E lá
fomos entremeando o mastigar e a conversa, ele estava sozinho o que muito me admirou,
todavia não chegou para lhe ter tocado nos dois assuntos para ele mais
candentes e que mais o alegram, pois para tocar no primeiro, automóveis, eu não
me conteria e iria forçosamente tocar no segundo, mulheres, e aí chiaria mais
fino. Mantemos uma amizade de décadas e não penso sequer em beliscá-la, mas que
a coisa me dá gamas de rir cada vez que a lembro lá isso dá, e bastantes.
O
Jeremias, é assim que se chama esse meu amigo glutão, tão glutão como o Baião
diga-se em abono da verdade, é um homem feliz, feito, vivido, na casa dos cinquenta
e tal mas mantendo o vigor e a frescura que a vida ociosa consentem, não
estando porém eu apodando-o de ocioso pois tem atrás de si toda uma vida de
trabalho, aliás bem conduzida e bem proveitosa que lhe permite agora viver dos
rendimentos e viver bem, melhor que bem.
Não o invejo, a vida também não me tem sido
madrasta e ainda que não seja um homem rico sou um rico homem e isso basta-me.
O que nele me faz rir são algumas opções por si feitas ao longo da vida e que
dificilmente entendo, percebo-as mas não as aceito, nem tenho que as recusar ou
aceitar, nem criticar tão pouco, mas que me fazem rir de modo tragicómico fazem
pois colidem fortemente com as minhas linhas éticas e morais. Mas lá iremos.
O bom
do Jeremias foi comerciante, negociante, visionário, matreiro, sabido, estulto,
e muito ajudado pela mulher, com quem se casara cedo e de quem tem duas filhas
lindas como a mãe e fortes como o pai. Enriqueceu, o Jeremias quando deu por si
estava rico, tendo-me confessado uma vez que nem sabia como, mas estava, tudo
lhe corria bem e o país abundava de parvos, ora quem tem olho é rei, e ele teve.
Depois
de rico acometeu-lhe necessidade de diferenciação, que não era como a maioria
não era mesmo, notava-se, e havia que comemorar isso tanto quanto assinalá-lo,
o Jeremias queria reconhecimento, consideração e deferência, tendo escolhido
para tal uma nova identidade, tornou-se ele mas outro, passou a fumar charutos,
ele que nunca tocaram num cigarro, e adquiriu em mais um bom negócio dos dele
um Mercedes lustroso, um carrão quase novo, nem um ano tinha, carrão que o
catapultou para as bocas do mundo e cujas linhas aerodinâmicas lhe deram noção
de que a vida fluía, podia ser boa, ser melhor, ser diferente, tão notória era
a diferença por ele já sentida quando sentado no Mercedes se arrastava
vagarosamente com o fito de dar a toda a gente oportunidade de o ver e de o
invejar e cumprimentar.
Uma
coisa leva a outra e, quando deu por si a mulher estava velha, feia, pouco
lustrosa, marreca, ficando mal quando sentada ao seu lado no tal carrão, de
linhas curvas e aerodinâmicas, curvas que ela não tinha e talvez nunca tivesses
tido assim tão arrojadas quanto as daquele carro que tanto o impressionava, e
mudava.
Rico
já estava, e quando a crise veio limitou-se a viver dos rendimentos aforrados,
tendo-se habituado a não arriscar nada, sobrando-lhe tempo para passear e para
pensar.
E o pior é quando um homem se põe a
pensar…
Da
mulher, que tanto o havia ajudado nos negócios pois não era nada parva ele já
não precisava, tinha o vagar a ociosidade e os charutos, o carrão, as filhas
criadas e vai daí pensou dar nova demão em si mesmo e, se bem o pensou melhor o
fez, duma só penada desfez-se da mulher, da empenada, da enjeitada e arranjou
novo modelo mais conforme com as suas aspirações, toda ela aerodinamismo, linhas
e curvas, não tinha nem um ano de divorciada mas foi Igualmente um bom negócio,
imagino eu, tão feliz o via todos os dias.
Finalmente
uma coisa que o não envergonhava e estaria à altura de competir com o carro e
até com ele, pois se muita gente já se virava quando ele passava, agora mais
gente ainda pararia e pasmaria ao vê-lo passar. Muito mais gente o
glorificaria.
Nunca
com ele comentei as mudanças, mas pela surdina via e calava. Ela não dizia uma
para a caixa mas na cama imagino as voltas que dava ou daria tal o grau de satisfação
que Jeremias arvorava. Montou-lhe casa, por sinal perto de mim, e não sei se
lhe arranjou aquela ocupaçãozinha que lhe dá um ar de Madre Teresa de Calcutá e
julgará ele a livrará de piores más-línguas que a deste escriba. Ela agora veste
uma bata branca e é voluntária, ajuda os doentinhos e os pobrezinhos, e eu sei
lá quem mais, não posso imaginar, não posso especular, seria pecado.
Seria
pecado, preconceito, juízo de valor, precipitado, errado, sei que não devo ir
por aí, não devo especular mas não pude deixar de me lembrar quando mais novo
adorava brincar aos médicos, doentes, enfermeiras e outras fantasias tais. E
gostava tanto que ainda guardo num velho baú uma farda de enfermeira alva de
brancura e cheia de folhinhos e cruzes vermelhas.
Mas
não, de Madre Terezinha de Calcutá não tenho nenhuma fantasia, talvez o Jeremias,
perguntem ao Jeremias, talvez tenha uma quem sabe ? Só sei que nada sei, só sei
que cada macaco no seu galho e ele Jeremias, e a sua mania da ginástica e da
eterna juventude lá terá um galho onde se pendurar e a Madre Teresa de Calcutá alguém
a quem ajudar se ele cair, a imaginação não tem limites meus amigos.
Nem
a imaginação tem limites, nem a fé ou a devoção …