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quarta-feira, 30 de março de 2016

328 - O TURISMO, O PAÍS, O ALENTEJO, OS DÓLARES REDONDOS E A GRANDE ILUSÃO ...


              Foi há tantos anos que se me esvaiu a memória. Contudo recordo o cenário embora quanto aos pormenores, chapéu. O meu primo Zé Baião bufando, como era hábito nele sempre que a conversa o apaixonava, inflando-se-lhe o peito e a verve, nem cabendo dentro da farda quando assim era. Não era a farda o móbil da conversa, era a filha, era dela quem, a propósito de tudo e de nada ele, baboso e envaidecido, fazia motivo e, desta dito e feito, lá vinha a lenga-lenga habitual enquanto ele inchava e a boca sorrindo se lhe retorcia para o lado;

- Aquilo é que está ali uma moça fisicamente bem constituída !

E pronto ! Já me lembro ! Às vezes basta um pequeno empurrão para que a memória retome o seu carreiro, os neurónios e as conexões têm destas coisas. Em redor do poço o meu pai descascava uma tangerina, esse meu primo punha e tirava as mãos dos bolsos do colete, era um domingo ou feriado certamente pois ele não envergava a habitual farda rosa velho, ouvia lá longe a minha mãe pita pita pita chamando as galinhas, alguidar de couves e urtigas migadas à anca, segurando-o com um braço enquanto com o outro fazia como os homens nas sementeiras, espalhando a mistura enfarelada que punha sempre em alvoroço o galinheiro. Do meu irmão mais novo népia, não me recordo, mas o mais velho segurava um envelope grande e volumoso que a embaixada da Rodésia, actual Zimbaué, lhe enviara com vasta, completa e belíssima informação sobre o Parque Nacional de Matobo*, que ele dissera querer visitar, ludibriando a embaixada, essa e muitas outras, que caindo no logro o enchiam, para deleite do meu pai, de belas fotos de países e lugares onde a imaginação os levava. Não havia net é certo, mas havia muita fantasia e originalidade nos modos de contornar os limites que a pobreza material ditava.

Mas desvio-me do essencial, falavam das belezas naturais de cada país e continente, do pincho do tigre e do leão, e aqui o meu pai cavava no chão, rodando o calcanhar e abrindo uma covinha onde pudesse fixar umaa lança com que suster o ataque das feras inimigas que se abateriam sobre essa lança e na qual se cravariam. A velocidade de antílopes, gazelas, gnus e chitas era também assunto, embora para mim menos interessante. Eu ia chapinhando com a mão no tanque enquanto eles viviam todas aquelas aventuras, até que ao falarem da formusura das mulheres Zulus, Xonas, Fulas, Bantas e tantas outras que me é impossível lembrar eu acordava da minha preguiça e afinava os ouvidos, interrogando-me como saberiam eles tanto acerca daquelas mulheres negras cuja beleza era alvo de disputas e diatribes, mas que não lembrava quando nem como as teriam eles visto ou visitado.

As brochuras, lá está, viam-nas nas brochuras que todas aquelas embaixadas remetiam lá para casa e nas quais também eu me deliciava olhando demoradamente as fotos coloridas, admirando não propriamente as belas mulheres, fisicamente bem constituídas como diria o meu primo da sua filha adolescente, mas a maravilhosa bicharada que preenchia páginas e páginas de sonhos e aspirações, senão a mim, a meu pai e ao mano mais velho, o artista do ludibrio e da arte de fazer parecer, aparecer e desaparecer o que quer que fossem vestígios da tabanca ou do palácio onde vivíamos.

Foi também assim, vendo o mundo que o carteiro trazia em grossos pesados e volumosos envelopes, que se me acicatou o gosto pela leitura e a minha mente começou primeiro devagar, depois ainda mais devagarinho, a saltar os muros do quintal, doravante suficientemente baixos para que os pudesse galgar. Por isso me foi fácil dedicar-me à leitura dos muitos e muitos exemplares da revista Selecções do Reader's Digest, que nem sei como havia tantas e muito menos me lembra agora como apareciam lá em casa. A verdade é que foram um tesourinho que explorei durante bastante tempo e com desmedido prazer. Foi numa dessas antiquíssimas revistas que li o artigo com que em parte titulei o texto que hoje vos ofereço, portanto uma leitura com mais de cinquenta anos mas que o reboliço a que hoje assisto à volta do boom turístico no Alentejo me obrigou a recordar e sobretudo a que me debruçasse sobre essas memórias dos meus quinze ou dezasseis anos, pois não teria mais por essa época.

Pois foi precisamente uma fotografia inserida numa dessas revistas que me chamou a atenção, um grupo de banhistas, qual delas a mais bronzeada, algumas negras esculturais, não sei se zulus, fulas ou bantas, e a legenda respectiva, a que na altura nem dei a devida importância mas que muitos anos mais tarde e lembrando a fisicamente bem constituída filha do meu primo, me deixou fazendo contas de cabeça e somando dois mais dois.

A legenda da foto dizia nem mais nem menos que isto;

“ Mulher boa e melancia grande ninguém come sozinho” …  

a propósito do surto turístico que as paradisíacas praias, lugares, cidades e países experimentavam, e de como esse boom ao invés de os enriquecer os arruinava. De tudo me lembro como se fosse hoje, até das bundinhas. Hoje custa-me a crer como foi possível tal revista apresentar tal artigo, “Dólares Redondos”, tão tendenciosa e facciosa ela era e é, como certamente ninguém desconhecerá.

Mas apresentou, e eu jamais o esqueci, nem esqueci o facto de que nem tudo que parece é. Grosso modo o vanguardista artigo mostrava e demonstrava como o dinheiro do turismo só aparentemente existiria nos países onde esse turismo agitasse a economia, tais como o México, o Chile, Costa Rica, Panamá, Jamaica, Rep. Dominicana e por todo o mundo, (Cuba não era citada embora antes da revolução fosse considerada o bordel das Caraíbas e local de férias por excelência). Quanto à riqueza supostamente criada pelo desenvolvimento turístico não só nem aparecia como desaparecia tal qual um boomerang volta à mão que o lançou ou uma moeda que caia no chão rola e rebola descrevendo um círculo até tombar no sítio onde começara a rolar. O mecanismo, ou o fenómeno como era descrito na revista funcionava assim;

1 – Milhares, centenas de milhares ou milhões de turistas adquiriam nos seus países de origem (no caso os EUA) os respectivos pacotes de férias cujo pagamento efectuavam.

2 – Nas estâncias, cidades ou países de férias, ou de destino, deixariam no máximo uns trocos numas bicas, nuns gelados, numas coca-colas ou pinas coladas pois o pacote na maioria das vezes até a diversão nocturna e os aperitivos e cocktails incluia. Gastarão somente algum dinheiro de bolso, nos postais ilustrados, nuns rolos para as máquinas fotográficas, nuns maços de cigarrets, num isqueiro com uma bela imagem do lugar, numa qualquer recordação não muito cara do handcraft local para levar à mamã à amiga ou ao amigo, umas chinelas maded handcork, uma miniatura do Templo de Diana, um chapeuzinho preto com uma foice e um ramo de espigas, um grupinho em barro representando os cantadores de cante alentejano, e pronto, estão as férias feitas.

3 - Claro que os hotéis que os albergam sempre têm despesas, com luz, com água, com o aprovisionamento da cozinha, do bar, mas raras unidades hoteleiras pertencem a gentes da terra, normalmente são pertença de cadeias internacionais cujo dono se desconhece e estará algures na Arábia, nos USA, na Rússia ou na África do Sul ou noutro sítio qualquer. Agora digam-me lá se o Costa teve ou não teve razão ao taxar cada dormida em Lisboa com um euro ? Quem sabe se não será o único beneficio que terá de quem lhe gasta as calçadas cuja reposição lhe caberá a ele pagar, como caberá pagar e abrir estradas e ruas e ruelas e acessos e viadutos e colmatar os estragos que os turistas façam na cidade. Para já em Lisboa estão a facturar os italianos que se fartaram de vender-nos tuck-tucks …

4 – Ora ficando o dinheiro dos pacotes logo na origem, se por mero acaso o hotel dessa cadeia, por exemplo no Brasil ou na Cochinchina, apesar de tudo tiver lucros, logo é chamado a contribuir e suportar os custos de investimento da casa mãe dessa cadeia hoteleira no seu país de origem, forma sagaz e encapotada de para lá transferir os lucros, apresentando posteriormente prejuízos e muito licitamente escapando-se a ser taxado local e fiscalmente.  

5 – Os dólares ou poucos dólares do pé-de-meia, redondos que são acabam rebolando sempre no sentido da partida, poucos ou nenhuns atingem o ponto de chegada, é raro que esses hotéis reinvistam nos locais que exploram até à medula e a que se agarram como lapas.

Por cá o dinheirinho da luz vai para os chinocas, o da água para os amigos do Mário Lino que deu a volta ao Zé do Cano, ou deu a volta ou deu comissões, isto sou eu feito má-língua, claro que não passa de uma aleivosia minha, de uma suposição de mau gosto, pois toda a gente sabe não haver o mínimo de provas em que se fundamente esta afirmação. No fundo a questão do boom turístico no Alentejo é saber-se quem ganha com ele. Por enquanto sopeiras, recepcionistas, ajudantes de copa e cozinha, empregados de mesa, seguranças e barmans têm o futuro assegurado, pedreiros, serventes, canalizadores e electricistas também têm feito uns biscates, porém são essas as profissões que por agora o futuro nos oferece, mais que isso o tempo o dirá…

Festeje-se então, pelo menos enquanto houver quem saiba como usufruir dos fundos europeus, não podemos criticar quem tem olho, afinal os da terra também podem concorrer a eles e se o não fazem será porque não querem, ainda há pouco uma amiga me perguntava o que seria a democracia num mundo dominado por imbecis… Um mero problema de consciências ou de olhos que se não abrem  ? Pensem nisso.