segunda-feira, 29 de julho de 2019

610 - 2 ESMERALDAS, 2 ANÉIS DE ESMERALDAS



Quase dez meses depois segui finalmente as tuas sugestões e atrevi-me a sair. Não por me faltar vocação para eremita, ou estilita, mas para dispor de espaços largos onde diluir a mágoa que visto desde que partiste.

Verdade, confinado entre as quatro paredes de casa ou do café convivo melhor contigo e comigo mesmo, são um espaço íntimo partilhado por nós mas onde a tua ausência me sufoca e martiriza como um silício metódico, qual imaginário e persistente pêndulo sobre mim caindo fustigando-me.

Era portanto tempo de tomar à letra, aceitar, acatar as tuas sugestões, sempre fiz delas lei como bem sabes, sabias, e nem havia razão para assim não ser tão ponderadas e acertadas elas eram, sempre foram.

Aproveitei o domingo tal como o rapaz que saiu à rua num domingo para se matar* inda que não fosse esse o meu fito. Confesso que sim, também eu já quis morrer, foi duro quando te perdi, é ainda duro e raro o dia em que por ti não choro, às vezes nem é bem chorar, mas marejam-se-me os olhos de lágrimas somente por lembrar-te, por estranhar a tua ausência, por notar a tua falta, lamentar não te encontrares a meu lado partilhando quaisquer eventos ou acontecimentos, sentir ainda o incrédulo da toda esta situação para que me vi atirado, mau grado os teus conselhos, sugestões, desejos, ordens ou apesar da tua despedida, tão terna quão doce, mais de um mês antes de partires por saberes que esse dia chegaria, só não sabias quando. 

Aventurei-me no domingo passado, pela primeira vez em muitos anos saí do meu retiro voluntário e procurei na praça multidão em que banhar-me e onde, como as galinhas da capoeira da tia Hortênsia pudesse espojar-me e sacudir as minhas chagas, tal qual os galináceos mal encontram dois palmos de terra solta onde largar os piolhos num banho purificador e necessário ao equilíbrio do corpo e da alma, do biorritmo e dos electrólitos, dos sais minerais e outros que tais, do Ego, do Superego e do Id, todos eles em instável e periclitante equilíbrio há muito, pelo que, para me amparar ou acudir caso uma tontura, um desmaio ou qualquer súbito, desconhecido ou inesperado episódio, fi-lo acompanhado não fosse o Diabo tecê-las, credo, lagarto, lagarto, lagarto.

Socorri-me da Fatinha, aquela tua amiga sueca, aliás nossa amiga e que conheceras há muito, há mais de quarenta anos, quando do teu estágio de Terapeuta no Hospital de S. João, ou teria sido no Curry Cabral ? Foi há tantos anos que nem recordo já onde, só recordo vocês duas na festa de finalistas, de braço dado e sorriso rasgado, onde somente a cor dos diplomas divergia, branco amarelado para Fisioterapia, Rosa pálido para Enfermagem, ainda que os vossos anéis fossem iguaizinhos e vaidosas pegassem no diploma com o cuidado devido para que o fotógrafo apanhasse as pedras esmeralda, símbolo do vosso esforço e do vosso orgulho.



Foi pois da nossa velha amiga Fatinha que me fiz acompanhar, quem melhor que uma enfermeira não achas ? Sempre me disseras mais valer prevenir que remediar e eu não esqueci a lição, aliás uma outra amiga minha, a Zezinha, tivera já oportunidade de me dar idêntico conselho, arranjar uma enfermeira. Como podes constatar sigo os teus conselhos e busco não me desviar do bom caminho, nem a pé nem de carrinho.

Aportámos à Praça do Geraldo para um concerto dos Fanfare Ciocarla integrado no festival de verão Artes À Rua, uma coisa   assim como o Viv’à Rua dos nossos tempos e que eu apreciei pela semelhança com o chinfrim dos Kumpania Algazarra, que sabes eu adorar e que a Fátima também apreciou pelas parecenças com os grupos musicais da sua terra, uma terrinha de nome impronunciável, idem para os grupos musicais da sua preferência, todos eles compostos por elementos de Linköping** de onde ela é natural.

Valeu a pena, voltei a sentir-me vivo, não cabeceei nem desmaiei, nem sequer tonturas tive e, não fossem duas ou três lagrimazinhas soltas no escuro do espectáculo e pelas quais ninguém deu menos tu e eu, diria ter a noite valido a pena, inda que para pena minha te tivesse recordado com ternura, amor e carinho, tendo perpassado pela minha mente se não todos quási todos os espectáculos daquele género em que os dois estivemos presentes, partilhámos, e nos quais algumas vezes dançámos.

Depois, lépida, a Fatinha deixou-me em casa, eu sofrera uma pequena queda na mota e o travão entalara-me o dedo contra o punho do acelerador e por pouco não foi cortado, não ficou cortado mas a custo evitaram ter sido cosido, o pessoal do nosso hospital ainda é do melhorzinho e bastos me acudiram de pronto na urgência não te tendo esquecido a ti, recordando-te todos eles com carinho. A propósito, estou quase curado e já consigo conduzir de novo sem perigo que a ferida abra, pelo sim pelo não evito fazê-lo e voltei a trancar-me em casa, só tu e eu, como dantes, como sempre, não te esqueço nem descuido o meu desvelo por um momento que seja e podes ter a certeza de estares em boas mãos meu amor, esquecer-te é que não, nunca.

Pela tua mão começo a soltar-me, recomeço a voar, torna-se menor e mais leve a mágoa carregada mas não a tua lembrança, nem a paixão que sempre te dediquei e continuarei a dedicar, até por ter voltado a sentir o amor, a sentir que me proteges, que me acompanhas, por te continuar ouvindo e seguindo as tuas sugestões, os teus conselhos, lembrando a tua doçura e carinho, a sentir quanto eles são agora mais necessários que nunca ao meu viver ao meu reviver, ao arriscar trilhar de novo espaços abertos sem receio.

Confio velares por mim meu amor, de peito ufanado e novamente ousado enfrento decidido as multidões e banhando-me nelas sem qualquer medo cicatrizo as chagas, afasto o silício, reequilibro os chacras, o karma e o mantra buscando evitar as cabeçadas mal dadas, as tonturas, os desmaios ou quaisquer súbitos e desconhecidos ou inesperados episódios …







segunda-feira, 22 de julho de 2019

609 - AMOR E UMA FERRAMENTA ......................



AMOR E UMA FERRAMENTA

Ânimo sonhos, intenções,
tudo me dá vida e inspira,
tudo levo p’la frente em arrastões,
ou tudo passo p’la espada, e tudo expira.

Se calha travarem-me o pio,
me censuram, ou me ameaçam,
eu abro o peito com brio,
e luto até que emudeçam.

Não viro costas a justas,
confio na luz que me anima,
e junto uma a uma as letras,
do teu nome minha menina.

Porque teu nome é poesia,
é doçura e carinho, coração,
porém o que tu mesma querias,
era uma chave de estrias,
dar largas a esta emoção…

Desapertar um bocadinho,
a pressão na válvula aórtica,
ajustar ternura e mimo,
regularizar a sistólica…

                    By Humberto Ventura Palma Baião 21-07-2018 – domingo – 16:15h


sábado, 20 de julho de 2019

608 - PERNAS, PARA QUE VOS QUERO EU ? .........



Dia sim dia não fecha uma loja, mas a velha baiuca do Dimas das gravatas fechou há bué de anos, quando ele próprio ficou um trapo e as gravatas passaram de moda. A última julgo tê-la vendido ao meu amigo Esteves, então um exemplar único de fadista, marialva, machista e um racista empedernido desde que regressara de Angola. Imagino o que diriam dele se fosse vivo, e assim se escapou ao julgamento dos tempos modernos.

Era verde a gravata, de um verde lindo, vivo e colorido, ainda me lembro, tal como lembro as palavras do velho Dimas repetidas por ele, ele Esteves;

- Esta gravata, esta seda tem tamanha qualidade que poderia servir de baraço a qualquer um e aguentá-lo pendurado duma azinheira semanas sem fim, e olhe que lhe fica bem este verde lindíssimo amigo Esteves, assenta-lhe mesmo a matar.

“Assentava-lhe a matar” rematara o velho Dimas, ainda assim convenhamos que para gravata tão álacre e de tamanha qualidade o discurso elogioso foi mórbido, isto para além de soar a graxa, quando não a servilismo, coisa caída em desuso poucos anos atrás quando do 25 de Abril e infelizmente regressando ao cimo das ondas nestes nossos confusos dias. Julgo ter deixado bem explicada a razão pela qual o Dimas nunca conseguiu empatia com as novas liberais e libertinas gerações, eram outros tempos, novos tempos aos quais o Dimas foi incapaz de se adaptar e a loja sucumbiu.

Belos tempos esses, em que a Vitorinha do Esteves como ele carinhosamente chamava à sua papoila, sim, também lhe chamava Papoilinha, lembrando Charneca Em Flor da Florbela Espanca, tempos em que a Vitorinha dizia eu, tinha um palminho de cara, era presença alegre, sempre viçosa, bem quista e atraente. Em boa verdade a Papoilinha do Esteves, uma papoila entre a gente, entre nós, seus amigos e colegas, seria decerto uma flor no deserto que por essa época o notariado era, serviço e repartição onde assentou que nem uma jarra florida mal acabou o liceu.

Plantada estava, estavam, nos Registos e Notariado ela, nas finanças, hoje Autoridade Tributária ele, repartição onde mal chegou a esboçar carreira, isto é, não encarreirou, para falar verdade descarrilou. Inda casados de fresco e já ele a trancava em casa vítima dos seus arrotos de machista, aquilo era casa trabalho, trabalho casa, e a cada ano a Papoilinha murchava e perdia pétalas, estames e corola, enfim, secava, murchava, empalidecia como se tivesse sido emparedada.

Quis o destino conceder de novo protagonismo à linda gravata verde de seda com que o Esteves casara, estreara no casamento entendam-me, e, no dia em que entrou como fiscal no lagar da Sofal, credenciado e engravatado, levou-o a curiosidade a ver in loco como era espremida a azeitona, talvez c’o fito de aprender ele, novel fiscal tributário a espremer os desgraçados dos contribuintes.

Olhou, remirou, baixou-se e viu de novo com redobrada atenção como a prensa espremia a azeitona esmagando-a até ela dizer tudo o que havia a dizer e largar o oiro que adoramos num fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira. Debruçando-se sobre ela ia perguntar qualquer coisa;

- Para que serve esta roda tão grande sempre girando, girando sem parar ?

Quando um dos raios da dita roda num ápice, digo repentinamente o apanhou pela bela e linda gravata verde pendendo-lhe do pescoço e num gesto mecânico, ou maquinal foi o Esteves puxado com brusquidão de encontro à roda nem tendo tempo de acabar de formular a questão que acabara de colocar e que tanto parecia atormentá-lo, por que rodava aquela roda tão grande sempre girando, girando sem parar.

A verdade é que aquela roda enorme e girando, girando sem parar o ia puxando como uma apaixonada puxa aperta e estreita num abraço o seu amor, e o Esteves a cada segundo mudando de cor, rosa, pálido, vermelho, roxo, azul, e mais cores não mostraram aquela cara e aquelas bochechas porque quando finalmente lograram parar a máquina já o Esteves estava morto e bem morto, com o pescoço partido.

Razão teve o Dimas, a linda e bela gravata verde em pura seda que lhe vendera mostrara-se forte que nem corda de sisal e, se não aguentou um pendurado de uma qualquer árvore de Natal, sim era Natal, aguentou bem todos os esforços do Esteves para se livrar dela, do Esteves e do resto do pessoal que na vã tentativa de evitarem o pior rasgando a gravata, só conseguiram enrolá-la ainda mais partindo-lhe o pescoço e deixando o desditoso fiscal encravando o mecanismo, entretanto desligado e, diria eu, desligado quando eram já sopas depois de almoço.

E por falar em sopas, ou em sopas depois de almoço como se diz na minha terra, na Páscoa seguinte e após o abalo sísmico sentido na sua condicionada vida marital a Vitorinha voltou a florir e a sorrir, libertou-se das grilhetas servindo num churrasco primorosamente construído pelo Esteves e encostado ao anexo do quintal, um petisco de comer e chorar por mais pois de chorar se tinha ela cansado há muito, petisco onde não faltou um fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira nem um pratinho raso desse oiro puro afim de molharmos a sopa nele, digo a sopa de pão com a qual acompanhámos o paio, o queijo, o presunto, a linguiça assada, havendo até quem se deliciasse e contentasse meramente com a sopa demolhada e uma caneca ou copo por onde escorresse a aprazível cerveja refrescada e refrescante que nos punha a cantar o cante.


Não sei se alguém se lembrou do Esteves, eu recordei-o mas calei-me afim ou a fim de não estragar o convívio a ninguém. Festa é festa e à noitinha, já alegre e tocadita a Papoilinha, sentindo-se viver, e reviver, sentindo-se de novo mulher e livre, animada pelas estrelas perfulgentes, passando a mão por coxas e pernas, olhando-me com o olhar que os bons amigos guardam para os melhores de entre eles, diria para mim:

- Estas minhas pernas ainda têm pele de pêssego como dantes, não têm Baiãozinho ? 

           

terça-feira, 11 de junho de 2019

607 - MESAS, OUTRAS MESAS, OUTROS CAFÉS.


Sim, é tal e qual como dissera porque pensara que, depois de, depois de tu, tu sabes, pensei que depois de partires eu me sentiria mais livre, mais liberto, menos constrangido, por isso pensei que abandonaria logo de seguida o hábito das manhãs neste café, todos os dias, diariamente, como se esta mesa um lugar cativo e cativo eu do teu problema, da tua situação, da tua dor.

Julgava eu que me libertarias, ou que me libertaria eu de ti, que gradualmente poderia começar a ocupar outros lugares, outras mesas, outros cafés, outras presenças, outras pessoas, outras amigas e amigos, por que não ? Pensava eu, pensei eu que seria o melhor, e depois de, tu sabes, acabei por acatar e meter em prática essa minha tão meditada sugestão. Há mar há mar e há ir e voltar, há morrer e viver.

Foi sol de pouca dura. Coisa pouca, mas eu não sabia, há coisas que só vividas, experimentadas, sofridas, por isso aqui estou de novo à mesma hora, na mesma mesa, no mesmo café, as mesmas pessoas ora entrando ora saindo e eu olhando-as, eu que agora já sei, já sei que não, não, nada foi como eu pensara e, não só nada adivinhara como me enganara redondamente quanto ao que pensara, quanto à solução que alinhavara e experimentara.

Tu sim, tu libertaste-te da irrelevância e do sofrimento que o destino de destinara, eu não, não consegui, não fui capaz e, coisa extraordinária, é onde melhor me sinto e onde menos sinto dentro de mim e à minha volta este vazio que me acompanha sempre, vá onde vá, por onde vá, com quem quer que vá.

Algo me falta, algo se obstina em ocupar este vazio que me preenche e esse vazio és tu, a tua falta. A tua ausência. Não foram os cafés nem as mesas que mudaram, fui eu quem mudou. Pois se vejo tudo mudado, e se tudo está mudado, tal se deve à disposição com que agora tudo olho, com que olho este mundo onde já não pontificas e por isso tão repentinamente mudado, como um lago propositadamente secado ou a mim alguém tivesse vazado um olho, cegado.

 Falta na ruas e nos lugares que volto a percorrer o eco das tuas gargalhadas, a luz do teu sorriso, a melodia da felicidade que irradiavas e com a qual me contaminavas, a mim e a todos com quem te cruzavas. Por isso voltei ao mesmo café de onde pensara libertar-me e onde menos sinto este vazio de cada dia e, pasme-se, onde mais perto de ti me sinto pois este lugar ao menos diz-me alguma coisa, nele inda ouço a tua fúria de viver, o teu grito, a tua lembrança, a tua esperança, enquanto o resto do mundo se me tornou repentinamente indiferente, dizendo-me cada vez menos. Para ser franco confesso, depois de ti este mundo não me diz absolutamente nada, não me diz já mesmo nada.

Algumas vezes, por vezes, durou certo tempo a coisa, deambulei pelas calçadas que pisáramos, por percursos que percorrêramos tantas vezes durante tanto tempo que esqueci já quão foram eles por nós calcorreados, até que, não cansado mas desperto, me senti intimamente martirizado, sofrido. Por isso voltei aqui, voltei a ti, a mim e a este café onde me sinto inda a ti preso, a esta mesa onde pouso ainda o telemóvel e o miro de vez em quando não vá nele cair apelo teu, ou um aflito pedido de socorro, uma qualquer mensagem que não desejo ver passar despercebida no elo dessa corrente quebrada, qual cordão umbilical que por tanto tempo me prendeu à tua vida.

Perdera-me, voltei aqui como se necessitado d’uma âncora onde me agarrar e firmar para depois, com bonança e mar calmo, mar chão, me aventurar de novo a recuperar a identidade perdida, decidido a encontrar novo rumo, apostado em traçar um azimute que novamente me ligue à vida agora que a vi perdida, me vi perdido e necessitado de novo compromisso para me encontrar.

Contigo aprendi o significado de perseverança e tenacidade, náufrago de mim mesmo percebi agora a tua teimosia, tu sabias quão nesses substantivos eu seria forçado a apoiar-me para sobreviver, tu sabias do mar revolto que eu enfrentaria, tu não te limitaste a deixar arrumadas gavetas e assuntos, tu aplanaste o caminho que eu tomaria, aplacaste os demónios que me assaltariam e, conhecendo quanta dureza preenchia o caminho que percorrias sobrou-te contudo gentileza p’ra pensares no trilho que me caberia pisar.

Há muitos muitos anos eras tu pouco mais que uma criança dei-te a mão, desinteressadamente mostrei-te o mundo, este mundo do qual tão cedo te foste, este mundo que agora me ajudas a pisar, a percorrer.

             Obrigado meu amor, meu amor de sempre, meu eterno amor. 


sábado, 25 de maio de 2019

606 - SÓ MESMO ELES, SOMENTE OS OLHOS …


Olhos vermelhos, carregados, inchados, e só o cansaço te foi visível ? E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Ou traídos ? De frustrações assumidas ? O cansaço de tantos fardos carregados não lograste alcançar ? E os meus olhos ? Mais é o que escondem que aquilo que mostram não é ? Mas tu não sabes e por eles tentas descortinar-me a idade ? Olhando-os ? Medindo o grau e a cor que carregam como quem numa feira esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula à venda por qualquer cigano ?

E eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que aprendi a não tomar a sério mas para o qual me faço parecer ou não me perdoariam a ousadia. Sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prendem ?

Sim prendem as vidas vulgares, fúteis, cheias de nada, impantes de vazio !

Eu sorrio para mim mesmo apesar das desilusões. Também as tenho, mas sempre saboreando a vida ainda que esta tenha duas faces como qualquer moeda, sabendo que sem uma a outra nada vale, é falsa, por isso sei dar valor a cada momento, a cada minuto, como se único, e fruí-lo porque será pago, ser-me-á cobrado como tudo na vida, o reverso, a outra face, e só quem está para se dar receberá, apesar dos custos, da cobrança na hora do acerto. Por isso este coração enorme, devastado, devassado, ferido, cicatrizado, contudo cada vez maior, cada vez mais dado, oferecido, e quanto mais oferecido e dado mais se agiganta, feliz, contente, jamais saciado mas permanentemente em paz, em dádiva, em oferenda.

E é pelos olhos que me perscrutas ?

Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me o coração, vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada. Não presa, não estupefacta por bater ainda certo, ritmado, mas surpreendida com a sua grandeza, generosidade, porque apesar dos remendos, o seu acolhimento e magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, à tua observação.

E crê-me, fora as marcas que observaste não recordo já os maus momentos, nem jamais esquecerei os bons por um segundo que seja. E vivo sem tormentos, uma vida plena, feliz, cheia, preenchida, uma vida !

Eu tenho uma vida sabes ?

E adoro-a, e adoro-me, e uma desmesurada confiança, este amor-próprio, esta auto-estima, e o ego inflado quanto baste, e nem um bar a mais, e nem um grama a mais, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, porém nem invejo, nem procuro.

Espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma vida sabes ? Vivo ! E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu ! Verdade que sempre cicatrizando feridas, verdade que sempre sorrindo à vida, e os olhos ? Ah ! Os olhos ! São tudo para ti os olhos ? Mas nada mais para mim que não espelho opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a agitação, não consigo viver sem ela ! Sabias ?

E nada viste ? Ao menos a cor ? A pupila dilatada ? Retraída ? E nada mais viste ? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas do mundo fecharem-se quando as olhas ! Mas viste o cansaço ? Notaste o cansaço ? Bastou-te ?

E então ? São para mim estes ovos ? Ficas contente c'a oferenda ? Feliz ? Basta-te este gesto ? E que conclusões esperas ? Posso sabê-las ? E os ovos ? Obrigado, mas já agora, são crus ou cozidos ? Não tem nada a ver uma coisa com a outra ? Mas tem tudo a ver.

Parecendo aparentemente uma questão despicienda não o é, e é mesmo muito importante saber essa diferença se cozidos se crus. Se crus remeterá para os primórdios da história, diria mesmo que nos remete para antes da pré-história e para o bom senso que permitiu ao homem aguentar-se contra todas as adversidades, sobreviver. A oferta de alimento, óbvia e naturalmente cru representará uma dádiva da natureza expressando a preocupação com a terra, a Pangeia, o ambiente, mas sobretudo com a sobrevivência e continuidade do clã, um por todos todos por um, primeiro sobreviver.

Se esta oferta é de ovos cozidos a história é outra, a história e o tempo, já nos remetem para o pós aparecimento do fogo que como toda a gente sabe permitiu assar ou grelhar digamos que cozinhar os alimentos, livrá-los de bactérias, torná-los mais digeríveis, mais calorias, portanto mais alimento e melhor aproveitado pelo estômago tendo levado ao crescimento do cérebro e à evolução deste, a um pensamento mais estruturado. Se cozidos eu diria que não é já e somente uma questão de boa vizinhança ou de amizade entre nós, antes uma preocupação muito para além do sobreviver estando em causa coisa mais profunda que isso, consideração, é como dizer se te candidatares votarei em ti, ou se pensares liderar a tribo estarei do teu lado. A propósito, em Olhão ou em Paço de Arcos há tótemes ? Pelourinhos não valem, são resquícios d'outro tempo d'outra mentalidade d'outra história.


Ao comê-los saberei quanto fiquei perto ou longe da verdade, saberei quão afastada estás de mim e da roda da vida…

Ah ! E que dizes da sobriedade ? Do tino ? Do tino e do tinto ! E já agora deste juízo ? E de tantas merdas, juízos de valor e preconceitos com que durante anos te encheram a cabeça ! E mantenho a minha, aposto nada viste nos meus olhos pois não ?

Ah! Ah ! Ah ! Isso ? Há quantos anos alijei eu essa carga !

             Crê em mim, só então o sol ! A luz !  A claridade ! A plenitude !

             A vida ! 

Encaminhei-me, dei-me, não estou p'ra arrendar, entreguei-me !