Adoro violas violões e violoncelos. Só pelos violinos
e violinhas não tenho igual perdição.
Sou um melómano.
Sou um perdido. Pecador sem remissão.
Desde que, em pequeno, cursei as aulas do maestro Rafael (hoje teria o nome na lista da ministra) e que o paizinho me comprou uma
viola que excitado levantei no estafeta Semião, (1) anima-me esta devoção, esta
fidelidade ao instrumento, esta constância no gosto, esta fixação na
preferência.
En effet, il est
encore aujourd'hui.
Com efeito assim é ainda hoje e, cada vez que posso,
cada vez que a devoção me acode e tal fé me tolhe agarro-me ao violão, a quem
pego docemente no braço e arrasto num abraço para o sofá mais próximo, me
estico e mimo ternamente, dedilhando-o até que, vibrando os dois, ouçamos no
céu o suave chilreio das virgens que ora fazem fila em Kobani.
En effet, il est
encore aujourd'hui.
Com efeito assim é ainda hoje, esta paixão pelo
violão, junto de quem me perco e medito, a quem num amplexo cinjo pela cintura
estreita como quem lhe descansa na anca o braço cansado, p’ra lhe beijar os
seios redondinhos com amor, nos quais roço a face esperando, esperançado,
conseguir um dia ouvir bater-lhe o coração, enquanto lhe beijo a boca marchetada
a madrepérola e, de olhos fechados, lhe dedilho as cordas num crescendo Allegro
cuja ressonância nos faz vibrar juntos, coladinhos, abraçados numa melodia sem
fim, sonhada desde tempos antigos e eu, que aos primeiros acordes faço dos
dedos palheta e ar sofrido, a medo, tento um harpejo impossível atento às
oitavas e às graves, buscando acertar o timbre no que é para mim e decerto para
nós dois prelúdio de um concerto maior onde transgredimos todas as escalas.
En effet, il est encore, cette passion qui me perd.
Com efeito assim é ainda, esta paixão que me perde.
Outras vezes numa pulsão hesitante, como quem por
precaução estuda o caminho a trilhar ou apalpe a cama onde soe deitar-se.
Milhares de vezes ergui os braços ao alto da sua
escala de trastes de platina, levando nas mãos um carinho que deixo escorrer-lhe
ao comprido do tampo de cedro alimentando um sonho lindo, mãos descendo ao
longo dos braços até esse corpo em oito, ao peito duro e liso como ébano,
à cintura, às ancas, terminando sempre nos acordes que repito sem cessar, e dedilhando
cordas tão bem conhecidas já e a cuja ressonância não resisto como se a
repetição, o eco, fosse para mim uma necessidade, um vicio, uma fé, uma atitude
que contudo não passa de heresia, um pecado sem remissão, repetido, um hábito
adquirido na embriaguês, no delírio desse langoroso dedilhar que, torpe, nos
toma e submerge, afogados na mesma água em cuja sede nos atormentamos e
sofremos mas só na sua boca matizada dessedento.
Por isso rejubilo cada vez que no colo cruzo o violão
e me perco como se finalmente a travessia de um deserto galgada e eu, cúpido,
me entregasse à recompensa concupiscente de um prémio há muito perseguido.
É esta devoção, esta fé, esta entrega que me resgata
da ferocidade da passagem dos dias, iguais, monótonos se não fosse o dó ré mi
instrumental que arranco de ti, ou os fá, sol, lá que me agitam numa efervescência
comprimida até que num estridente si, ou dó, expludo em crescendo allegro
moderato e vivace logo presto, prestíssimo, e te abraço enquanto meiga, ritmada
e compassadamente deixo cair em ti palmadinhas nas costas, cuidadoso de ti,
receoso de danificar-te a estrutura, deixar mossa ou estalar o verniz.
En effet, cette
passion me perd décidément.
Com efeito esta paixão decididamente perde-me.
E é neste final que me abandono e adormeço, abraçado
a ti, as cordas inda trinando do dedilhar apressado que a urgência decretara,
p’ra terminar abertamente num histrionismo avassalador, absorvente, envolvente
e comovedor que me torna melhor, uma pessoa melhor, em paz comigo, com o mundo,
o mesmo mundo de onde fujo para em ti me refugiar, temente do dia em que não te
faça vibrar, por isso estico a corda até onde posso e sou capaz, receoso de
destapar os pés para cobrir a cabeça, como se cada trinado arrancado de ti
consumisse e abreviasse a vida, a alma, o âmago, que disputo sem cessar e em
cada sessão te arranco, sedento, faminto, como se somente em ti o remédio para
os males do mundo ou a cicuta capaz de extinguir os meus desvarios, porque é já
impossível esconder, o que me atrai é o abismo, a perdição, o pecado original,
como se possuísse um trauma que me condicionasse ou conduzisse numa cadência de
refrão até ti, sempre a ti, sempre ao sonho, ao mesmo sonho em que te atravesso
no colo e te arranco em esfusiante alegria ou angustiante revolta cada melodia
sonhada, até que fatigados, os acordes e as harmonias finando-se, deitados numa
pauta, abatidos, exauridos, a mente se me acomoda numa bonança pós submissão do
turbilhão em mim despertado e adormeço plácidamente.
(1) Desejando veja o texto 71 de Julho de 2011 http://mentcapto.blogspot.pt/2011/07/71-vejam-so-o-que-eu-perdi.html