Ofereceu-ma o
Senhor e alguma razão Ele há-de ter tido para tal, qualquer coisa em mim há que
se aproveitará, ou não teria eu sido brindado com a companheira que em sorte me
calhou. Não será a primeira vez que o digo e nunca me cansarei de o dizer, ainda
a acho linda como no primeiro momento, um caracter forte, uma personalidade bem
formada, justa, sensível, amorosa, inteligente, culta, esperta, amiga, e uma
montanha de resistência e de força ou não me andaria aturando há cerca de
quarenta anos.
Quis também o
Senhor dar-lhe uma carga que ela conseguisse suportar, talvez para a
experimentar, pelo que nos idos de 98 lhe concedeu a graça de um cancro da mama
que a obrigou a uma lufa-lufa que nem quero recordar e a forçou durante dois a três
anos a submeter-se a diversas operações que nenhum de nós deseja
lembrar. O tempo foi passando sem sobressaltos de maior, nós esfregando as mãos
de contentes e a coisa caindo no esquecimento. Na sua imensa sabedoria Ele
saberia o que andou fazendo, o que fazia, ou o que faria. O destino parecia
estar traçado à nascença, pelo que nada mais nos competia que ter fé e
acreditar estar o bicho morto matado e o problema ultrapassado.
Suposições,
mera suposições, o bicho voltou a acordar, a dar noticias de si, a exigir mais,
e desde 2010 que voltámos à giga joga que nos fizera andar em bolandas e numa
montanha russa em 98, valeu-nos o Senhor estar a ser complacente, ou
contemplativo, mas sobretudo o facto dela, Luisinha, ser resiliente como nunca
vi e dispor de anjos da guarda de um lado e de outro que a têm mantido cá,
comigo, connosco, com todos. Refiro-me ao pessoal médico, técnico e de enfermagem e
serviços da Unidade De Oncologia do Hospital do Patrocínio, que no que concerne
ao cancro faz milagres, não dá descanso ao bicho, e tudo faz para que ela viva, para meu gáudio e de toda a família e amigos.
Mas, há
sempre um mas, parece não haver bela sem senão, hoje mesmo nos dirigimos à
Unidade para mais uma consulta, análises e sessão de químio, pelas oito da
manhã estava quase vazia, pelas nove mais parecia terem descarregado ali todos
os autocarros da zona, o serviço ficou completamente atulhado de doentes, e
pior que tudo, doentes em pé, aquilo ficou violento, era violento, uma
violência, mas quem se importa com gente que está quase morta ? (Continua mais abaixo).
Parece que os
que vão morrer te saúdam César ! Salve Ceasar, afinal os doentes importavam-se,
importaram-se, e começou a correr um sururu, de inicio rasteiro, como uma surucucu,
e que ás tantas causou em todos, doentes e acompanhantes no mínimo grande indignação. E mais umas tantas volvidas haveria já doentes ou acompanhantes sentados na borda duma
grande floreira. Mal ou bem metade sentava-se mas mais de metade ficava em pé,
horas e horas, uma maca ali eternamente estacionada atrapalhava quem passava no
corredor, especialmente quem se deslocasse de cadeiras de rodas, os monitores LCD’s
LG e Panasonic que foram há meia dúzia de anos adquiridos ás carradas estavam desligados,
excepto um, portanto nem pensar em meios de distração, a distração estava resumida
a uma espera demorada e mórbida, uns queixando-se de cancro do estomago, outros
do colon, havia muitos dos intestinos e não consegui apurar quantos do pâncreas,
pulmão ou da pele, a meu lado um envergonhado temia urinar-se e molhar o seu,
seu dele, nos testículos, uma chatice, para cúmulo tinham sido retiradas
cadeiras da sala de espera em questão, e além destas há cerca de dois meses retirados
dois sofás do hall de entrada da Unidade, onde bombeiros se resfastelavam a descansar, ou cansados da labuta ou cansados das esperas, praticamente no mesmíssimo e largo
corredor de acesso à Unidade e que dispõe de imenso espaço mas não tem cadeiras,
isto nas barbas de quem não devia consentir tal, precisamente em frente a uma
organização de defesa e apoio ao doente oncológico em cuja pagela se vê como
missão entre outras coisas «Promover o seu bem estar, melhorando a sua
qualidade de vida» mas que, garanto-vos eu que foi o primeiro local onde me
dirigi com intenção de sugerir ou reclamar mudanças e perante as minhas
perguntas, isto é todos os dias ? vocês nunca viram isto ? Já alguma de vocês
tomou providencias, indagou ou tentou alterar a situação no sentido de melhorar
a presença de doentes e familiares ? As respostas já vossas excelências as
sabem, nada fizeram, nada faziam nem pensavam fazer, tal e qual, surpreendentes
mas foram as respostas que me deram. Ah ! E deram-me também umas folhas A4 que
lhes pedi e nas quais comecei de imediato a garatujar este texto. No entretanto
os bancos/mesa para revistas embora desconfortáveis acabaram servindo para alguns
de nós nos sentarmos, enquanto outros se entretinham competindo por assentar o
rabo num pequeno irradiador saliente da parede do corredor.
Diga-se que
não sou doente oncológico mas acompanhante, contudo custa-me estar em pé, e
hoje estive, das oito da matina à uma da tarde, a Luisinha ainda lá ficou a
meter na veia até ás dezasseis, mas eu não aguentava mais, era torturado por
todos os lados, eram os bicos de papagaio, eram as pedras nos rins, era a escoliose,
o pé chato, o sopro no coração, a cirrose hepática, os espigões nos
calcanhares, se dúvidas vos oferecer este meu testemunho dentro de dias terei à
vossa disposição um fac simile da minha ficha médica pessoal, digo uma cópia
digital do dito e que poderei remeter-vos a pedido, a questão acabou sendo
murmurada por todos tendo gerado quase um motim.
Como se chegou a isto ? Aquilo era pura desorganização, puro desinteresse, puro desinvestimento no bem estar do doente oncológico, como conseguem apesar de tudo médicos, técnicos, enfermeiros e auxiliares dar azo a verdadeiros milagres ? No meio de toda esta confusão salva-se a LPCC e os seus voluntários do chá café ou laranjada, entre os quais a minha amiga Inês que nunca se esquece da Luisinha nem de me dar um rebuçado de mentol, em chegando a casa tenho quer ver se não terei mau hálito, mas digam-me lá se não é caso para pensar com que raio de disposição entram os doentes na consulta ou dão inicio ao tratamento ? Ou com que raio de disposição estarão os médicos depois de assistirem gente que lhes chega desfalecida e sem garra para lutar pela vida ? Aposto que o psicólogo do hospital já fez uma qualquer observação, já elaborou um qualquer relatório, certamente reportou quanto se indignou com a tortura psicológica não tão pouco subliminar quanto possamos julgar e adstrita a este mecanismo administrativo que é a estada dos doentes oncológicos e seus acompanhantes em Évora.
Como se chegou a isto ? Aquilo era pura desorganização, puro desinteresse, puro desinvestimento no bem estar do doente oncológico, como conseguem apesar de tudo médicos, técnicos, enfermeiros e auxiliares dar azo a verdadeiros milagres ? No meio de toda esta confusão salva-se a LPCC e os seus voluntários do chá café ou laranjada, entre os quais a minha amiga Inês que nunca se esquece da Luisinha nem de me dar um rebuçado de mentol, em chegando a casa tenho quer ver se não terei mau hálito, mas digam-me lá se não é caso para pensar com que raio de disposição entram os doentes na consulta ou dão inicio ao tratamento ? Ou com que raio de disposição estarão os médicos depois de assistirem gente que lhes chega desfalecida e sem garra para lutar pela vida ? Aposto que o psicólogo do hospital já fez uma qualquer observação, já elaborou um qualquer relatório, certamente reportou quanto se indignou com a tortura psicológica não tão pouco subliminar quanto possamos julgar e adstrita a este mecanismo administrativo que é a estada dos doentes oncológicos e seus acompanhantes em Évora.
Sempre ouvi
dizer haver males que parecem vir por bem ou que Deus escreve direito por
linhas tortas, e já agora digo eu que o Senhor me perdoe ou me castigue se não
é verdade o que afirmo, ora sendo o mal estar sentido e visto por todos, foi-o
igualmente por um velho administrador deste hospital, também ele infelizmente
doente oncológico, e faço aqui um parágrafo ou uma pausa e peço-vos perdão, não
devo dizer velho, antes antigo, clássico, antiguidade clássica, não quero ofender
ninguém, a ideia deste escrito é sugerir, não reclamar nem ofender, mas verdade
é que dantes eram dois ou três os administradores do hospital dantes no tempo
das vacas gordas, e agora que elas são magras passámos a seis ou sete
administradores que ninguém sabe o que fazem ou para que servem e atenção isto
é uma sugestão recalcitrante, não uma reclamação, é quando muito uma
recomendação a que se lembrem, e cuidem, de doentes e acompanhantes pois se na
ONU solicitámos ontem a abolição da pena de morte em todo o mundo mas por cá o
pessoal é tratado a pontapé alguma coisa estará mal ou não ? Antes de vir
embora dei uma ronda e contei trinta e sete em pé contando comigo, isto mau
grado terem sido colocadas à pressa no corredor e por influência do velho
administrador catorze cadeiras que foram logo ocupadas, não chegaram para as
encomendas nem para encher a cova ao dente, tivessem sido o dobro, vinte e oito
e não teriam chegado, enfim, mais um caso, neste caso um feliz acaso de tráfico
de influências…
Mas após esta
sessão de tortura Deus brindou-nos com a sua benevolência e tudo acabou bem, a
Luisinha teve a sua consulta, o médico tem sabido mantê-la viva no arame, um equilíbrio
de artista, certamente uma mão segura por muito saber, muitas certezas e muitas
leituras, oxalá com tantos e diários inconvenientes não comece lendo transversalmente
ou a saltar capítulos ou parágrafos inteiros para ganhar tempo, é preciso
cautela pois ouvi dizer na Igreja do Castelo de Wittenbergem que tal
procedimento desumaniza as pessoas…