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sábado, 7 de junho de 2014

192 - MAGDALENA ...................................................


Carregava sobre os ombros frágeis trinta e três anos de constrangimentos. Nem sonhar lhe era permitido, nem olhar com atenção, ou demoradamente, nem devaneios, que se percebidos seriam severamente castigados.

Restava-lhe, como a tantas outras, dedicar-se à família, ou ao marido se o tivesse, senão esperar que Deus Pai lhe concedesse a graça de a entregar a um, e a felicidade de ser bem aceite, bem tratada e considerada, capitulo em que já nem se atrevia a pedir mais que a conta esperada. Até lá ia-se entregando com espírito de missão a uma vida recatada, apagada, dedicada aos afazeres domésticos, à prática do culto, às sementeiras, à fiação e ao tão honrado quão odiado mister da submissão.

Da primeira vez que o viu amassava figulino para acrescento da casa patriarcal, e enquanto os pés lhe dançavam no barro escorregadio ousou levantar a vista numa curiosidade disfarçada, mirando de alto a baixo aquele carpinteiro de sandálias e tez morena que, de modos calmos, discutia com seu pai a altura das aduelas e a medida de uma janela.

O porte erecto jogou a favor dele, e uma túnica limpa caindo a direito testemunhava-lhe o ar saudável e acrescentava-lhe a altura. Uma barba aparada rematou a imagem que nas noites seguintes havia de atormentá-la em sonhos e pesadelos que nem diferenciava já, pois o peito lhe batia em ambos e em ambos era obrigada a abafar os suspiros que da alma se soltavam.

Tudo almejava ainda olvidar quando voltou a vê-lo. Desta vez conduzindo uma carroça e vários molhes de caniço-colmo que seu pai lhe encomendara para cobrir o telhado da nova habitação tendo notado, com um estremeção que a pregou ao chão quando mais dali queria fugir, que também ele reparara nela, e ousou até pensar se a demorada conversa entre tão simpático carpinteiro e seu pai a envolveria, pois estava em idade de casar. Seu pai nada lhe dissera sobre o abordado com o dedicado carpinteiro e ela nada se atreveu a perguntar-lhe, confiando que estaria ciente da necessidade em casar uma filha que tardava em sair-lhe de casa. Seria ele ainda solteiro ?

Este pressuposto, que nunca lhe ocorrera, deixava-a agora prostrada roubando-lhe o sono das noites estreladas em cujo firmamento o julgava caminhando a seu lado, não à sua frente, e isso lhe bastava para que os sentidos, em alerta, avivassem um instinto maternal que julgara abafado, enquanto se sentia convocada pela natureza para um festim e os seios, arfando aflitos, lhe aumentavam de volume e lhe subiam no peito, queimando-a e afrontando-a, num martírio a que não sabia pôr fim.

De verdade nem queria dar fim a essa inquietação, custava-lhe, mas entregava-se-lhe em deliquescente meditação grande parte das noites, só parando quando, vencida pelo mesmo cansaço que lhe acentuava a urgência do corpo, ditando-lhe que devia há muitos anos ter sido esposa e mãe, e que a idade, avançando inexoravelmente sem que uma qualquer solução lhe cumprisse o destino, tornando-lho mais difícil quanto mais tardiamente consumado, ditava-lhe uma sensação de perdição que procurava abafar na oração, lugar e modo de buscar as respostas que a alma lhe negava. No próximo domingo iria ao templo, devota, fazer as suas costumeiras libações e orações.

Acabara-as nesse domingo quando se deparou com o jovial carpinteiro, e as faces ruborizaram-se-lhe. Zangado, ele expulsava do templo com palavras rudes e gestos expressivos os vendilhões e sentiu-se exortado por grande parte das gentes que assistiam à cena, que o aplaudiram com uma veemência impossível de não ser percebida por ele. No rescaldo dos distúrbios ficou-lhe um convite, por ele dirigido à populaça para que o seguissem e lhe ouvissem a “palavra“ do Deus Pai e fossem seguidos os Seus ensinamentos. Ela aceitou, prometendo voltar, e essa semana de impaciência não se lhe aproveitou nem a deixou dormir sossegada.

Foi fácil segui-lo e mais fácil ainda divulgar-lhe a palavra. Sentiu-se nascida para aquilo e pela primeira vez julgou ter encontrado um sentido para a vida.

A admiração por aquele homem depressa passaria de empatia a arrebatamento, e deste a platónica paixão foi um passo bem curtinho.

Com ele difundiu a palavra e tomou a luta contra prepotências e desmandos, pelo direito à dignidade do homem, feito à semelhança e imagem de Deus e, como ele, foi perseguida e expulsa, muitas vezes difamada e apedrejada, tendo não raro que fugir para se manter viva.

Valia-lhe nessas ocasiões o conforto da atenção dele, o seu carinho desinteressado, até que, num dia mais amargo se pôde recolher no seu abraço e sentiu que também ele recuperava forças se acolhido entre os seus braços.

A palavra foi-lhes o móbil enquanto não se entenderam com um simples olhar, depois foi o olhar abrindo-lhes todos os caminhos e ditando todos os limites que, paulatinamente, se entretiveram ultrapassando.

Mais que a palavra movia-os agora a fé e o amor, e furiosamente expiaram na carne os pecados dos homens, para no fim de cada dia e na hora do balanço, sempre encontrarem motivo e tempo para se recomporem das injustiças do mundo e se reconfortarem das iniquidades sofridas, para se amarem perdidamente.

- “Amai-vos e multiplicai-vos” pregava a palavra do Pai.

E amaram-se 
apaixonada, desalmada, frenetica e compulsivamente, tendo a fé e a paixão como vício, nela encontraram linimento à incompreensão dos homens de alma impura, impenetrável, dura.

A vida, que antes tivera parada, acossava-a agora, e a palavra e a fuga tornaram-se duas faces de uma mesma moeda. A necessidade de dádiva tornara-se-lhes mais forte que a de entrega. 

Aprenderiam que o coração não era lugar onde se pudesse viver, e a precariedade da vida não lhes permitiu o “multiplicai-vos”.

Ele agoniou entre ladrões, traído, ela encetou uma fuga épica e migrou para Marselha onde expiou, até ao impossível, tanto amor vivido e que lhe foi negado.

Exemplo de dignidade impossível de esquecer, todas as preces no viático imploraram que a tornassem santa.

E assim se fez.