Foi
há tantos anos que se me esvaiu a memória. Contudo recordo o cenário embora quanto
aos pormenores, chapéu. O meu primo Zé Baião bufando, como era hábito nele
sempre que a conversa o apaixonava, inflando-se-lhe o peito e a verve, nem
cabendo dentro da farda quando assim era. Não era a farda o móbil da conversa, era a filha, era dela quem, a propósito de tudo e de nada ele, baboso e envaidecido, fazia motivo e, desta dito e feito, lá vinha a lenga-lenga habitual enquanto
ele inchava e a boca sorrindo se lhe retorcia para o lado;
- Aquilo
é que está ali uma moça fisicamente bem constituída !
E
pronto ! Já me lembro ! Às vezes basta um pequeno empurrão para que a memória
retome o seu carreiro, os neurónios e as conexões têm destas coisas. Em redor
do poço o meu pai descascava uma tangerina, esse meu primo punha e tirava as mãos
dos bolsos do colete, era um domingo ou feriado certamente pois ele não
envergava a habitual farda rosa velho, ouvia lá longe a minha mãe pita pita
pita chamando as galinhas, alguidar de couves e urtigas migadas à anca, segurando-o
com um braço enquanto com o outro fazia como os homens nas sementeiras, espalhando
a mistura enfarelada que punha sempre em alvoroço o galinheiro. Do meu irmão
mais novo népia, não me recordo, mas o mais velho segurava um envelope grande e
volumoso que a embaixada da Rodésia, actual Zimbaué, lhe enviara com vasta,
completa e belíssima informação sobre o Parque Nacional de Matobo*, que ele
dissera querer visitar, ludibriando a embaixada, essa e muitas outras, que
caindo no logro o enchiam, para deleite do meu pai, de belas fotos de países e
lugares onde a imaginação os levava. Não havia net é certo, mas havia muita
fantasia e originalidade nos modos de contornar os limites que a pobreza
material ditava.
Mas
desvio-me do essencial, falavam das belezas naturais de cada país e continente,
do pincho do tigre e do leão, e aqui o meu pai cavava no chão, rodando o
calcanhar e abrindo uma covinha onde pudesse fixar umaa lança com que suster o
ataque das feras inimigas que se abateriam sobre essa lança e na qual se cravariam. A
velocidade de antílopes, gazelas, gnus e chitas era também assunto, embora para
mim menos interessante. Eu ia chapinhando com a mão no tanque enquanto eles viviam
todas aquelas aventuras, até que ao falarem da formusura das mulheres Zulus,
Xonas, Fulas, Bantas e tantas outras que me é impossível lembrar eu acordava da
minha preguiça e afinava os ouvidos, interrogando-me como saberiam eles tanto
acerca daquelas mulheres negras cuja beleza era alvo de disputas e diatribes,
mas que não lembrava quando nem como as teriam eles visto ou visitado.
As
brochuras, lá está, viam-nas nas brochuras que todas aquelas embaixadas
remetiam lá para casa e nas quais também eu me deliciava olhando demoradamente
as fotos coloridas, admirando não propriamente as belas mulheres, fisicamente
bem constituídas como diria o meu primo da sua filha adolescente, mas a
maravilhosa bicharada que preenchia páginas e páginas de sonhos e aspirações,
senão a mim, a meu pai e ao mano mais velho, o artista do ludibrio e da arte de
fazer parecer, aparecer e desaparecer o que quer que fossem vestígios da
tabanca ou do palácio onde vivíamos.
Foi
também assim, vendo o mundo que o carteiro trazia em grossos pesados e
volumosos envelopes, que se me acicatou o gosto pela leitura e a minha mente
começou primeiro devagar, depois ainda mais devagarinho, a saltar os muros do
quintal, doravante suficientemente baixos para que os pudesse galgar. Por isso
me foi fácil dedicar-me à leitura dos muitos e muitos exemplares da revista Selecções
do Reader's Digest, que nem sei como havia tantas e muito menos me lembra agora
como apareciam lá em casa. A verdade é que foram um tesourinho que explorei
durante bastante tempo e com desmedido prazer. Foi numa dessas antiquíssimas
revistas que li o artigo com que em parte titulei o texto que hoje vos ofereço, portanto
uma leitura com mais de cinquenta anos mas que o reboliço a que hoje assisto à
volta do boom turístico no Alentejo me obrigou a recordar e sobretudo a que me debruçasse
sobre essas memórias dos meus quinze ou dezasseis anos, pois não teria mais por
essa época.
Pois
foi precisamente uma fotografia inserida numa dessas revistas que me chamou a atenção,
um grupo de banhistas, qual delas a mais bronzeada, algumas negras esculturais,
não sei se zulus, fulas ou bantas, e a
legenda respectiva, a que na altura nem dei a devida importância mas que muitos anos mais
tarde e lembrando a fisicamente bem constituída filha do meu primo, me deixou
fazendo contas de cabeça e somando dois mais dois.
A legenda
da foto dizia nem mais nem menos que isto;
“
Mulher boa e melancia grande ninguém come sozinho” …
a propósito do surto turístico
que as paradisíacas praias, lugares, cidades e países experimentavam, e de como
esse boom ao invés de os enriquecer os arruinava. De tudo me lembro como se
fosse hoje, até das bundinhas. Hoje custa-me a crer como foi possível tal
revista apresentar tal artigo, “Dólares Redondos”, tão tendenciosa e facciosa
ela era e é, como certamente ninguém desconhecerá.
Mas apresentou,
e eu jamais o esqueci, nem esqueci o facto de que nem tudo que parece é. Grosso
modo o vanguardista artigo mostrava e demonstrava como o dinheiro do turismo só aparentemente
existiria nos países onde esse turismo agitasse a economia, tais como o México, o
Chile, Costa Rica, Panamá, Jamaica, Rep. Dominicana e por todo o mundo, (Cuba
não era citada embora antes da revolução fosse considerada o bordel das
Caraíbas e local de férias por excelência). Quanto à riqueza supostamente
criada pelo desenvolvimento turístico não só nem aparecia como desaparecia tal
qual um boomerang volta à mão que o lançou ou uma moeda que caia no chão rola e
rebola descrevendo um círculo até tombar no sítio onde começara a rolar. O mecanismo,
ou o fenómeno como era descrito na revista funcionava assim;
1 –
Milhares, centenas de milhares ou milhões de turistas adquiriam nos seus países
de origem (no caso os EUA) os respectivos pacotes de férias cujo pagamento
efectuavam.
2 –
Nas estâncias, cidades ou países de férias, ou de destino, deixariam no máximo uns
trocos numas bicas, nuns gelados, numas coca-colas ou pinas coladas pois o
pacote na maioria das vezes até a diversão nocturna e os aperitivos e cocktails
incluia. Gastarão somente algum dinheiro de bolso, nos postais ilustrados, nuns
rolos para as máquinas fotográficas, nuns maços de cigarrets, num isqueiro com
uma bela imagem do lugar, numa qualquer recordação não muito cara do handcraft
local para levar à mamã à amiga ou ao amigo, umas chinelas maded handcork, uma
miniatura do Templo de Diana, um chapeuzinho preto com uma foice e um ramo de
espigas, um grupinho em barro representando os cantadores de cante alentejano, e
pronto, estão as férias feitas.
3 - Claro
que os hotéis que os albergam sempre têm despesas, com luz, com água, com o aprovisionamento
da cozinha, do bar, mas raras unidades hoteleiras pertencem a gentes da terra,
normalmente são pertença de cadeias internacionais cujo dono se desconhece e
estará algures na Arábia, nos USA, na Rússia ou na África do Sul ou noutro sítio
qualquer. Agora digam-me lá se o Costa teve ou não teve razão ao taxar cada
dormida em Lisboa com um euro ? Quem sabe se não será o único beneficio que
terá de quem lhe gasta as calçadas cuja reposição lhe caberá a ele pagar, como
caberá pagar e abrir estradas e ruas e ruelas e acessos e viadutos e colmatar os
estragos que os turistas façam na cidade. Para já em Lisboa estão a facturar os
italianos que se fartaram de vender-nos tuck-tucks …
4 –
Ora ficando o dinheiro dos pacotes logo na origem, se por mero acaso o hotel
dessa cadeia, por exemplo no Brasil ou na Cochinchina, apesar de tudo tiver
lucros, logo é chamado a contribuir e suportar os custos de investimento da
casa mãe dessa cadeia hoteleira no seu país de origem, forma sagaz e encapotada
de para lá transferir os lucros, apresentando posteriormente prejuízos e muito
licitamente escapando-se a ser taxado local e fiscalmente.
5 –
Os dólares ou poucos dólares do pé-de-meia, redondos que são acabam rebolando sempre
no sentido da partida, poucos ou nenhuns atingem o ponto de chegada, é raro que
esses hotéis reinvistam nos locais que exploram até à medula e a que se agarram
como lapas.
Por cá
o dinheirinho da luz vai para os chinocas, o da água para os amigos do Mário
Lino que deu a volta ao Zé do Cano, ou deu a volta ou deu comissões, isto sou eu feito
má-língua, claro que não passa de uma aleivosia minha, de uma suposição de mau
gosto, pois toda a gente sabe não haver o mínimo de provas em que se fundamente
esta afirmação. No fundo a questão do boom turístico no Alentejo é saber-se
quem ganha com ele. Por enquanto sopeiras, recepcionistas, ajudantes de copa e
cozinha, empregados de mesa, seguranças e barmans têm o futuro assegurado, pedreiros,
serventes, canalizadores e electricistas também têm feito uns biscates, porém
são essas as profissões que por agora o futuro nos oferece, mais que isso o
tempo o dirá…
Festeje-se
então, pelo menos enquanto houver quem saiba como usufruir dos fundos europeus,
não podemos criticar quem tem olho, afinal os da terra também podem concorrer a
eles e se o não fazem será porque não querem, ainda há pouco uma amiga me perguntava
o que seria a democracia num mundo dominado por imbecis… Um mero problema de consciências ou de olhos que se não abrem ? Pensem nisso.
Uma curiosidade; http://www.dn.pt/dinheiro/interior/verao-de-recordes-no-turismo-nao-criou-emprego-4953968.html