O meu avô Zé, por quem sempre nutri
enorme carinho, contava-me, sentando-me quando menina nos seus joelhos,
histórias da República que eu então não entendia, mas cuja sonoridade me
tolhia, me prendia a atenção, curiosa dos finalmentes,
sempre imbuídos de uma sabedoria que apurara no decurso da sua longa vida.
Recordo uma das suas histórias a
propósito de um “cavalheiro de infantaria”, homem com longa experiência da
derrota mas com um profundo conhecimento deste povo, o que lhe permitiu ver o
que ninguém queria ver; que mais ninguém que não ele iria ganhar aquela prova.
Só ele acreditava numa tão evidente verdade, tão evidente que nenhum outro nela
queria acreditar.
De tão incrédula essa verdade tornara-se absurda, pelo que
enquanto uns esperavam que a vida passasse sentados nas soleiras das portas,
outros entretinham-se perseguindo ilusões e ideias disparatadas.
Entre estas duas posições, tão opostas
quanto antagónicas, flutuava no centro um numeroso e volúvel grupo de
indecisos, sonhando carreiras e contando cadeiras para curar insónias, gente a
quem o mau dormir aconselhava esperar um messias que se perfilasse no horizonte
como vencedor, para nele então votarem.
Alguém gritou que como de outras vezes as
eleições seriam uma palhaçada e qualquer que fosse o palhaço o circo seria
sempre o mesmo. Uns não quiseram acreditar, outros houve que não acreditaram
porque não quiseram, sendo que os mais cépticos logo trataram provar através de
dogmas e axiomas quanta mentira havia escondida em tamanha verdade.
Pelo sim pelo não e não fosse a verdade
provar estar errada, mandaram-se vir da estranja especialistas solenemente
importados com esse fim, e que projectaram metódica e arbitrariamente os ganhos
e as derrotas de cada parte para gáudio dos incréus.
Assim, enquanto uns se posicionavam à
direita e outros à esquerda, os crentes na vitória de que todos duvidavam,
foram, por razões que só a eles convinham advertindo o povinho e o povão do
caos em que a Pátria cairia no caso de outros triunfarem, pelo que o seu
próprio triunfo se celebrou com semanas de antecedência. Contudo, e porque no
fundo nem eles acreditavam na verdade com que nos mentiam, foi consultado um
oráculo, figura que não tendo vingado no caldo das meias verdades, se vingou
tornando-se vidente, evidente que se tornou não ser sua especialidade a isenção,
nem ser essa a intenção. Ditando pragas do alto do pedestal ajudou a cerzir o
destino que é de todos nós, coisa que todavia muitos só iriam descobrir mais
tarde. Adiantando-se dessa forma ao triunfo logo ali quebrou o jejum e o luto
por vitória a que nunca conhecera o sabor, mas que reconhecia noutros a quem
recomendava como quem receita um sonífero.
Uma vez solta aos quatro ventos a profecia uns
morreram logo ali, outros quedaram-se estáticos frente aos televisores fingindo
uma surpresa que já não o era e tentando com esforço e gestos desesperados
afastar de si o céu que lhe caíra em cima. Tal desiderato foi, para a menor maioria que a
história alguma vez registou, um alívio. Para quem esperava se perdesse ser
mandado para a Sibéria despojado dos bens ou despedaçado pelos esquerdistas,
foi na realidade o acordar de um pesadelo que os atormentava.
Assim se salvou a Pátria, assim se
evitou que os bancos fossem assaltados por avaros receosos que lhes
confiscassem o dinheiro, e mesmo sem fronteiras, terminou para muitos a
trabalheira de colocarem o dito a bom recato lá fora. Os aeroportos não se
lotaram de fugitivos tementes pela própria vida. O país estava salvo, não houve
necessidade de jantares secretos, de reuniões politicas nem do traçar de planos
de desestabilização económica ou derrube de governos.
Não deixaram de fazer o habitual e
patriótico brinde pela esperança na nação, aliviados que ficaram todos por não
terem que empenhar os seus pecúlios p’la restauração da ordem e da autoridade.
Um último recurso, em que até mesmo os vencedores tinham pensado num assomo de
coragem, o golpe militar, estava literalmente de parte por desnecessário e fora
de moda.
Haviam conseguido o que eles mesmos
julgavam impossível, levar a esquerda a morrer por ela própria enredada em
atribulações e questiúnculas de quem não tem grandes interesses a defender nem
rasgos de inspiração ou imaginação quando no poder.
A sua ambição era grande, já possuíam os
meios de comunicação mas faltava-lhes o que agora obtiveram, poder. O meu avô
Zé não conheceu Andy Arnhol, a quem teria dado razão, provou-se mais uma vez
que até o mais desvalido tem na vida os seus cinco minutos de fama.
***** By Maria Luísa Baião, publicado no Diário do Sul,
rubrica "KOTA DE MULHER" a 22-03-2002. Alusão à vitória de Durão
Barroso nas eleições de 2002 após a fuga de António Guterres que abdicara.