Há horas de sorte, há horas de sorte,
não se cansava de repetir o velho soldado por trás do balcão do quiosque agora
restaurado, renovado, a que o restabelecimento da circulação ferroviária local
e regional dera de novo vida. Mais uns anos e toda a Europa estaria novamente reconstruida.
“Casa Francesa”, assim se podia ler
numa tabuleta manual amorosamente pintada e colocada sobre a última prateleira.
Tabacos, cigarrilhas, cachimbos, quinquilharia diversa, almanaques, magazines, rebuçados de menta,
chupa chupas de açúcar e mel, revistas, jornais, maçãs caramelizadas, amendoins, tremoços, gelados,
brinquedos, canetas, óculos de sol, isqueiros e lotarias.
- Sorte na vida, azar no jogo, está
em branco meu caro amigo, lixo ?
e ainda não acabara a frase e já a cautela, amarrotada entre
as mãos era chutada ao cesto com indisfarçada displicência como coisa inútil.
- Shalom para si ! Nem a terminação ?
- Shalom ! Nem a terminação meu caro
amigo, tente de novo esta semana, faça favor de escolher um número.
- É sempre o mesmo, levo o mesmo.
E lá abalou o judeu, apressado e
direitinho à Gare de L’Orient após guardar ciosamente a nova cautela na
carteira.
De um dia para o outro a vida do
velho soldado deu uma volta de cento e oitenta graus, derrubou o quiosque e no
seu lugar construiu uma vivenda de dois andares, loja por baixo, a nova “Casa
Francesa”. Os miúdos, ranhosos, passaram a ter ama, a andar bem vestidos e
apresentáveis, madame Amélie passou a ter criada, o bem-estar da família Poulain
melhorava na razão directa das dificuldades atravessadas pelos Aharon Cohen,
mau grado toda a recuperação do pós guerra.
À medida que os três filhos do velho
soldado Poulain atingiam a maioridade a cada um deles montara um negócio, ao
último foi dada a “Casa Francesa”, agora remodelada, maior, mais ampla, muito
mais apresentável, confortável e rentável. Constou que o velho Poulain teria
tido a sorte d acertar na lotaria, ele que a vendia e nela também jogava.
Dizia-se. Soava-se.
A verdade porém era bem mais prosaica e, umas cinco décadas depois, num dia em que os velhos se juntaram ao sol no “Jardin du Paradis” atrevi-me,
antes de avançar com a dama no xadrez do tabuleiro, a perguntar ao judeu Aharon
se ele sempre tinha jogado na lotaria com o mesmo número, como me queria
parecer.
- E ainda jogo, toda a vida tenho
jogado. Respondeu-me ele sem tirar o olho das pedras.
- Não era o 0260601915 ? Não é esse ?
- É precisamente esse ! Como é que
o meu amigo sabe ?
- Fácil, tirando os zeros é exactamente
a data de nascimento do meu saudoso pai, além disso é o número que há uns anos
trouxe a sorte ao Poulain, portanto foi fácil decorá-lo.
O judeu levantou-se de um salto e
saiu fungando.
Nem Shalom me disse.