muito mas passam pouca
música.
e eu ia “vendo” o mundo
rodar à medida que ele girava o botão, como quem rodopia nas mãos um globo
terrestre, pelo que cedo me familiarizei com os tangos argentinos e os
pasodobles espanhóis, as rumbas cubanas, o samba brasileiro e, numa dessas
noites estreladas, milagre dos milagres, deitados os dois na esteira estendida
no quintal repentinamente ele:
-
Olha ali Bertito ! Ali vai ele ! Vês aquele pontinho brilhante entre aquelas
estrelas e voando de este para oeste ?
e entre nós o rádio numa
cadência matemática, bip bip bip, anunciando novos mundos ao mundo e calando em
Nova Iorque os Blues, o Jazz e o Charleston que nessa noite o avô Palma não
conseguia sintonizar ou ouvir de modo nenhum. O meu avô Palma era telegrafista
mas amava a rádio, coisa que por magia dispensava os fios, chegava mais longe,
mais depressa e até os americanos do Check Point Charlie a usavam para
namoriscar e seduzir, aliciando através dela os comunas do outro lado da
cortina de ferro para que viessem viver para o paraíso. Hoje, ultrapassada que
está a guerra fria em que lutou, sabemos que o paraíso, ou o inferno, moram de
ambos os lados e vivem em conúbio.
Para
além do Sputnik, um caso raro, uma excepção como disse o avô Palma, o normal
era olharmos as estrelas e muitas vezes levado por ele me vi vogando nos céus
tão feliz quão Aldebaran, imbuído de honras e riquezas tais que nesses momentos
também eu experimentei grandiosos e radiantes sentimentos e, como ela, a
sensibilidade de um brilho ofuscante, em muito superior ao de Betelgeuse, essa
sim, conhecida pela sua grandeza, brilho e eterna duração. Como poderão ver, eu,
como toda a gente, tive momentos que, mesmo oníricos, foram de uma beleza e
felicidade ímpares. Não serei único, como não serão exclusivos meus
adversidades, frustrações e desilusões, comigo, com a vida, com os demais, com
não sei quem que entendeu confinar-me a estas quatro paredes, não faltando
muito para que comece a bater com a cabeça nelas.
Dirão
ser a vida, e como soa ouvir-se, o que não nos mata fortalecer-nos-á, contudo,
e parafraseando um ditado da minha terra; “ elas não matam mas moem”. Porém estou
a desviar-me das minhas divagações, sobra-me tempo, estou fartote de ler e já
deito a música de que gosto pelos ouvidos por isso recosto-me na
espreguiçadeira e volto ao meu sonho, ao meu sonho e a Berenice, a tal beleza
extrema que só nos sonhos acontece, a exemplo de Aquiles o belo, que banhado no
rio Estige quando criança, se terá tornado invulnerável à excepção do calcanhar
por onde lhe pegaram para o banhar, e por onde teria entrado a seta envenenada
que anos mais tarde o mataria... Refastelado na espreguiçadeira da esplanada de
Mil Fontes vi passar ao longo dos séculos naquelas águas calmas e prateadas,
navios negreiros, navios piratas e muitos, muitos outros carregadinhos de café…
E em cada carregamento o aroma forte do café tornar este retiro acolhedor, no
mínimo suportável, provocando em mim o desejo quando, desta fortaleza de
Odemira, vejo as luzes refulgindo e o destino me traz à memória essa sereia. Espero-a
e, enquanto tal entretenho-me imaginando os oceanos lindos por onde anda,
espero-a e sonho percorrer com ela esses mares para mim enigmáticos, espero-a e
recordo-a em cada lufada carregada do odor forte de café que até mim chega. O
café bem quente pela manhã ajuda-me a quebrar nostalgia e monotonia a tal ponto
que julgo ver nessas águas azuladas, nesse mar de índigo ou anil, um lago lindo
donde ela emergirá, mais bela que nunca, mais sedutora que nunca. Ela linda, eu
feliz a seu lado, eu feliz como jamais estivera, como há tanto tempo...
Sim,
há tanto tempo, demasiado tempo por isso agora queria ao invés deste
recolhimento a que me obrigo ver de novo brilhar o sol e novamente um sorriso
feliz afivelado nesta cara onde durante tanto tempo se manteve. Depois, e por
nos termos entreolhado como dois cínicos cada um ciente da sua razão, nos
perdemos quando afinal era acharmo-nos que deveríamos. Saturados, procurámos
mas perdemos a harmonia do mundo de que estamos isolados sem nada de novo ter
sido encontrado, apesar das razões, apesar da razão, que já não me importa, nem
quero nem aceito, e na qual deixei de crer como irrevogável, infalível, pois
tanta razão nos opôs e perdeu, pelo que agora só aspiro a achar-te de novo e
contigo adormecer.
Por
isso recordo como se ontem, como se hoje, o canto harmonioso, as palavras e os
modos de Berenice essa deusa marinha, a sua delicadeza feminina e
simultaneamente diáfana. Sonhando-a sonho no mar e numa tarde de solstício, o
seu olhar, os seus olhos, o seu sorriso, beijos e carícias. Desejos meus,
fantasias, alucinações, o seu corpo jovem, o odor a mar, os seus cabelos nas
minhas mãos, ela nas minhas mãos e eu, no azul tépido e escuro daquelas águas
cativado por tanta ternura e pelos seus seios cheios, túrgidos, lindos,
excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga… E eu, velho de séculos, tombando
a cabeça para o lado e adormecendo. Sei-a de cor, ainda hoje a sei de cor... Certamente
por isso jamais um café sem que a evoque, sem que nos lembre.
Esqueço-me de o
beber olhando-o, mergulhado no estranho silêncio da cafetaria fechada, tudo
fechado, vogando como autómato na cozinha, ligando a máquina automática, uma
cápsula, um momento, um fio fino e indolente de café, eu automaticamente
desligado do tempo infindo em que perduro, até o beber frio, e se frio… não me
queixo, há cafés e cafés, depende do que nos recordem, e então sim, uns sabem
bem… outros a nada, outros ainda a saudade e a ausência, a desejo, a ansiedade,
a tormento. E tanta coisa nos diz um café, um espelho de água, nenúfares, e
jamais me ocorrera tanta coisa pudesse caber numa chávena de café… todo um mar florido.
Chove
torrencialmente, da janela a rua parece-me um rio caudaloso e de novo embarco
na enxurrada sonhando Berenice banhada nas águas do rio Ingá, delas saindo
risonha, feliz, um sorriso contagiante acompanhando-a a vida inteira. Sonhos
são mesmo assim, num minuto o surgimento de Berenice nas águas desse rio que as
flores dos Ipês roxos sagram, no minuto seguinte o seu corpo moreno
retesando-se na brancura dos lençóis, tensa, bela, esbelta, olhares e unhas
cravadas em mim, as coxas quentes rodeando-me a cintura, sôfrega, ávida, suada
devido à intensidade e calor do momento. Suado eu, igualmente vogando no
Olimpo, utopias e idílios, fantasias e propósitos, ficções devaneios e quimeras
saboreadas na saliva que se funde, nas línguas que se abraçam e, as peles
húmidas como húmido tudo o resto, na vacuidade do momento, no instante em que
as suas coxas num desafio me rodeiam, abertas, oferecidas, refúgio, abrigo,
consolo e êxtase que a circunstância num ápice transforma de princípio e meio,
em fim.
Minhas mãos envolvendo os seus cabelos lindos reparam sobressaltadas
que não têm nelas Berenice, nem Medeia, mas ternamente afagam a cabeça de
Medusa, cujos cabelos volvidos serpentes me causam repulsa e sobressaltado, me
acordam deste sonho transformado em pesadelo, do qual recuo em rejeição e
recusa, revoltado, magoado, retiro forçado do qual não me evado sem que,
petrificado, inexplicável e surpreendentemente apresado, esqueça tantos e todos
os sonhos sonhados ainda vívidos em mim e esta prisão me frustre a vida, a
ilusão, a esperança, eu. Nesse mar eu, ela e todo aquele dia dentro… banhados
nas águas do seu mundo. Como de outro modo poderia tal acontecer senão numa
chávena de café ?
Uma memória e é quanto basta para despoletar quaisquer reminiscências dignas de serem lembradas, e
fico olhando o fundo, não as borras que as não tem mas o fundo, o resto do café
bebido, e vejo-a reflectida em cada chávena, sorrindo-me, recordando-me o
melhor dela. Como não o melhor se não lhe conheço defeito, apenas a beleza
etérea, diáfana… o sabor a salmoura dos seus beijos… o calor das águas em que
nos banhámos, o fulgor do céu que nos cobria, a profundeza do mar em que nos
atolámos… Já me habituara a pedir café resguardado num canto do balcão do bar,
longe de olhares, longe do bulício da multidão, para agora ficar na cozinha,
estático, sonhando-a, recordando-a, amando-a numa chávena de café… amando-a
sentada numa máquina de lavar centrifugando tão rápido quão o meu pensar nos
pensa. Confinado, liberto-me embriagando-me, e embriagado divago num mar de
recordações, aspirações e desejos. Estarei lúcido ? Estarei sóbrio ? Será
possível ?
Repartimos
as mais pequenas tarefas na vã tentativa de quebrar a monotonia, o agastamento
e a saturação mútua que insidiosamente se instala e recordamos novos ou velhos
episódios que tenham tido para nós algum significado por mais pequeno que seja.
Foi quando lhe contei que tempos recuados ela se cruzara comigo e não me vira.
Passas-te rápida, como sempre foste, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo
sequer para ti, sem tempo para os outros... Não te teria visto não tivesse sido
o brilho radiante dos teus olhos, grandes, pestanudos, belos. Lembras-te ? A
séculos de distância dificilmente te lembrarás tanto mais que nem me viste. Mas
os olhos, lembras-te quando brincava com a beleza deles, a que eu meigamente
chamava as minhas contas de vidro ? Não lembras. Se calhar mais ninguém alguma
vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu
brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito
adquirido, tornado hábito, vulgaridade.
Recordo-te indiferente quando chamados
à baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me
exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo
ainda, inocente mesmo. A máquina de lavar interrompeu a centrifugação, mas não
parou ficou rodando devagar, silenciosamente. Olho-a sem a ver mas o seu
movimento hipnotiza-me e recomeço divagando. Queria beber com ela cada café da
minha vida, e tantos dias p’ra viver ainda, tantos cafés, tanta felicidade, e
também esta bica ficou fria, vai sendo costume já, estou habituado, é bom.
Nunca olhara uma chávena como agora, ou a lembrara numa bica e agora… Nem
esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por me ver, e a ver no fundo de
cada taça de café.
Sitio
lindo o desta fortaleza. Igualmente linda e aprazível a foz do rio Mira e este
mar florido e tépido, o seu sorriso, beijos e carícias. Desejos que eram meus,
dela o corpo jovem de ninfa, o olor a algas salgadas, os cabelos nas minhas
mãos, ela nas minhas mãos, e eu, vendo-me nas profundezas do mar onde me levara
o céu com que nos cobria o seu universo de sereia, embevecido com tanta
ternura, com os seios cheios, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida,
tão meiga, passei a temer desde há séculos a morte dos nenúfares. Lendas dizem
que a cada um corresponde uma sereia e que esta morrerá com ele, aceitarão por
nada deste mundo querer eu perder aquela que de entre tantas logrou
encantar-me. Temo verdadeiramente a morte dos nenúfares, sobretudo se for
verdade que, com cada um que morrer uma sereia morrerá quebrando uma magia milenar.
Por nada deste mundo quero desencantar-me, eu que a todo o momento e por todos
os motivos me esforço por te encantar, por isso tantas vezes me apanhas
hesitante, sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no
receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de
orgulho, momentâneas mas consequentes, te vás, airosa, atirando a asa da mala
sobre o ombro, a mão afastando o cabelo da testa, dos olhos, e estes
lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheia a tudo, a mim, a ti,
ao doloroso desfecho encenado, para meia hora depois estares telefonando;
-
Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo,
perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?
Eu
aparentando uma calma que não tenho, eu numa atitude meiga, terna, paternal
quase, perdoando. Perdoando-a mas na realidade com uma vontade vera de a
esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos. Agora
inverteram-se os termos, fechados em casa por decreto regulamentar tudo deito
pelos olhos e tudo desejo ver pelas costas.
A brusca partida dela quebrara o
encanto, e quebrado este que restava ? Fragmentos. Fragmentos de uma imagem que
reconstruída pedaço a pedaço, pacientemente e, agora vista como reflexos
dispersados dum espelho partido cuja soma jamais fará um todo. Afinal não mais
que um conjunto de discrepâncias forjadas numa dicotomia unívoca, resultante de
uma visão diacrónica artificialmente criada cujo entendimento demorei a
traduzir por o amor me cegar. Físicos e químicos desvendaram os segredos do
infinitamente pequeno e do desmesuradamente incomensurável. Métodos, processos,
análises, deduções, induções e experimentações e o socorro de modernos scanners
lograram ver o que era invisível aos seus olhos. Sou mais modesto, vejo o que
me é dado ver, por vezes tarde e a más horas mas consigo ver. Outros processos
me permitem contemplar o que aparentemente não será visível. Demoro é certo a
perceber o que me é exposto, a juntar peça a peça os reflexos desse espelho
quebrado. São jogo de imagens múltiplas num caleidoscópio, mas acabo
conseguindo também eu e sem outro auxílio que a reflexão, ver o invisível.
A
personalidade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aquele lago onde
me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar o jogo
em que os olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo,
indiferente a rua e reduzindo o meu mundo à contemplação deles, olhos, vogando
no mar dos seus aveludados cabelos e eu marinheiro encantado pelo seu cântico
de sereia. Mas não agora que o condicionamento me exaspera e a sua presença me
satura tanto quanto a minha a aborrece. Há momentos de luz no meu cérebro e da
luz o verbo que, alicerçado em pequenos mas reverberantes clarões, esses pormenores
aparentemente insignificantes permitiam-me todavia uma análise sincrónica das
imagens reveladas por esses esparsos estilhaços do espelho partido o qual, qual
prisma poliédrico, em minha mente tomavam interrogativa forma, agora real,
dessas imagens dispersas e aleatoriamente captadas. Pudera eu então dizer que
te vi, que te vi finalmente na tua verdade, na tua unicidade, e, lamento
dizê-lo, não gostei do que me foi dado ver.
Ela aprimora-se, demora-se e
esforça-se arranjando os pés das flores que no campo arrebanháramos, faz por se
ocupar, mete jarra tira jarra, mete pedrinhas tira pedrinhas e eu, que bebo
bica atrás de bica e já nem perco tempo a desligar a maquineta da Delta,
observo-a no seu rame rame gastador de tempo porque enquanto se ocupa não pensa
e o pior é pensar, dizia um poeta qualquer de que não sou capaz de me lembrar
agora. Tanto esforço despendido compondo um jogo floral evita que nos
confrontemos devido a qualquer coisa banal, o confinamento põe-nos à prova, o
confinamento confronta-nos ao instilar-se no ambiente fechado da casa, agora a
prisão onde vivemos encalhando um no outro, ainda que o espaço seja largo o
bastante para durante tanto tempo nunca dele termos reclamado.
Esse arranjo de
lindas flores campestres que o tempo cedo se encarregou de mostrar já não viçoso,
veio demonstrar que também elas não toleram o condicionamento fofinho de um
confinamento, haverá portanto mais coisas para além do bem-estar o qual,
imposto torna-se insuportável e quer nós quer as floritas já não parecemos tão belos,
ou tão belas como à primeira vista. Uma observação cuidada e concluiremos que
metidos debaixo deste imponderável com que nos cobriram parecemos outros,
tornamo-nos outros, somos outros, e a dimensão e visão ou descoberta pelo outro
das nossas mais recônditas peculiaridades desarma-nos, rebaixa-nos a seus olhos
e torna visível a mancha ou a nódoa que ao longe mais pareceria um ornato, um
qualquer ornato ou sinal que tanto idolatrámos. Razão tem o povo com a história
do sinalzinho que com o tempo virou horrível verruga, é o tempo que neste
confinamento se altera, acelera contra a nossa vontade, fazendo- me recordar
Einstein e a sua Teoria da Relatividade Geral em que tudo é, ou se orna
relativo.
E
neste cenário confinado levando quarenta e nove dias, quarenta e nove dias em
que brincámos, rimos, amámos, embirrámos e chorámos até ao insuportável, digo
no fio do insuportável, ela pavoneava-se num trejeito consciente e
irritantemente pujante de mulher feita, no auge da beleza e, diria eu, de uma
perfeição e paciência sem iguais que eu simultaneamente adorava e detestava,
num conflito interior a que me mostrava incapaz de dar solução. Eu, homem feito
e de maturidade assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade
para lidar com o imprevisto me provoca, e ela isso mesmo, o imprevisto, toda
ela mau grado tanta perfeição e beleza, um pocinho de inconsequência e
ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes
por dentro. Contendo-me. Ainda recordo o flash radiante dos seus olhos sempre
que eu, hesitante, me demoro na busca da resposta mais aconselhada ao momento,
todavia confesso nem todos os momentos seriam de confronto ou atrapalhação,
tanto que, embora não sendo vulgar o plasma vagamente ligado para que o quarto
não demasiado escuro, de vez em quando era para isso mesmo que servia, para
manter uma meia-luz coada iluminando-nos enquanto na AR, homens engravatados se
sucediam discursando entre jarras e jarrões pejados de cravos vermelhos.
Festejava-se Abril.
O
clube dos ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda
hoje atrapalhado com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não
me tremem, e neste momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete,
louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e
odoríferas névoas exaladas daquela pele e olhar, desesperado pelo instante que
nos juntará, nos unirá e nos irmana na fruição desses contudo não tão raros
momentos partilhados, fruídos, gozados. E por falar em Abril lembrei a data de
25 e essa noite em que, contra meu hábito, mal dormira.
Pesadelos e sombras
pressagiaram então o que eu não entendi nem nos dias, nem nas semanas, meses e
anos seguintes. Porém recordo ter acordado muito cedo nesse dia fantástico, não
tanto devido às insónias sonhadas mas antes devido ao alarde que desde
madrugada se fizera sentir na quintarola que o meu pai trazia primorosamente
tratada. Como por artes mágicas tudo naquela manhã se conjugou para que jamais
a esquecesse, se bem que nessa minha modesta idade não me tivesse sido
permitido entender os prodígios a que assistia e impossíveis de, em minha
mente, serem de imediato transformados em augúrios felizes de dias vindouros.
Nessa manhã de sol a quinta parecia ter ficado entregue à bicharada e eu,
sozinho, reinando ignorado no meio dela.
Galos haviam abandonado o galinheiro
escavando com unhas poderosas os locais mais inconcebíveis da quinta,
modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de diversas espécies, onde o
sol avivava a clorofila e rebentos de variadíssimas flores matizavam de cores
diversas o espaço a perder de vista. Poedeiras pedreses viravam sobranceiras as
costas ao cativeiro e depunham os ovos nos lugares mais díspares e que vez
nenhuma tinham pisado, mostrando arrogantes, soberbas poses que a vida inteira
lhes tinham sido interditas. Que me lembre nesse dia nem caseiro nem quaisquer
outros dos trabalhadores da quinta apareceram e, aflitas, as vacas mugiam
impacientes, amojos cheios que nem balões de festa majestosa, sem viv'alma que
lhes acudisse. Cães corriam ladrando de lado para lado enlouquecidos pela festa
e seria absurdo não entender os seus latidos como advertência e agoiro de
milagres futuros que teriam, certamente, eles e eu, a felicidade de vivermos.
Tal
foi a minha alegria e a de todos quantos na quinta não estavam que nem dei pelo
sol transpor o zénite e, absorto, aguardei, vendo passar filas e filas de
gentes entusiasmadas, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem que hoje
entendo como traídas no tempo, pois desse dia apenas a minha tia Marcolina,
ainda viva, conserva o mesmo sorriso, um sorriso de esperança que na hora
afivelou, dia em que pela primeira vez a vi bater com a mão no peito e lhe
soube de um filho que alguém levara para as longínquas terras do Gungunhana,
onde jazeu, nome estranho que me assustou e cujo significado só entendi meses
mais tarde.
Também por esses dias me foi dado a conhecer o primo Hilário,
recém-chegado dessas terras remotas o qual terá pisado pela primeira vez esta
metrópole que jamais conhecera ou vira, razão pela qual nem considerou a
importância de tão banal pisadela e inda hoje não lembrando com qual dos pés
pisou à chegada ao solo pátrio. Pelo fim de tarde a festa transformara-se num
arraial colossal embora eu não lhe tivesse entendido a causa, habituado que
estava às comemorações do Natal, Carnaval, Páscoa e Senhor dos Passos, em que
multidões se arrastavam pela vila, e apesar dessas vagas nem por sombras terem,
nem nos seus melhores dias, chegado aos calcanhares do mar de gente eufórica
que passava e desfilou alvoroçada ante os meus olhos. Então, como hoje, todos
falavam mas ninguém ouvia, cresci portanto no meio de gentes meio surdas que
prolongaram no tempo, embalando-me e iludindo-me, histórias de felicidade
inventada, prometida e futura, que ainda hoje estou à espera de ver e viver e,
desse dia mágico, ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo militante que,
uma vida inteira vivida, finalmente lograram acomodar no sótão das ilusões em
que guardei os pesadelos premonitórios, os sonhos prodigiosos e todas as
recordações deslumbrantes dos presságios que nesse dia vivi.
É
sábado, nuvens toldam o dia, o futuro anunciado é de um inverno glaciar onde
nem as aves se atreverão aos voos rasantes e às piruetas de outrora, e eu,
triste, acordo ao toque da mão dela e lamento que o meu sonho não tenha
continuado... Olhei displicentemente a Tv, ao fundo as galerias da AR vazias,
fora isso toda aquela gente engravatada que nunca deixei de ver na televisão
continuava botando discursos, assumindo compromissos e fazendo juras enquanto o
país se afunda e eu, irritantemente revoltado, perdi os teus olhos cuja luz
maravilhado olhava.
Esses olhos sempre foram a minha perdição, toda tu te
transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando uma
luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz
uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a
nós, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente
de mar de coral em que flutuávamos esquecidos de nós, do vírus, do Costa, da
Graça Freitas, da Marta Temido, do mundo, de tudo e de todos. Depois, repentina
e incompreensivelmente, como estava a tornar-se teu hábito, davas tudo por
terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem existido. Eu num
torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me
dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos e tu já de alça da mala ao
ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida,
pegando nas chaves e:
- Não aguento mais, vou
apanhar ar, espairecer, passarei pela “Mercadora” e trarei fruta. Queres que te
traga tabaco, café, uma garrafa de brandy ?
Na
Tv aplausos, aplausos por quê ?
Foram
momentos únicos e ignoro como irá culminar o saldo destes meses de receios
fundados e imaginados, pelo que ainda que contrariado sorri, imaginando o
resultado, o fruto da tanta preocupação, tanto choque, tanta saturação. Dias,
semanas, meses, de altos e baixos, de medos e temores, de amor e de raiva reflectidos
em nós que, desde o defeito mais insignificante à qualidade mais relevante tudo
espetámos na cara um do outro.
Tanta verdade e realidade deixariam mossa, a
idolatria mútua fora-se, consumida na voragem dos dias, na impaciência, nos
nervos recalcados. Fui descansar de todas estas apreensões temendo o saldo
final, o custo, sim apreensões, que outro nome dar-lhes ? Preocupações,
apreensões, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o ressentimento
acumulara-se na cabeça de cada um, daí o receio agora sentido. Passadas tantas
décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não foram
paixões mal acabadas, foram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se
em si, enovelando-se. Voltavam de novo quais aves migratórias.
Por
isso agora esta dor, esta desorientação, olhos que falam, que interrogam, que
apoiam mas já não prometem por conscientemente não o poderem fazer já, só Deus
nos poderá julgar e submeter ou libertar. Foi a essas janelas da alma que nos
debruçámos ignorantes do por quê do devir, da sina, do fado, ignorantes do fim
de tal caminho, ignorando as borboletas, os apertos no estômago. Eu esquecido
daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que não dispensava, antes
procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso
sustento e agora isto, agora os choques, as zangas, a fartura de tudo, a
fartura um do outro, a impaciência, o alheamento, o ressentimento, a culpa.
Por
esta é que eu não esperava, lembrando que a uma acção se opõe sempre qualquer
outra reacção. Contudo recordo que, quando o mundo me assustava ela ali estava,
inamovível mas acessível, indispensável e imperecível, nutrindo as minhas
esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e desta vez eu
fugindo de ouvi-la, escondendo-me para não ter que lhe responder, embaraçado
umas vezes enraivecido outras, escondendo hoje a dor ou a raiva como escondera
as precedentes, camuflando o meu lamento e incapaz de dar a volta à situação,
eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que
a minha exposição e incoerência mostravam. Tínhamos ido longe demais.
A cada
dia íamos longe demais para voltar atrás. Pressinto aproximar-se o momento
nunca pensado e sempre temido do fim desta história a dois que anos a fio nos
tem animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade.
Pressinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado recente, sinto-o
porque voltaste a não aceitar o meu abraço e porque anteontem quando te
cruzaste comigo não me viste, não, não me viste ou fingiste não ver, todavia
uma passagem rápida, um instante, e ao ver-te tão perto a minha mente
automática e repentinamente accionou velhas recordações e num segundo regressou
o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos teus
olhos, essas contas de vidro mantendo ainda o mesmo brilho fulgurante de outrora,
mas tu nada, tu alheia a mim como dantes, eu agora outro homem, crestado pelas
experiências vívidas das dores da vida, agora seguro, agora extrovertido, agora
perdida a inocente ingenuidade dos puros, agora cheio de certezas, firme de
convicções, agora a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em
mim frustrações ou traumas, antes valorando o tempo que dantes me parecia
infindo e hoje seleccionando os momentos, as amizades, os olhos.
Eu
já de carácter e mãos firmes contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a
mesma inexperiência, a mesma atrapalhação, os mesmos colchetes que nunca
aprendi a manejar agora que tão necessária se mostra a experiência, agora que
tudo devia concorrer para te agradar e impressionar, jamais para te irritar,
agora que dava tudo para que o passado se fizesse presente é o presente que
atrapalho com a mesma falta de jeito de sempre. Mas não, parece que não me
viste mesmo, talvez melhor assim, melhor não reparares no meu hálito, e
certamente não me atirares à cara com alguma garrafa, não a mim não, cujo
desnorte me levou a redescobrir o prazer encerrado numa botelha de Tequila.
A
coisa, isto, está a tornar-se insuportável e tudo é lícito para lhe fazer
frente, contudo jamais esqueci o teu amor pródigo, esse amor fogoso e
inconstante que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado
os colchetes… mau grado a Tequila. Verdade que nunca lhe prestara tanta atenção
como agora, é do convívio forçado, é uma reacção natural digo eu que para além
dos livros, da Tv e da música nada mais tenho com que me distrair, me entreter,
com que engraçar ou embirrar. Tu vives e falas monopolizando tudo, tudo e
todos, podendo tentarás condicionar nos outros discursos e vontades. Por vezes
nem te ouço, és mestra a invocar o encanto das sereias e, como por magia,
manipular-me, manipular-nos. Estava pensando nisto e o quanto isso me irrita
quando ao preparar a mesa para o pequeno-almoço dei por ti, cedo nessa manhã,
estendendo a roupa no arame apesar de, e estando tu farta de ser avisada de
quão adoro olhar o largo e tutti quanti se alcança dessa janela.
Um
dia esventro-a e nunca mais me tapa as vistas.
Alto
lá, desta vez excedi-me. Este pensamento tem que ser dominado, verdade que a
mais pequena coisa me irrita mas um pensamento destes pode ter-se mas não
concretizar-se, tê-lo é já um exagero e um mau sinal. Acredito que
esventrando-a nunca mais se atreveria a tapar-me a paisagem, coisa em que ela
aparentemente teima mas sim, creio conscientemente que este subconsciente me
levou longe demais.
Quinquagésimo dia de confinamento, na sala o relógio da
passadeira marca quase 9 horas da manhã e diz-me que já palmilhei em meia hora,
o equivalente a quase três mil metros suados. A manhã está desagradável e
coloca um ligeiro embaciamento nas janelas em frente e à direita, através das
quais diviso para me distrair do esforço despendido, uma jovem mulher passeando
um cão branco e preto, muito feio, ela linda e, passado algum tempo a vizinha
do primeiro esquerdo em frente, aflita, de colher na mão, fato de treino e
gorro vermelho sangue que, agitada e de colher na mão tão depressa desce a rua
como a sobe ou marcha em frente para logo virar para trás, até se sumir de novo
pela entrada do seu prédio. A minha casa faz gaveto num cruzamento, tem uma
vista esplêndida, estive para perguntar à vizinha de preto se por acaso andaria
passeando a colher ou somente expelindo a pressão acumulada por durante tanto
tempo estar confinada em casa… Ultimamente passo a maior parte dos dias
estirado, pés fora do sofá inalando indolentemente um cigarro, eu que tinha
abandonado o vício estou a voltar a ele com redobrado vigor. Os dias ficaram
frios e sumo-me por debaixo duma manta, ora destapando os pés ora os ombros.
Ambos
sabemos e temos consciência de terem sido os últimos tempos, dias, semanas e
meses que nos puseram extraordinariamente à prova, foram eles sem a menor
dúvida os culpados das borboletas, das paixões incontroladas, até mesmo dos
apertos do estômago, das dores de barriga, do enrolamento das tripas, das
birras, tricas, quezílias, zangas, brigas, pazes, explosões de amor, beijos e
abraços. Sabes querida, também o mesmo medo que nos desuniu e assustou nos
uniu, no fundo falou mais alto o medo de fazer as malas e arrumar a vida sem
que o esperássemos e como bem dizias não era assim tão simples, não era somente
fechar os olhos e abalar, o medo protegeu-nos, o medo foi apesar de tudo a
nossa defesa quando tanta gente parecia morrer à nossa volta.
Começo a perceber
o mecanismo do medo sabes ? Primeiro alheámo-nos de tudo como se fossemos
imortais, alheámo-nos de tudo, tudo se passa lá longe e nada é assumido por nós
que seja pensado e ponderado ao pormenor. Continuámos a nossa vidinha sem a
menor solidariedade para aqueles que começaram a cair, continuámos a nossa
vidinha de faz de conta e de improviso e só começámos a acautelar cenários
quando a coisa começou a chiar mais fino e mais próximo ou seja quando
finalmente aceitámos como possíveis as ameaças e contaminações que nos pudessem
chamuscar. Infantil e inconscientemente deixámo-nos levar pelas circunstâncias
sem ao menos buscarmos soluções para os choques que nos opuseram, nem pedimos
conselhos ou recomendações a quem quer que fosse, mas quem estava próximo ? A
idiota da DGS ?
A esparvoeirada da ministra ? Falo por mim, reconheço tudo ter
feito de bom e de mau, subtraí-me inicialmente à alçada da razão e somente
agora as asneiradas a que dei azo me retinem na consciência, qual alarme
avisando-me para a ameaça pairando sobra a nossa relação, será pior que nunca
se acontecer neste momento, nós que julgávamos esta união na esfera da
imortalidade e afinal vamos ter que lhe acudir de emergência pois receio, temo,
que despudoradamente tenhamos ido longe demais e a coisa possa não ter
conserto. Em boa hora passei a vigiar atentamente as nossas vidas, a nossa
relação, apostado em salvar este casamento que, por mais paradoxal que possa
parecer-vos desta vez exigirá que a aposta recaia na separação, digo no
afastamento, nada de ir às compras acompanhados, vou apostar em mantermo-nos
juntos o mínimo de tempo e separados o máximo, há que evitar a saturação, a
confrontação, os nervos, os choques e os conflitos, passaremos a privilegiar o
debate e a admitir e a incentivar o contraditório de modo metódico, a fim de
evitar que cheguemos aos extremos a que já chegámos e antes que as coisas se
tornem irreversíveis.
Tenho
medo, olho em redor e sinto medo, confesso que as notícias são cada vez menos
animadoras, para não dizer desencorajadoras, ou ameaçadoras. Não irei
queixar-me, isto são lamúrias minhas, não faziam parte do meu feitio mas fazem
agora, sobretudo tendo em conta que televisões e jornais estão a soldo de
governos e todos nos mentem, os números da pandemia devem ser muito piores que
os apresentados por eles. Logicamente interrogo-me, quando terá isto um fim ?
Estarei a ser egoísta ?
Pela primeira vez na vida forço-me a reconhecer a
verdade e a verdade é que me sinto ameaçado. Sinto-me abafado e efectivamente
querida só a ideia de perder-te me provoca uma insegurança e uma falta de humor
inusuais em mim mas que não consigo disfarçar nem esconder por mais que tente. Na
verdade tudo isto anda a bulir comigo, altera-me os ritmos biológicos e quem
sabe o quê mais. Não acredito nessas balelas da aura, do karma e dos chacras
mas desde a semana passada tive motivos para pensar nisso tudo. É certo que
acabei rindo-me da coisa, mas rio-me agora pois na altura tudo senti, desde
suores frios a tremores, tudo menos vontade de rir. Esta merda do
condicionamento ou do confinamento ou do caralho mexe connosco, e quem disser o
contrário está a mentir. E sabem por que me ri ?
Porque quase me caguei, essa é
que é a verdade, fui repentinamente acometido duma diarreia que por pouco nem
me dava tempo de chegar à sanita. Foi de tal ordem que, prevendo isso corri.
Não, não estou a inventar, estou sendo sincero, tudo por causa dos nervos, do
excesso de nervos, parecia que tinha tomado um valente laxante, nem tive tempo
de dar sequer mais um clique no rato do PC, imaginem que eu estava num café por
exemplo... Há coisas do caraças, mal me levantei da sanita meti-me logo debaixo
do chuveiro claro, mas do susto não me livrei…
Porém enquanto estava de assentadeira, e já aliviado da urgência da coisa, puxei como é meu hábito a cestinha das revistas e jornais tendo-me entretido com eles, foi nesse momento que dei com outras cenas macacas e me pude rir a bom rir ao dar com as contradições em que as pessoas podem cair e caem, consciente ou inconscientemente mas caem.
Porém enquanto estava de assentadeira, e já aliviado da urgência da coisa, puxei como é meu hábito a cestinha das revistas e jornais tendo-me entretido com eles, foi nesse momento que dei com outras cenas macacas e me pude rir a bom rir ao dar com as contradições em que as pessoas podem cair e caem, consciente ou inconscientemente mas caem.
Eu
pegara num dos jornais da terra, da véspera, e dei com dois paladinos botando
sermão acreditando serem os detentores da verdade e, ambos enganados, ambos
engajados, ambos comprometidos, ambos inconsequentes. Bem um deles era uma ela,
uma paladina, uma tal Florbella ou Floribella, e como os sermões eram públicos,
vinham em jornal diário, eram e são não somente passíveis de risota como de
critica, e assim fiz, primeiro ri-me depois analisei-os à lupa e voltei a
rir-me. Eram dois artigozitos, um sobre democracia e moralização, um arrazoado
de pressupostos sem pés nem cabeça, uma série de patacoadas ingénuas de quem
nem se verá ao espelho, o outro mais grave porque mais profundo, menos
inocente, mais subtil.
Se em relação ao primeiro artigo nada mais haverá a
dizer além das contradições que o desabafo encerra, pois não me pareceu mais
que um desabafo de quem só agora descobriu a intolerância e a estupidez por
estas lhe terem caído em cima, provavelmente a doer, sobre o segundo usei de
toda a ponderação na análise pois a coisa chiava mais fino, revestia-se de um
caracter multiforme, era enformado por subtileza do mais fino recorte e podia
considerar-se um indisfarçável apelo subliminar a todas as consciências
adormecidas que nele esbarrassem, facto que alertou a minha desconfiança e me
suscitou mais interrogações que certezas. Quanto aos factos que o dito artigo
abordava tornaram-se infelizmente o cerne da inimputabilidade e da corrupção
que grassam no país. Quanto ao cronista, mais um paladino fazendo de juiz em
causa própria… Pessoalmente quero acreditar na ingenuidade, integridade e boa
vontade das pessoas, mas não deveremos todos nós resguardar a nossa
independência sobretudo quando é sabido que de boas intenções está o inferno
cheio ? Cabe aos intervenientes nestas
peripécias resguardarem-se dos salpicos, manter o recato que as suas vidas
exigem e recomendam. Responsabilidade social sem moral, sem moralização, sem
ética, sem exemplo próprio, não passa de um embuste e, sendo o desenvolvimento
a meta almejada, aja-se em conformidade, em conformidade e com consequência. De
fake news a surpresas inesperadas, este vírus tem trazido coisas incríveis à
tona.
Bem,
vou meter-me debaixo do chuveiro…
Vidas
mais que vulgares foi no que as nossas vidas se tornaram, encafuados em casa,
com ou sem teletrabalho, acho que ainda pior se com ele, subterfugio para quem
não encontra melhor solução, para fingir que se faz alguma coisa, somos um país
de fingidores e fingimentos um país que faz mas não faz, o país do senhor de
Lampedusa. Perdemos horas, dias, semanas, meses, prenhes de momentos fúteis,
momentos cheios de nada, impantes de vazio, de desesperança ! Para desopilar
apanhei boleia com ela que combinara com uma amiga dar um toque no cabelo. Na
volta ela passaria pelo híper, trazendo-me e às compras, assim se matariam dois
coelhos de uma machadada, aliviávamo-nos um do outro e cumpria-mos em
simultâneo obrigações sociais se é isso que lhes posso chamar, abastecer a
despensa sem açambarcar e manter o cuidado e a higiene do corpo. Até porque com
os cabelos do tamanho que os dela já tinham qualquer dia e num repente poderia
agarrá-los e fazê-la girar até ganhar força, ganhar embalagem suficiente para
dar com ela numa parede.
Não me ocorrera já uma vez esventrá-la ? Cabelo curto
seria mais higiénico, oferecer-lhe-ia mais segurança, e deixá-la-ia bem mais
bonita, até pareceria outra, o que só podia jogar a favor dela, e de mim
naturalmente. Fosse como fosse eu ia sorrindo para mim mesmo apesar da
saturação vivida e das desilusões sofridas, também as tenho e fechado em casa
só as avivava, contudo lá ia tentando saborear a vida, ainda que esta tenha
duas faces como há muito compreendi e como em relação a qualquer moeda sabendo
que sem uma a outra nada vale, é falsa, por isso aprendi a dar valor a cada
momento, a cada minuto, como se único, e fruí-lo, porque será pago, ser-me-á
cobrado, como tudo na vida, o reverso, a outra face, e só quem está para se dar
receberá, apesar dos custos, da cobrança, da hora do acerto, por isso este
coração enorme, devastado agora pelo confinamento, destroçado pela impaciência,
ferido pelos confrontos, rasgado por cicatrizes de muitas lutas, contudo cada
vez maior, cada vez mais dado, oferecido, e quanto mais oferecido e dado mais
se agiganta, mais me agiganto, feliz, contente, jamais saciado mas
permanentemente em paz, em dádiva, e em oferenda.
Dia
de sorte, a fila para entrada no híper teria umas três pessoas, pelo que mais
de uma hora antes do que eu pensava estava aviado e de novo cá fora curtindo o
sol. Telefonei-lhe,
-
Mas Berto, porra pá, mesmo agora acabei de me sentar e de levar a primeira
tesourada, não me irrites amor, não há por aí táxis a jeito querido ?
Bem
demais sabia ela que havia táxis a dois metros, fiz sinal a um, carregámos os
sacos e ala para a Cartuxa. Não estou certo de ter sido o seu instinto de
sobrevivência ou o meu espírito de provincianismo parolo o culpado, por isso é
difícil dizer quem foi o ingénuo e o matreiro, o predador e a vítima.
Ele foi o
primeiro táxi que me apareceu a rodar livre, ele, a raposa desta história e,
montado ao volante dum carro mais que aceitável entabulámos conversa directos à
Cartuxa, depressa p’lo discurso nos identificámos como apoiantes ou não de
diversos assuntos e personalidades da nossa atribulada e desgraçada vida
politica até que, chegados, me apressei a pagar-lhe a corrida e puxei duma nota
de dez euros para pagar seis e meio. Até que não fora cara a corrida, teria ido
a pé caso estivesse de fato de treino e com vagar para uma marchazinha de trote
a galope.
Eu dissera-lhe que lhe daria um euro e meio em moedas para lhe
facilitar o troco e ele, já de nota de cinco na mão estendida para me devolver
aguardava que eu pescasse as ditas moedas no meu esquisito porta-moedas.
Demorei algum tempo mas por fim lá as separei e lhas passei para a mão, missão
cumprida, agradeci e desci com pressa pois ainda havia que descarregar o carro.
Depois, arrumar convenientemente todas as compras na despensa, garagem e
garrafeira iria ocupar-me parte considerável do dia pelo que somente passada
uma hora ou mais recordei que a mão estendendo-me a nota de 5 euros já lá não
estava quando lhe passei as moedas.
Nem a mão nem a nota. Nesse entretanto,
toma troco, toma moedas, toma nota, devolve outra nota, algo mais próprio de um
ilusionista batido se passou, já repararam no que foi ou qual terá sido a
manobra ou estão tão distraídos quanto eu estava ? E será que ele contava já
com essa distração ? Terá sido golpada ou meramente cabeça no ar, parvoíce
minha ? Sinceramente não sei. Pensando bem na coisa, e se a golpada se repetir
dez vezes ao dia, e o dia tem oito horas ou mais de trabalho, portanto muitas
oportunidades para a repetição da gracinha, o ilusionista tirará mais uma boa
renda mensal. Mas estou a delirar, não passou de provincianismo meu certamente,
e acabei por nem lhe levar a mal a palmada que me deu ou que lhe consenti.
O
mundo não pertence a quem anda a dormir na forma, pertence a quem tem olho… Naturalmente
e depois desta manobra de que fui involuntariamente vítima colaborante veio-me
à memória um velhinho filme visto por nós há muitos muitos anos, O COWBOY DA
MEIA-NOITE, cujo personagem principal, Dustin Hoffman, interpretando a figura
de Rato Ratso tornou esse filme inesquecível, aliás inolvidável até pela banda
sonora, e recheado de personagens com os quais rapidamente simpatizei. Como
levar-lhe então a mal a golpada ou a minha distração ? Tinha o nome numa chapa
no tablier, lembrei-o e sorri.
O
futuro ficou, mercê do vírus, do confinamento, das restrições sociais e do medo
repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade
despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os
sentidos e o ego. Tento não sucumbir nem reagir violentamente à percepção
paranóica das coisas e das pessoas, todas elas agora me parecendo perigos reais
ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias poderão
ser as razões para essas sensações de sufocamento, o peito apertado, a
insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos, não é por
isso que subjugo a dor, iludo a solidão ou recuso a temida morte. Quantas
noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão terei
capacidade para suportar veremos, quanto martírio me torturará ainda nunca
saberei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e atribulação colocarei na
conta do deve e haver desta catarse que abnegada ou resignadamente aceito mas
pela qual ergo os punhos ao céu.
Sim eu sei, é o preço da minha condenação e
aspiração à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o
livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor
desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser
condenado e por ficar livre. A maçã comida no Paraíso saiu-nos cara. Era
agreste este mundo e pior ficou repentinamente virado de pernas para o ar,
cresta-nos toda uma vida, todo um futuro. Nem é mundo que queiramos, nem vida
que desejemos, sabemo-lo. Tão bem o sabemos que tudo fazemos para o ignorar, o
que não podemos fazer, o que de mais errado poderíamos fazer. Quanto mais nisso
teimarmos mais ele parecerá afundarmo-nos. Ilusão.
Quão gritante e desesperante
ilusão. Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas parecem
recusar-nos até em sonhos. Medo, desconfiança e desesperança parecem unir-se
pra que não nos realizemos p’ra que jamais se concretize a nossa mínima
esperança. Cerceia-nos o desânimo e o desespero e mais frustrante se torna
assistir a toda a vida social parada, a vida parada, carreira paradas,
maternidades adiadas, maiores idades adiadas, o establishment instalado está
fazendo dos homens crianças tontas, incapazes e irresponsáveis. Repentinamente
a minha vida, a nossa vida tornou-se tão frustrante quanto o calor deste sol
benfazejo sob o qual buscamos comprazer-nos neste dia tímido de céu azul em que
nos atrevemos a sir à rua, dar dois passos no jardim do bairro, respirar o ar
puro, sem máscara, um ar saudoso onde nem pontilham flocos brancos, algodoados,
antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e prenúncios exasperantes dos
dias jamais cumpridos mas por cumprir por neles se alojarem as metas que almejamos
atingir.
Não
sonhes, não sonhemos, recusa sonhos, ilusões e devaneios, pois isso é tudo
quanto o futuro tem para nos dar por estes dias. Para cada um de nós o futuro traçou
um caminho a seguir, um silício, um suplicio imposto como via única, solução
única força-nos a que o cumpramos na dureza dos dias, do tempo e vida que nos
resta, que o soframos na pele com a mesma abnegação, intimidade e segredo com
que guardamos para nós os sonhos de esperança outrora contemplados, pior que
tudo espera de nós uma rendição incondicional. E onde o lugar para a coragem e
esperança ? Não, não podemos soçobrar nem desistir, nem acreditemos nem
aceitemos a pressão desta força invisível nem o caminho imposto, o mundo nunca
foi isto, este negrume qual nevoeiro rasando o chão e envolvendo a plebe, o
lumpemproletariado a escumalha, a ralé, a classe, o mundo sempre foi e terá que
voltar a ser a esperança pendendo da mesma frondosa árvore cuja sombra os
nossos sonhos sempre acoitou e terá que continuar acoitando.
Não aceitemos este
mundo bivalente e dual, mais curto que extenso de agora, nem éden nem utopia
oferecendo-se-nos como uma maçã no paraíso, ele nem foi feito para nós nem tem
espaço para que nos cumpramos. Sim aceito, é ressentimento e dor também por não
conseguir esquecer-te, é como um feitiço sobre mim caindo e revolvendo-me numa
inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te ofendi por palavras e
actos, nem quantas te relembro ouvindo e sorrindo nostálgica numa ternura
impaciente tudo que eu dizia. Sonhemo-nos como quando enamorados a tua
respiração quente no rosto me enternecia, leva-me de novo a olhar-te no fundo
dos olhos, a beijar-te terna e docemente e num longo e aconchegado abraço chega
a mim o teu peito arfando no qual desejo de novo perder-me e afogar-me.
Deixa
que as mãos vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas como dantes, aperta-as
como fazias, aperta-as agora com mais força, como quem prende o futuro e o
desejo numa avidez não saciada que me faça esquecer o exasperante passado sofrido
que nos infligimos, solicita-me que avance e te descubra tal como quando eras
para mim um oceano por desvendar e me perdia deslumbrado, extasiado na
premência de ti e de mim, e te percorria suavemente as curvas dessa imagem que
ainda me tolhe, que ainda me tolda os sentidos.
Sim
amor, salvemo-nos enquanto é tempo querido, acaricia-me o peito, que a tua boca
de novo me sugue num ímpeto que juro te devolverei, faz-me tremer novamente de
emoção, afaga-me sofregamente os seios endurecidos cujo odor sempre adivinhaste
e adoraste enquanto os teus dedos por mim passeavam colhendo o cheiro
inebriante duma oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas jurámos
e cumprimos, porque afinal, e não o neguemos, existem sonhos, desejos, ilusões,
sentidos e emoções a partilhar.
- Berto,
que jamais sejam por nós travadas as promessas, nem as esperanças, falam numa
nova ordem social e embora sabendo contudo quanto de difícil, senão impossível
se nos depara, recusemos todavia abdicar, reneguemos o momento, sonhemos a
realidade, sacudamos do jugo as novas imposições com que montando o medo do
vírus nos querem albardar. Cada um de nós tem um caminho a seguir, sigamo-lo
sem nenhuma ilusória intimidade, antes concreta e assumida, partilhemos e
cumpramos conscientes o pouco que de inolvidável possamos ainda viver e jamais
esqueçamos tudo a quanto platonicamente aspirámos. Querido aceitemo-nos,
cumpramo-nos na certeza do que somos e temos, porque ainda que confinados,
condicionados, a verdade é que desde sempre nos pertencemos. Porque embora o
não queiramos, aceitemos que afinal há longe e há distância mas também futuro e
esperança, reconheçamos quanto de impossível nos separa e não deixemos que um
vírus, um mero vírus nos vire um contra o outro e muito menos a vida. Bertinho
amemo-nos. E vivamos sem tormentos e plenamente felizes vidas cheias,
preenchidas, vidas !
Chegou a Primavera tempo de luz e de esperança, que seja
como sempre foi, de criação e abastança, de planos, sonhos e quimeras. Sim, também
eu fiz planos, que planifiquei e
organizei, pois saibam ter comprado uma agenda p’ra apontar os sonhos, sonhos,
desejos, tudo que planeei. Ouvira na esplanada alguém, penso que um ilustre
magistrado, dizendo que, desde que as partes o desejem, até em cima de uma
agenda, ou deitados… Deitados, em pé, coitados de nós querido.
Coitada de mim e
do meu sonho, desejo inventado, sonho e desejo de gnomo. Fossem gnomos ou
elfos, qual o interesse agora, depois de dar ouvidos a Delfos, e por não crer a
todos ter deitado borda fora. Tende juízo augurara a pitonisa, liga a bateria,
os piscas, as luzes, dá corda aos patins, piramiza, dedica-te à poesia,
ironiza. Ironiza e brinca, esquece, distrai-te, nunca afies o dente que não
trinca, vai para o café mandar bitaites. Apaga a luz, esquece a musa, não mates
a cabeça, usa-a, entala o pescoço numa eclusa, exorta a vítima em ti, exorta-a.
Castiga-te, bebe um café, sê masoquista, narcisista já és, e convencido, e
egotista. Berto tens muito por onde te entreter, a Primavera é grande, mortifica-te
a valer, e poupa-nos, sai desta land. Desopila, emigra, não atormentes, faz-te
à vida, dá paz às gentes. Já se não vendem agendas meu querido parvalhão, só tablets,
notebooks, vives ainda no tempo das gregas calendas, detestas o McDonald’s, o
Starbucks.
Confessa minha querida, também tu és uma
aberração, uma abencerragem, não és deste tempo, nem geração, és do tempo do
pão de farinha, da moagem. Do forno de lenha, da cortesia, do fazer a corte, da
vaca fria, da vaca prenha, andas aqui sem saber o norte. Antes a morte que tal
sorte cantou uma vez o Mário Branco, e licença da arma, do seu porte ? será que
tens ? E que esperas tanso ? Dá um tiro nos miolos, preenche de alegria a
Primavera, pareces a noiva de Arraiolos, sempre à espera, sempre à espera. Depois
pintarei um quadro teu, como fez o pintor que pintou Ana, juro não fazer
rebeubéu e pintar também a tua mana.
Berto ! Pois então que morras descansado, morre,
mata-te, suicida-te,como queiras, mas sê apressado, já não há pachorra para
aturar-te.
Desgraçado ...
Apesar
da noite de breu que sobre nós se abateu, de toda a vida que nos mudaram,
alteraram, do medo, do controlo, das imposições e explosões de fúria, amo-te ainda
e ainda te sonho minha querida. Quantas vezes te sonho apertando-te
egoisticamente contra mim, protegendo-te, defendendo-te desta sina ameaçadora
pairando sobre nós, nuvem escura, polvo, monstro em fuga ante o meu grito, aqui
neste mar de tristeza mando eu, eu e tu meu amor a quem cegamente amo, porque
tu albergas no teu sorriso um mapa de viagem, o teu olhar perde-se em
distâncias prometidas, na tua tez, beleza e coragem de jovem pajem, tua flor
tomo por jazida de riquezas e mistérios mil. E que oásis... riquezas pareces
prometer querida…
Todavia dores antigas me travam no redil apesar de ávido,
sedento de na tua boca beber, dessedentar-me, afogar-me em vassalagem num
imaginado sabor de donzela anis anil… Tinem em mim as campainhas do amor alarme
relembrando-me o teu peito ufano e o calvário, trabalhos e privações de Ulisses
em viagem, mas é aí nesse teu selvagem santuário que um dia, incontido alijarei
de novo a minha bagagem… Poderia ser apenas um sussurro, um "adoraria
beijar-te" verdade que adoraria sentir das tuas coxas a pele branca e
macia contraindo-se contra as minhas faces... Calar-me-ia, deixaria a mal escanhoada
e rude barba arranhar-te, servir-me-ia dela p’ra te intimidar, forçar-te as
pernas truncadas, somente isso uma vez tresloucado eu nessa razão e
então...
Talvez para convencer-te com
razão te beijaria enlouquecido o velo dourado, esse velo de cobre que te cobre
esperando abrir as portas que Deus sabe...
Só sei que não mastigaria, antes sorveria o sumo acre da maçã verde,
qual primícia do paraíso permitindo-me a evasão pela poesia, pelo sonho, pelo
encanto...
Tendes
razão senhora, quantas vezes sonhei com vossas pernas entrelaçando-me,
prendendo-me a cabeça, exigindo-me, suplicando-me o que de graça e com graça
vos ofereceria se, se pudesse ai se eu pudesse outro galo cantaria... Tenho a imaginação voraz e, quando me sorris
ou me atirais um beijo, invento coisas de corpos em desalinho, coisas de paixão
e desatino, e questiono-me sobre vossos gostos e desejos, que imagino e
adivinho…
- Oh
! Lá vens tu com as tuas !
-
Verdade, o estado de emergência acabou mesmo ?
Não sei, não sei, todos os dias lembras uma nova… ontem foi o arranhar
suave…esqueces que já não tenho 18 anos … Mas levaste-me lá … quebraste-me o
tino, aguçaste-me o desejo, convulsionaste-mi, provocas-mi.
E
todo eu um rotundo tumulto atraído por esse sorriso deliquescente orbitando os
teus lábios onde sempre me sonho em volúpia sugado por língua lânguida
abraçando-te tal qual Fauno, ou Dionísio e, despindo o meu Eros despimo-nos
ambos. Despojámo-nos, entregámo-nos, sublimadamente eu, bombeiro de mim mesmo
ardendo numa combustão maliciosa e que, pura, despertas em mim, despertas pois,
sabes que sonhando me perco no doce dos teus lábios, enquanto num amplexo
ardente, descomplexado, comprometido, te acolho sorrindo e minhas mãos te
percorrem derivando dos ombros para o delgado da cintura, agora devagar os
altos e suaves montes das tuas ancas, devagar devagarinho nas tuas coxas duras,
retesadas, sinto-o na ponta dos dedos ao tocar-te as virilhas suadas e então,
reflexo não do espelho mas da alma, bocas apressadas a língua demorando o
passeio nos teus lábios, os dedos encantando-se aveludados noutros lábios.
E
nós não já tremendo mas gemendo, repentinamente as línguas num abraço, o dedo
precipitadamente em ti, suavemente, titilando-te o amor profundo, sentindo-te
escorregando em ti, até que meigamente rodas sobre ti neste amplexo louco em
que sonhamos, percebo-te as costas tensas, as tuas curvas contra mim e nas
minhas mãos duas maçãs hirtas e eu às dentadinhas mordo-te a nuca, o pescoço,
inclinas-te, curvas-te, um sussurro, empinas, agora, tudo, todo sim, parem o
tempo, pára o tempo,
parou
o tempo, um baloiço baloiçando, o baloiço num arco alto, cada vez mais alto,
simmmm… maisss … mais altoooo … mais fundo… até virar… não pares,
empurraaaaaa.. E de pronto um flash, um clarão que cega, uma luz que acalma,
que nos pára como se … uma fotografia, deixa estar querida, não tires agora
amor, agora não por favor, murmuras;
-
Selfies agora não please. Deixa-te cair, quero dormir, e sonhar, sim,
abraçadinhos, juntinhos, coladinhos, pegadinhos,
Amo-te
Quem sois vós, quem és tu que assim para
mim ousas e falas ?
Quem és tu que me afundas ideias e
pensamentos, tu que me fazes picar até ao fundo do mar para no momento seguinte
te ergueres voando à minha volta, revoando três vezes, chiando, revoando três
vezes, três vezes à minha roda rodaste mostrengo rodopiando e dizendo:
- Quem és tu que haveis ousado entrar
nos meus domínios, nestas profundezas, quem sois que vós não desvendo, quem
sois que vos amais no fundo do meu mar, do mar mais negro do mundo ?
E
abraçando-te com maior ardor, eu, imaginando-me no leme tremi e disse:
-
Eu, a quem o amor tirou para sempre todo o medo !
E
por três vezes do leme as mãos ergui, e três vezes ao leme as reprendi.
E
disse no fim de tremer três vezes:
-
Aqui ao leme sou mais do que eu, sou amor sem fim querendo o mar que é teu, e
mais que tu mostrengo que minh’alma teme e que rodas nas trevas do fim do
mundo, manda esta vontade que me ata ao leme, um amor sem fim, um amor sem
fundo que quer o mar que é teu, e este amor que é meu e o maior do mundo. *
Mas que porra é esta ? Onde estou ? Quem
vem lá ? Quem está ? Quem falou para mim ? Juro não voltar a fumar desta
merda.
*
NOTA: O final deste trecho do texto marcado com itálico é uma adaptação do
poema O MOSTRENGO de Fernando Pessoa.
F I M
Por: Humberto Ventura Palma Baião