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domingo, 31 de março de 2019

587 - FLORES DE AMENDOEIRA, by Luísa Baião *


É domingo. A solenidade do dia e o frio quebram-me as rotinas. Uma procissão não saiu ao adro. Eu teimo mas, o sol retraiu-se e tive por momentos de aconchegar luvas e cachecol. Enganou-nos a todas este astro tímido, brilha mas não aquece e o povinho, que nada parece esquecer, afirma há muitos anos tal coisa não se ver. Verdadinha que se não vê, pior, sente-se na pele e de tal modo que, tiritando mas gozando os luminosos raios em que me enleio, não evito, por ser domingo, o meu passeio habitual.

 Já lá vão três bicas, bebidas como brasas com que procuro alimentar a fogueira ou a fornalha do meu viver. Vou desandando, percorrendo as ruas e escolhendo os passeios matizados por este sol que me refresca enquanto, delícia das delícias, no céu, o arco-íris nos abençoa. Derivo para o campo. Algumas flores, como eu transidas, ou se quedam como avezinhas inactivas nos canteiros que soalheiros ainda não foram este ano, ou, envergonhadas fecham-se em copas e não desabrocham por represália o encanto das suas pétalas e cores. Poucas são as que, nem quedas nem mudas e apesar de pelas geadas tolhidas, se arrogam um ar de sua beleza.
  
O tempo anda cambalhotando o planeta, qualquer dia rotações transladam-se, cortam-nos as vazas numa mão para que não tenhamos naipe. Emissões e poluições irão traçar-nos ao arrepio os hábitos futuros. Por enquanto nada parece acontecer neste cantinho para além do frio sofrido. Enrolo-me em mim e continuo este passeio de passos perdidos. Rumo além onde, iludida pelas cambalhotas que damos, uma linda amendoeira como pavão que há muito não vimos por estas terras exuberante mostra o seu leque de ramos floridos.
  
Há cores que acalmam, a amendoeira sabe-o pois nos suga com seu hálito. Não estou só, muitas outras debaixo dela se acolhem sorvendo um odor idílico que nos aquece a alma e gela o nariz. Batemos os pés, esfregamos as mãos e, de luvas, todas, tentamos apanhar o ar expirado, nuvem dissipada no gesto que enreda as conversas e une os propósitos. Ao abrigo desse halo celeste trocamos conversas como se nos conhecêssemos há muito. A amendoeira, de ramagens de malha larga a todas envolve e enquadra, ninguém perde o astro-rei, nem o aroma desse turíbulo natural, qual incenso de rosa pintado que todas, enlevadas gabamos.

O ar, aromatizado mas frio não cresta contudo o diálogo. Todas escusam admitir porquê mas sentem-se agora menos frustradas, oprimidas, expectantes, como se do abraço destas amendoeiras fluíssem apaziguadores esteios que, nos dias que hão-de vir sosseguem ânsias e crispações urdidas, assimiladas por um Inverno em turbilhão e que como ele nos trocara as voltas.

 Ensejo roubar ali mesmo um ramo florido, retraio-me, a árvore é nossa, é de todas, em vez disso fecho os olhos, respiro fundo, trancando essa recordação enquanto, uma vez mais, suspiro de alívio por o tempo estar a mudar.
  

* By Maria Luísa Baião, escrito quinta-feira, ‎3‎ de ‎Março‎ de ‎2005, ‏‎pelas 11:57 h