Naquela
manhã cinzenta que o nevoeiro teimou em colocar-me à frente, outra opção não
tive que contrariando-o, virar à esquerda e enfrentar recordações que fizera há
muito por esquecer mas que não deixam de estar entre as mais marcantes dos meus
tempos de menina e moça.
Virei
à esquerda para Sines, terra ditosa que há mais de trinta anos colocara fora
dos meus roteiros, terra que me traíra na sua caminhada cega para o progresso.
Sines foi sempre para mim a cidade mártir das incongruentes e inconsequentes
políticas do estado novo, foi de todas a que maior descaracterização sofreu às
mãos de uma oligarquia perdida no tempo e no espaço, cujos sonhos labregos de
grandeza vieram a fazer dela o maior dos nossos elefantes brancos.
De
qualquer modo não me intimidou aquele nevoeiro, nevoeiro que, sabem-no os
deuses, tantas e tão gratas recordações esconde no seu seio. Rapariga,
maria-rapaz, ali passei imensas vezes as minhas férias cujas manhãs nebuladas
aproveitava para tudo que não fossem os mergulhos regulamentares e a que as
educadoras nos obrigavam pacientemente.
Era
pois nessas manhãs que me escapulia, que nos escapulia-mos para a lota, ver o
pescado e a faina tão diferentes das ceifas e debulhas do nosso Alentejo
interior, ou para a “praia do norte” e para o Farol, revolvendo as rochas na
mira das conchas esféricas de ouriços-do-mar mortos ou de estrelas-do-mar que
depois colocávamos a secar até perderem o cheiro nauseabundo e ficarem duras,
hirtas, braços bem separados, que trazíamos como recordação para este mar seco
da terra em que vivemos.
No
regresso sempre em cima da hora do almoço, buscávamos ainda à pressa, descortinar o invisível campo de nudistas que se dizia haver na praia do norte,
reservado exclusivamente a estrangeiros mas com o qual nunca fomos capazes de
dar, como se o mesmo envolto na bruma, com ela se dissipasse como se dissipavam
os nossos desejos de espreitar os nus, acelerando o passo, por vezes carregadas de conchas e conchinhas com que teceríamos os colares de pérolas da nossa
imaginação.
Adorei
Sines, também porque gostava de cavalgar pelas ameias do castelo sobranceiro à
praia e depois descer correndo em tropelia e desafio o labirinto que era aquela
estrada com curvas e contra-curvas levando-nos da vila à marginal a perder de
vista a qual, bordejando o mar dava ao lugar toda a intimidade e aconchego que
noutras praias nunca senti. Hoje nada disso é visível, a praia deformou-se, a
montanha que a aconchegava a sul dando-lhe aquela característica de anfiteatro
virado ao mar desapareceu há muito devido às obras do porto, como
desapareceram os cruzeiros que víamos passar ao longe na linha do horizonte e
cujas rotas mentalmente acompanhávamos em jogos de geografia e fantasia a que
nunca faltou um príncipe encantado.
Hoje
damos de caras com petroleiros enormes, usurpando cenários que lhes não
pertencem, dilatando a afectividade do lugar até ao impossível, conspurcando as
águas com a sua baba de crude. E se voltarmos a cara num repente, enojadas,
revoltadas ou desiludidas, damos de caras com centrais termoeléctricas e
fumarentas, pirâmides de carvão com toneladas, dúzias de depósitos de refinados
e sobretudo com um nevoeiro ácido, proveniente de nuvens filhas de chaminés violando tudo, até a nossa memória.
Adorei
Sines porque maria-rapaz podia dar-me ao luxo de escolher um dos dois cinemas
que ela tinha, um salão e uma esplanada, esplanada que aos fins-de-semana se
transformava em alegre lugar de baile e fantasia, onde despedacei corações ao
mesmo ritmo com que me calhava chorar baba e ranho. Ali encontrei os meus
primeiros amores, esquecidos uns, inesquecíveis outros.
Sines
a terra do Gama, já não cheira a peixe e a mar, mas sim a bóstia de alcatrão,
sendo que a dor e o sangue estão também gravados na recordação que dela tenho.
Corria Agosto do ano anterior àquele em que máquinas medonhas transformariam a
paisagem naquilo que ela é agora. Era o mês da procissão que eu vira tantas e
tantas vezes e que percorria não a terra mas o mar, benzendo barco atrás de
barco até nenhum ficar esquecido e a Senhora pisar terra, no que era
acompanhada por foguetes. Nesse ano não se ouviram foguetes mas tiros,
pescadores foram sovados na praia, pisados por cavalos e mordidos por cães para
tal treinados, o vermelho das colchas foi trocado pelo vermelho do sangue, e
tudo tão só porque as bandeiras que os pescadores ousaram erguer nesse dia eram
negras.
Ninguém soube, ninguém mais que
aqueles que nesse domingo faziam praia. Nem jornais, rádio ou televisão deram notícia
dos factos, o poder calava-se, e enquanto se calava eu abria os olhos. Hoje,
por cá, também o poder se cala como se não nos devesse satisfação alguma, como
pensam vocês que me sinto ?
e publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.