sábado, 4 de agosto de 2012

122 - UMA ESPLANADA SOBRE O PASSADO ...



Ondas de calor reverberam no prolongamento deste largo lago que a esplanada toca. São ondas com sabor a Alentejo e, de repente, eu sentado lado a lado com o Leontino(1), balançando os pés na água, equilibrando-nos os dois naquele tronco caído enquanto ele, lembro-o como se fosse hoje, graceja para mim que, se caísse de costas não se mataria como o tal velho na cadeira, mas decerto se afogaria pois o lago ali era fundo e nunca aprendera a nadar.

Era aliás, de nós todos, o único que não o sabia fazer mas, muitos antes dele, e alguns bons nadadores, tinham ficado enredados naquele pego da Guadiana, cavado na dobra do rio, em cotovelo, provocando essa volta azo a um curso impetuoso no inverno mas enganadoramente manso no verão, diria mesmo assustadoramente manso, calmo e traiçoeiro.

Nesses tempos recuados, uma vez o repasto enfardado, mal a tarde acalorava debandávamos pela hora da esturrina, galgando léguas, montes e cabeços, alinhando tropelias e digerindo o almoço. Por isso, uma vez chegados ao pego, o último a entrar na água era maricas e nem as roupas tirávamos já que o sol em pouco tempo se encarregaria de as pôr capaz de se segurarem em pé.

Galgados cabeços, pilhados ninhos, lapidados varanos, roubados marmelos e assaltadas colmeias nos montados, o nosso primeiro momento zen era aquele em que entrávamos na água, e depois quando o cansaço nos vencia e deitava por terra. Esses dois momentos eram a nossa paz dos deuses. A pegada ecológica era ainda uma ficção distante, mas o rasto que deixávamos podia ser seguido à distância por um cego… Outros tempos.

E, desta esplanada, olhando este mar sonso a perder de vista que malmequeres e papoilas pintam, lembro aquela malta que somente em sonhos, tornados bocados de bonecos mal delineados em cor sépia, fragmentos de mim, acerca dos quais acredito o futuro me trará cada vez mais saudosas e melhores recordações.

E à minha direita no areal o Inácio da Granja, de sardas e modos repentinos, que me roubaria a Lúcia das tranças e com ela zarparia para a capital. O Sezídio(2), sempre de botifarras, que o pai lhe comprava três ou quatro números acima para que servissem mais tempo e que, talvez por isso fosse o terror dos jogos e um excelente avançado que levava tudo à frente e à sarraifada. O Xico Inácio(3), alto alourado e um rapagão, cuja lembrança regurgita a luta de titãs com o Tonicha(4), do Reguengos, o único que era rico, por os pais terem uma mercearia e nos chamava “os langonhas” porque nós só uma aguadilha e ele já se vinha a sério, no que era singular, pois por tal se arvorava no direito de comandar o pagode. Bem fez o Xico Inácio que lhe pôs as barbas de molho obrigando-o a engolir a arrogância.

E o Cunha(5) ! Grande grande e que já trabalhava deveras ! Ganhava mais que a mãe ! Bem lembro o gabarolas ! Atrás de todos, espojados na areia da Guadiana, com umas mãos que mais pareciam barbatanas, o “mama na burra”, exibindo para todos o seu cacete que mais parecia o de um burro…  O Tonico, o ás da fisga e o líder desde que o grupo do Tonicha deixara de ser maioritário. Isto porque à sombra da fábrica de papel o montante e a jusante do areal tinham cada um o seu gangue, cada qual mais permeável ás influências e pressões da liderança. Gaiatos...

O matreiro do Flávio(6) e o manhoso do “Tói cadela”(7) só tinham paralelo na astúcia do “Luís índio”(8) e do “Junça”(9), mais finos todos e cada um deles que a família do Manel Jaquim(10) e do Gregório(11) juntas, ou até que os irmãos espanhóis(12).

Balanço-me, a brisa traz-me as lembranças, agora em catadupa, em ondas que se atropelam, sucessivas, encadeadas.

Salpicos.

Rumores.

Uns perdidos para sempre em França, Suíça, em Lisboa.

Já então éramos perdulários no esbanjar do tempo e da excelência do lugar. Esta terra, agora este mar largo, este lago e estas ondas que o vento encapela só permitem o ir, nunca o estar, menos ainda o ficar.

Foram.

Foram-se, e na sua peugada estas reverberações que o calor cozinha, estas recordações que a memória cerze e me crestam as horas à beira - esplanada deste lago onde desagua o rio de brumas do meu passado.

O “Tim- tim“ e a “Violeta” meus fiéis cães que nunca me largavam.  A “Shamira”, melhor que muito boa gente e junto a cuja sepultura já uma ou duas vezes meditei. Os barcos baloiçando-se no horizonte sem que eu os veja. O iodo que o vento não arrasta. As falésias que não há. Caras cujas feições a custo mantêm o traço. O futuro que acredito me traga cada vez mais e saudosas recordações.

A canícula apertando, eu galgando montes e cabeços antes do almoço. O último a almoçar é maricas. Sorvo o mel nos favos e os ovos de melro por uma palhinha. Um lagarto sangra. Metade das caras e dos nomes esquecidos. O Flávio apanhou dez cobras de água.  O Grilo é torneiro mecânico.  O “Sarol” professor de ginástica. O Luís da Granja foi para a tropa(13). A cerveja morta.

- Mais alguma coisa chefe ?

- Obrigado. 

- Traz a conta Calado.     *

               

*  NOTAS :

(1)  Falecidodevido ao Covid após toma da 1ª vacina.

(2)  Herói nacional. Os seus restos mortais encontram-se na terra que adoptou como sua e onde casou com uma natural de Madina do Boé, Guiné, onde tombou em Janeiro de 74.

(3)  Residente em Mourão. Falecido em 2020 após um AVC.

(4)  Após o serviço militar fixou residência em Malange, onde o vi pela última vez em 1973.  Não sobreviveu à guerra civil angolana. 

(5)  Costumava visitá-lo no Algharve, Lagos, onde era gerente duma importante unidade hoteleira. Reformou-se há cerca de 2 anos.

(6) Formara-se em Engenharia Civil, deu o salto para França em vésperas de mobilização.  Nunca mais soube nada dele.

(7) Emigrou para a Suiça  um mês antes do 25 de Abril. Há 2 ou 3 anos retomei contacto com ele graças ao Facebook. Foi gerente de Hiper. Reformado. Sem raizes em Portugal. 

(8) Foi professor, viveu amancebado com várias colegas, sempre de muito mais idade que ele. (Com uma de cada vez claro). Actualmente reformado vive com uma idosa podre de rica que fora sua colega e que leccionara Artes Visuais. 

(9)  Junça, descobri-o casualmente uma vez depois de visita 
à Feira do Livro de Lisboa e,m 2002. Tinha uma pequena galeria de artesanato e pintura na Madragoa. Não deixou xontacto. Desapareceu misteriosamente dois anos depois, ele e uma colombiana com quem vivia. 

(10) Operário soldador especializado, soube que andava pelas arábias, Alemanha, França, soou-me ter-se radicado em Israel. 

(11) Foi cameraman da RTP, depois da TVI, depois em Angola após a independência deste país e posteriormente de uma agência de noticias estrangeira, dele se diz ter tombado no conflito do Kosovo. 

(12) De Vila Nueva D'El Fresno. Nunca mais soube nada deles. 

(13)  E nunca mais soube dele nem da Lúcia das lindas tranças. 





terça-feira, 24 de julho de 2012

121 - CULTURA ..............................

CULTURA

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão : “ a mão que embala o berço… ? “

Falar de cultura implica uma complexidade mui idêntica à multiplicidade de conexões que o próprio termo implica.

CULTURA…

Podemos não a apreciar em muitas das suas vertentes.

Podemos ignorar muitas das suas diversas formas e manifestações.

Podemos até considera-la Kitsch e, ou, nos antípodas dos nossos padrões.

Mas podemos, sempre que possível, aprecia-la, critica-la, e sobretudo produzi-la, já que ela se enquadra

num limitado mas múltiplo campo de actuação humana que não nos está individualmente vedado.

Produtores então, importa divulga-la, faze-la compreender, entender e aceitar pelos outros e, concomitantemente receber os louros, os proventos e também as criticas mais funestas.

E regressamos ao princípio, porque em democracia, enquanto fazedores de cultura, todos os caminhos nos são permitidos.

Faze-la.

Goza-la.

Deprecia-la.

Nega-la.

Recusa-la.

Vende-la.

Submeter-se a ela, à nossa, ou arruma-la num baú…

Depois ?

Então, depois e só depois, estaremos aptos a julga-la e a condena-la.

Antes disso, tudo que possamos fazer é bater com a cabeça na parede e vazar as nossas pulsões.

A cultura foi feita precisamente para isso, expressar e vazar pulsões, sentimentos, estados de alma.

Agora já poderemos então colar, colocar, meter, aplicar, um penso rápido…

Para finalizar, mero exercício, que podes dizer sobre ou acerca da expressão :

“ a mão que embala o berço… ? “

segunda-feira, 18 de junho de 2012

120 - SOBRE TU CARNE TRIGUEÑA *......................


 Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez

Dei com ele por mero acaso numa daquelas pesquisas aleatórias na net. Declaro-vos que já nem o recordava. Impressionou-me exactamente há dez anos quando, numa digressão mundial, honrou Évora com a sua presença e uma impressionante exposição. Foi oportunidade que não descurei, há que não perder ocasião de olhar uma outra panorâmica do mundo, coisa que a arte jamais deixará de nos propiciar. No caso, uma visão além Atlântico, de que deixei testemunho, como poderão ver nas linhas que se seguem e que foram publicadas no Diário do Sul em principios de 2002 .

Confesso que recebi um choque emocional, fui apanhado desprevenido pelo impacto projectado pelas belas imagens de um artista ímpar, suficientemente sabedor para com grande mestria ter agarrado perfidamente o visitante mais distraído. Apesar do tempo nessa manhã, que ainda recordo, chuvoso, a visita ao Palácio de D. Manuel para ver com os meus olhos a exposição “ Sobre tu carne trigueña “, de Àisar Jalil Martinez, valeu a pena.

Nascido em Cuba, o que me suscitou alguma desconfiança, Àisar, recordo, apresentou-me ou melhor, presenteou-me com cerca de quarenta telas, todas elas fortemente expressivas, provocatórias, e que na realidade me deram do “ homem “ uma visão muito redutora… Não contestei. Se esta sociedade não é matriarcal, tal sucederá porque a “ mulher “, as mulheres, não fazem ou não sabem fazer uso do seu potencial persuasivo e dissuasor.

Mas não as “ mulheres “ de Àisar, estas, não só dominavam toda a exposição, como todos os homens. Desnecessário dizer que cheguei ao fim do périplo com a emoção acumulada e a tensão altíssima, e, literalmente, insolentemente apanhado desprevenido por aquela alucinação. Vindas do Caribe, as cores não teriam podido deixar de ser calientes, com um contraste pictórico muito vivo e acentuado. Àisar atirou-me repentinamente á cara com uma sensibilidade levada ao extremo, tão trabalhada e polida que se convertia em espelhos que me interrogavam e incomodavam.

Latinos que somos, todos, machistas por inerência, em maior ou menor grau, senti-me mais que provocado pelo traço do artista, quiçá ofendido. No mínimo a tentação será para dizer que me senti despido… Lembro que uma critica colocada no folheto de apresentação sublinhava, ou colocava em relevo a relevância da teatralidade impregnada às mulheres interpretadas pelo pintor.

Teatralidade ? Quando em noventa por cento dos casos são elas a comandar o homem ? Abordagem da problemática feminina ? Não brinquem, lembro bem Caballo rojo !, Oh vida ! E ainda hoje afirmo que os títeres, comandados, quais marionetes, precisamente por belas mulheres, eram os homens ! Reparei especialmente em Eva, cujo símbolo do pecado repousava a seu lado, símbolo do pecado ou fruto da dominação feminina ? Recordo a mulata de carne trigueña que dava vida ao cartaz da exposição e se metamorfoseava em leopardo…

Arquétipos ou reais, as imagens de Àisar, parecendo ir contra toda a lógica, muito pelo contrário encerravam uma sabedoria pelo pintor demonstrada soberbamente. Ao entrar na exposição entrei num mundo surrealista, em que transgressão e tragédia tomavam sobre o real que entendemos, ou queremos entender, uma ascendência expressionista e marginal.

Se vi a cidade por detrás dos personagens ? Sim vi ! Tratava-se claramente de Habana, la vieja, o que para mim foi absolutamente secundário, mas me autorizou a fazer-me outra pergunta: E quem terá visto, reparado, na forma como o homem era retratado nessas telas ? De faunos a bestas, de exóticos a luxuriantes seres, em quase todas elas a imagem do homem era abordada na sua vertente animalesca, fossando entre ninfas e divas, numa promíscua sensibilidade liminarmente transbordante de erotismo.

Os nossos medos, mitos e tradições mais antigas, do lobisomem ao íncubo, estavam ali prostrados mas actuantes, fazendo-me, fazendo sentir ao visitante quanto de animal vive em nós (ainda?), e o quanto de grotesco marca a nossa libido. Sobre todos aqueles animalescos seres que representavam o homem, pairava a mulher, quer no plano geométrico quer no simbólico. Por certo Àisar deve muito às mulheres, via-se em todos os seus quadros que lhes estava reconhecido.

Com uma eficácia mais simbólica que linguística, a mulher era endeusada por aquele cubano cujo curriculum foi o melhor convite para que tivesse corrido a ver as suas telas. Por mim teria comprado Eva, outros certamente teriam feito outras opções, os preços, esses, estavam claramente acima da minha modesta bolsa…
Quem tivesse querido perder algo de muito valioso, bastar-lhe-ia não ter ido ver aquela maravilhosa magnífica e estulta exposição, foi a sensação que recordo ter de lá trazido. Quanto ao autor, hoje encontra-se na galeria dos meus amigos, e honra-me com a sua amizade. Obrigado Àisar Jalil Martinez !  

* Nota: este texto já fora publicado no início de 2002 nas páginas do Diário do Sul.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.398281196874977.80203.100000792991962&

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10153400704078868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez/videos/vb.743573867/10154787699968868/?type=2&theater

https://www.facebook.com/aisar.jalilmartinez

Eva – Oleo / tela – 110x70 cm - Àisar Jalil Martinez
Bicitaxi encantado – Óleo / tela – 80x120 cm - Àisar Jalil Martinez
Caballo rojo – Óleo / tela 80x121 cm - Àisar Jalil Martinez
Oh vida ! Óleo / tela 69x49,8 cm - Àisar Jalil Martinez
Paz – Mista / papel 61x49,6 cm - Àisar Jalil Martinez
Onírica – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Uidaeysi – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Rámon y Julita – Óleo / tela 100x80 cm - Àisar Jalil Martinez
Sobre tu carne trigueña – Mista / tela 100x200 cm - Àisar Jalil Martinez


domingo, 10 de junho de 2012

119 - S. JOÃO !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


Meu pai estugava o passo, minha mãe seguia-o, fielmente, tal qual um cachorro segue o dono, arrastando-me pela mão, apesar do meu interesse em chegar depressa aquele mundo que todos os anos me oferecia maravilhas, repetida e metodicamente, como as primaveras mecanicamente trazem andorinhas.

Havia já uns bons e longos dias que o circo se fizera anunciar. Um palhaço com pernas de dez metros percorrera o bairro arrastando nos seus passos um alarido vertido por bando de saltimbancos e anões, deixando-nos, aos miúdos, excitados, boquiabertos e impacientes pelo dia em que os pais nos levariam à feira. O S. João chegou pois como o dia prometido e, apesar de rebocado por minha mãe, eu corria, na vã esperança de chegar mais cedo uns minutos, pois naquela idade os minutos contavam. A feira extasiava-me e entusiasmava-me como se tivesse feitiço. Flâmulas e lanternas de papel esvoaçavam nos mastros que adornavam e nos arcos que estes por sua vez suportavam. Manjericos e cravos rivalizavam com balões, lanternas e bandeirolas. Tudo eram cores, sons, movimento luzes e maravilha !

E lembro a roda de algodão doce, cuja rapidez e efeito de teia de aranha me fazia esquecer o tempo, as grandes e vermelhas cerejas, em pacotes de papel pardo e que minha mãe pressurosamente guardava para, em casa, com o ferro de engomar tirar as nódoas das roupas. Lembro sobretudo as farturas (massa frita), o balão que me prendiam ao braço para que não o perdesse. As ruas de terra do recinto e o pó que o carro dos bombeiros diligentemente regava, precipitando um chuveiro em leque cujos repuxos admirava. O coreto do jardim. Os cisnes. A banda da GNR e por vezes da Armada. O “Bolero de Ravel” que jamais deixaria de amar. Os sons ressoando forte na minha caixa torácica e ao ritmo do coração. As pessoas silenciosas para não perderem pitada.

Ao longe os sons caóticos e abafados da feira. Perto de nós o carrinho dos gelados. Levantava-se a tampa e um alicate de bolas enchia os cones de cores e sabores. Tudo em silêncio. Somente se ouvia o tilintar dos trocos, a música no coreto, alguma folha que tombasse no chão ou o abrir de uma flor, o trinar de um pássaro.

S. João e S. Pedro eram maravilhamento, eram fantasia, eram sedução ! Carrosséis enormes, cavalgando montanhas, e toda a floresta neles ! Eu alvoroçado e, obstinadamente, de unhas e dentes ferrados no pescoço de um cavalo, de uma zebra, de um camelo !  E mais uma volta na " Selva " ! E mais um toque na bolinha do “Alverca“ !

E o “poço da morte” ! Que sorte !

Um ano houve que até a “esfera da morte” e uma motociclista nos vieram deslumbrar ! E no poço, os motociclistas de olhos vendados, as motas troando em escape aberto, as tábuas da estrutura vibrando assustadoramente, eu fechando os olhos cada vez que se aproximavam do rebordo do poço ! Os motociclistas desafiando a morte e terminando sentados à “amazona”, sorridentes, destemidos, valentes !

A noite caindo, o cansaço tomando conta de mim. Minha mãe comprando torrão doce para levar para casa. Nem a vozearia gritada nos alto-falantes me mantinha em pé…

Da ganadaria do Eng.º Joaquim Grave 6 bravos touros 6 !

Eram anunciados para a corrida de S. Pedro, os forcados seriam os de Évora ! Eu sonolento. Eu sedento. Lembro-me ainda de meu pai comprar a um aguadeiro copos de água para todos nós. O copo era giro, em plástico vermelho com bolinhas brancas. Para ele, meu pai feirou uma dúzia de esferas metálicas magnetizadas, para que, engolidas, assegurassem que os restos de arames dos fardos de palha não furassem os intestinos das vacas. Minha mãe umas sandálias de couro verdadeiro feitas à mão pela “casa Leão”. Eu uma caixa de lápis de cor.

A Móbil lançava a sua marca de garrafas de gás, azuis, as do célebre sistema click ! Como propaganda todo o mundo tinha uma latinha publicitária de estalinhos imitando o clik simples dessas garrafas, a feira inteira transformada numa zoada de cigarras… O sono tombou-me e, durante muitos anos nem recordo como o resto dessas noites terminaram. Jamais esqueci o colorido dos cartazes das feiras, os dias e noites nelas, o cosmopolitismo das gentes, o cheiro das sardinhas assadas e do frango no espeto, as marchas da fanfarra dos bombeiros, a arruada dos “Amadores”, o circo, as feras, a mulher serpente, o túnel do terror ...

Há muitos anos que não vou à feira, talvez perto de uma dezena, muitos…

Cansei-me de amadorismos…

terça-feira, 8 de maio de 2012

118 - VAI, NÃO TEMAS…



Olá Cris, muito bom dia amiga.

Imagino-te já trabalhando. O tempo correrá a partir de agora, tão depressa como água em mangueira esquecida e aberta no jardim.

Queria dizer-te que tenhas calma, que a calma é meio caminho andado para que não percamos o controle sobre o pensamento, a memória, as atitudes e acções e a vontade.

Não acompanhei senão marginalmente o teu esforço, que como sabes elogio e acarinho, contudo creio que, mau grado o pouco tempo à tua disposição, te aplicaste afincadamente no estudo daquilo que abraçaste e que, não sendo matéria fácil, também não é um monstro de sete cabeças e te dará, no futuro, uma invulgar satisfação.

Não te condenes, não valerá a pena caso nem tudo te corra pelo melhor. A vida tem tantos imponderáveis quanta água tem o mar. Ficará para o ano, e tu então, com mais tempo para te preparares.

Creio no entanto que, a julgar pelas duas ou três questões que me colocaste, estarás minimamente capacitada e sobretudo motivada para que daqui a dois meses te submetas á prova capital.

Creio que superarás essa meta, é forçoso que acredites em ti, é forçoso que a tua auto-estima, auto-confiança e o teu ego confiem em ti.

Serás capaz claro, coisas bem mais difíceis já tu ultrapassaste e não morreste por isso. Muito menos se te opõe agora.

Não esqueças o que uma vez te disse, é extremamente importante na história a capacidade de a ver as perspectivas quer em sincronia quer em diacronia. Poderás não lembrar quando a corte se refugiou no Brasil, mas basta que lembres nada acontecer por acaso, tudo funcionar em cadeia, para que a memória recupere aquilo que parecia esquecido.

- Quando foram as invasões francesas ?

Não lembro…

- De que fugia a corte ?

Não lembro…

Já está !

Já recordo isso !

Eureka ! A corte fugia dos franceses !

- Vês como é fácil ?

- Vês a razão pela qual acredito em ti ?

- Vês porque confio que esse apelido Baião vencerá mais uma prova?

Acredita que és capaz, e até os nervos, o tal nervosismo miudinho de que te queixas e tantas vezes nos ataca terá imenso medo de ti !

O que não lembrares, passa adiante, deixa para o fim, o que souberes, espeta logo no papel, e não sejas avara com as palavras, nem poucas, para que não fique nada por dizer e pensem que não sabes, nem muitas que é para não correres o risco de falar demasiado e meteres os pés pelas mãos.

Falo-te com experiência, já cometi asneiras dessas, espero que as possas evitar.

Só me resta desejar-te sorte, a sorte protege os audazes como saberás, que tudo te corra pelo melhor são os meus sinceros votos.

A ti deves o que sabes, a mim não deves nada, absolutamente nada, pelo que quando lá sentada, conta somente contigo, e creio já não ser pouco.

Algum dia, em calhando, ou “secalhando” nos veremos por aí, e espero que possamos então rir do esforço que agora te preocupa certamente tanto.

Adeus prima Cris, sorte e um jinho.