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segunda-feira, 1 de abril de 2019

589 - VISADO PELA CENSURA by Luísa Baião *


Naquela manhã cinzenta que o nevoeiro teimou em colocar-me à frente, outra opção não tive que contrariando-o, virar à esquerda e enfrentar recordações que fizera há muito por esquecer mas que não deixam de estar entre as mais marcantes dos meus tempos de menina e moça.

Virei à esquerda para Sines, terra ditosa que há mais de trinta anos colocara fora dos meus roteiros, terra que me traíra na sua caminhada cega para o progresso. Sines foi sempre para mim a cidade mártir das incongruentes e inconsequentes políticas do estado novo, foi de todas a que maior descaracterização sofreu às mãos de uma oligarquia perdida no tempo e no espaço, cujos sonhos labregos de grandeza vieram a fazer dela o maior dos nossos elefantes brancos.

De qualquer modo não me intimidou aquele nevoeiro, nevoeiro que, sabem-no os deuses, tantas e tão gratas recordações esconde no seu seio. Rapariga, maria-rapaz, ali passei imensas vezes as minhas férias cujas manhãs nebuladas aproveitava para tudo que não fossem os mergulhos regulamentares e a que as educadoras nos obrigavam pacientemente.

Era pois nessas manhãs que me escapulia, que nos escapulia-mos para a lota, ver o pescado e a faina tão diferentes das ceifas e debulhas do nosso Alentejo interior, ou para a “praia do norte” e para o Farol, revolvendo as rochas na mira das conchas esféricas de ouriços-do-mar mortos ou de estrelas-do-mar que depois colocávamos a secar até perderem o cheiro nauseabundo e ficarem duras, hirtas, braços bem separados, que trazíamos como recordação para este mar seco da terra em que vivemos.


No regresso sempre em cima da hora do almoço, buscávamos ainda à pressa, descortinar o invisível campo de nudistas que se dizia haver na praia do norte, reservado exclusivamente a estrangeiros mas com o qual nunca fomos capazes de dar, como se o mesmo envolto na bruma, com ela se dissipasse como se dissipavam os nossos desejos de espreitar os nus, acelerando o passo, por vezes carregadas de conchas e conchinhas com que teceríamos os colares de pérolas da nossa imaginação.

Adorei Sines, também porque gostava de cavalgar pelas ameias do castelo sobranceiro à praia e depois descer correndo em tropelia e desafio o labirinto que era aquela estrada com curvas e contra-curvas levando-nos da vila à marginal a perder de vista a qual, bordejando o mar dava ao lugar toda a intimidade e aconchego que noutras praias nunca senti. Hoje nada disso é visível, a praia deformou-se, a montanha que a aconchegava a sul dando-lhe aquela característica de anfiteatro virado ao mar desapareceu há muito devido às obras do porto, como desapareceram os cruzeiros que víamos passar ao longe na linha do horizonte e cujas rotas mentalmente acompanhávamos em jogos de geografia e fantasia a que nunca faltou um príncipe encantado.


Hoje damos de caras com petroleiros enormes, usurpando cenários que lhes não pertencem, dilatando a afectividade do lugar até ao impossível, conspurcando as águas com a sua baba de crude. E se voltarmos a cara num repente, enojadas, revoltadas ou desiludidas, damos de caras com centrais termoeléctricas e fumarentas, pirâmides de carvão com toneladas, dúzias de depósitos de refinados e sobretudo com um nevoeiro ácido, proveniente de nuvens filhas de chaminés violando tudo, até a nossa memória.

Adorei Sines porque maria-rapaz podia dar-me ao luxo de escolher um dos dois cinemas que ela tinha, um salão e uma esplanada, esplanada que aos fins-de-semana se transformava em alegre lugar de baile e fantasia, onde despedacei corações ao mesmo ritmo com que me calhava chorar baba e ranho. Ali encontrei os meus primeiros amores, esquecidos uns, inesquecíveis outros.

Sines a terra do Gama, já não cheira a peixe e a mar, mas sim a bóstia de alcatrão, sendo que a dor e o sangue estão também gravados na recordação que dela tenho. Corria Agosto do ano anterior àquele em que máquinas medonhas transformariam a paisagem naquilo que ela é agora. Era o mês da procissão que eu vira tantas e tantas vezes e que percorria não a terra mas o mar, benzendo barco atrás de barco até nenhum ficar esquecido e a Senhora pisar terra, no que era acompanhada por foguetes. Nesse ano não se ouviram foguetes mas tiros, pescadores foram sovados na praia, pisados por cavalos e mordidos por cães para tal treinados, o vermelho das colchas foi trocado pelo vermelho do sangue, e tudo tão só porque as bandeiras que os pescadores ousaram erguer nesse dia eram negras.

Ninguém soube, ninguém mais que aqueles que nesse domingo faziam praia. Nem jornais, rádio ou televisão deram notícia dos factos, o poder calava-se, e enquanto se calava eu abria os olhos. Hoje, por cá, também o poder se cala como se não nos devesse satisfação alguma, como pensam vocês que me sinto ?

‎* By Maria Luísa Baião,‎ escrito segunda-feira, ‎6‎ de ‎agosto‎ de ‎2001, ‏‎pelas 20:09h 
e publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.