segunda-feira, 8 de março de 2021

675 - O MEDO CONTROLAVA, E DOMINAVA ...

 

    

 

Era sábado, nuvens toldavam o dia, o futuro anunciado era de um inverno glaciar onde nem os milhafres se atreveriam a crocitar nem aos voos rasantes e às piruetas de outrora, e eu, triste, acordei ao toque da mão dela, vi ao longe a torre do castelo de Monsaraz e lamentei que o meu sonho não tivesse continuado...

Olhei displicentemente a Tv, ao fundo as galerias da AR vazias, fora isso toda aquela gente engravatada que nunca deixara de ver na televisão continuava botando discursos, assumindo compromissos e fazendo juras enquanto o país se afundava e eu, irritantemente revoltado, perdera os teus olhos cuja luz maravilhado olhava. Esses olhos sempre foram a minha perdição, toda tu te transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando uma luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós mesmos, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em que flutuávamos esquecidos dos teus pais, do mundo, de tudo e de todos.

Depois, repentina e incompreensivelmente, como se tornaria teu hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem existido. Eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida, pegando nas chaves e:

- Não aguento mais, vou apanhar ar, espairecer, passarei pela “Pingo Doce” de Reguengos e trarei comida e fruta. Queres que te traga tabaco, café, uma garrafa de Sharish ?

Na Tv aplausos, aplausos por quê ?

Foram momentos únicos e ignoro como irá culminar o saldo destes meses de receios infundados e imaginados em que estivemos e estaremos refugiados no Monte da Pêga fugindo ao pai dela, pelo que ainda que contrariado sorri, imaginando o resultado, o fruto da tanta preocupação, tanto choque, tanta saturação. Dias, semanas, meses, de altos e baixos, de medos e temores, de amor e de raiva reflectidos em nós que, isolados há meses neste monte, fugindo aos pais dela, desde o defeito mais insignificante à qualidade mais relevante atiráramos e havemos de atirar à cara um do outro.

Tanta verdade e crueza certamente deixariam mossa, a idolatria mútua fora-se, consumida na voragem dos dias, na impaciência, nos nervos recalcados. Difícil era descansar de todas estas apreensões sem temer o saldo final, o custo, sim apreensões, que outro nome dar-lhes ? Preocupações, apreensões, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o ressentimento acumulara-se na cabeça de cada um de nós, daí o receio agora sentido. Passadas tantas décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não foram paixões mal acabadas, foram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Voltavam de novo quais aves migratórias.

Por isso a dor, a desorientação, olhos que falavam, que interrogavam, que apoiavam mas já não prometiam pois conscientemente não o poderiam fazer, só Deus nos poderia julgar e submeter ou libertar. Foi a essas janelas da alma que nos debruçámos ignorantes do por quê do devir, da sina, do fado, ignorantes do fim de tal caminho, ignorando as borboletas, os apertos no estômago. Eu esquecido daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que então não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e depois os choques, as zangas, a fartura de tudo, a fartura um do outro, a impaciência, o alheamento, o ressentimento, a culpa.

Por esta é que eu não esperava, lembrando que a uma acção se opõe sempre qualquer reacção. Contudo recordo que, quando os seus pais me assustavam ela ali estava, inamovível mas acessível, indispensável e imperecível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e depois eu fugindo de ouvi-la, escondendo-me para não ter que lhe responder, embaraçado umas vezes enraivecido outras, escondendo a dor ou a raiva como escondera as precedentes, camuflando o meu lamento e incapaz de dar a volta à situação, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a minha exposição e incoerência mostravam. Tínhamos ido longe demais. A cada dia íamos longe demais para voltar atrás.

Pressenti aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim da história a dois que anos a fio nos tinha animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Pressentira-o quando a notava acordada rebobinando o passado recente, senti-o porque voltou a não aceitar o meu abraço e porque quando se cruzou comigo não me viu, não, não me viu ou fingira não ver, todavia fora uma passagem rápida, um instante, e ao vê-la tão perto a minha mente automática e repentinamente accionou velhas recordações e num segundo regressou o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos seus olhos, contas de vidro mantendo ainda o mesmo brilho fulgurante de outrora, quando almoçávamos numa qualquer esplanada de Monsaraz. Mas agora ela nada, ela alheada de mim, eu outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora maduro, seguro, extrovertido, perdida que fora a inocente ingenuidade dos puros, e já cheio de certezas, firme de convicções, eu a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, contudo ainda desvalorizando o tempo que dantes me parecera infindo e hoje seleccionando os momentos, as amizades, os olhos.

Eu já de carácter e mãos firmes contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma inexperiência, a mesma atrapalhação ante os mesmos colchetes que nunca aprendera a manejar agora que tão necessária se mostraria essa experiência, agora que tudo devia concorrer para te agradar e impressionar, jamais para te irritar, agora que dava tudo para que o passado se fizesse presente é o presente que atrapalho com a mesma falta de jeito de sempre.

Mas não, parece que não me viras mesmo, talvez melhor assim, melhor não reparares no meu hálito, e certamente não me atirares à cara com alguma garrafa de Sharish, não a mim não, não a mim em cujo desnorte redescobri o prazer encerrado numa botelha de Sharish. A coisa, isto, está a tornar-se insuportável e tudo é lícito para lhe fazer frente, contudo jamais esqueci o teu amor pródigo, esse amor fogoso e inconstante que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado os colchetes… mau grado o Sharish.

Verdade que nunca lhe prestara tanta atenção como agora, será do convívio forçado, é uma reacção natural digo eu que para além dos livros, da Tv e da música nada mais tenho com que me distrair, me entreter, com que engraçar ou embirrar. Tu vives e falas monopolizando tudo, tudo e todos, podendo tentarás condicionar nos outros discursos e vontades. Por vezes nem te ouço, és mestra a invocar o encanto das sereias e, como por magia, manipular-me, manipular-nos. Estava pensando nisto e o quanto isso me irrita quando ao preparar a mesa para o pequeno-almoço dei por ti, cedo nessa manhã, estendendo a roupa no arame apesar de, e estando tu farta de ser avisada de quão adoro olhar o largo e tutti quanti se alcança dessa janela.

- Um dia esventro-te e nunca mais me tapas as vistas.

Alto lá, desta vez excedi-me. Este pensamento tem que ser dominado, verdade que a mais pequena coisa me irrita mas um pensamento destes pode ter-se mas não concretizar-se, tê-lo é já um exagero e um mau sinal. Acredito que esventrando-a nunca mais se atreveria a tapar-me a paisagem, coisa em que ela aparentemente teima por saber que amo Monsaraz mas sim, creio conscientemente que este subconsciente me levou longe demais.

Quinquagésimo dia de fuga aos pais dela, na sala o relógio da passadeira marca quase 9 horas da manhã e diz-me que já palmilhei em meia hora, o equivalente a quase três mil metros suados. A manhã está desagradável e coloca um ligeiro embaciamento nas janelas em frente e à direita, através das quais diviso para me distrair do esforço despendido, uma jovem mulher passeando um cão branco e preto muito feio, ela linda e, passado algum tempo uma outra vizinha num monte em frente, aflita, de colher na mão, fato de treino e gorro vermelho sangue que, agitada e de colher na mão tão depressa corre pra a direita como para a esquerda ou marcha em frente para logo virar para trás, até se sumir de novo pela entrada do monte.

O meu monte está um pouco elevado, tem uma vista esplêndida, estive para perguntar à vizinha de vermelho se por acaso andaria passeando a colher ou somente expelindo a pressão acumulada por estar encerrada em casa…

Ultimamente passo a maior parte dos dias estirado, pés fora do sofá inalando indolentemente um cigarro, eu que tinha abandonado o vício estou a voltar a ele com redobrado vigor. Os dias ficaram frios e sumo-me por debaixo duma manta, ora destapando os pés ora os ombros.

Ambos sabemos e temos consciência de terem sido os últimos tempos, dias, semanas e meses que nos puseram extraordinariamente à prova, foram eles sem a menor dúvida os culpados das borboletas, das paixões incontroladas, até mesmo dos apertos do estômago, das dores de barriga, do enrolamento das tripas, das birras, tricas, quezílias, zangas, brigas, pazes, explosões de amor, beijos e abraços.

Sabes querida, também o mesmo medo aos teus pais que nos desuniu e assustou nos uniu, no fundo falou mais alto o medo de fazer as malas e arrumar a vida sem que os esperássemos e, como bem dizias não seria assim tão simples, não seria somente fechar os olhos e abalar, o medo protegeu-nos, o medo foi apesar de tudo a nossa defesa quando eles pareciam correr à nossa volta. Começo a perceber o mecanismo do medo sabes ? Primeiro alheamo-nos de tudo como se fossemos imortais, alheamo-nos de tudo, tudo se passa lá longe e nada é assumido por nós que seja pensado e ponderado ao pormenor. Continuámos a nossa vidinha, continuámos a nossa vidinha de faz de conta e de improviso e só começámos a acautelar cenários quando a coisa começou a chiar mais fino e a sentir os teus velhotes mais próximo ou seja quando finalmente aceitámos como possíveis as ameaças que nos pudessem chamuscar.

Infantil e inconscientemente deixámo-nos levar pelas circunstâncias sem ao menos buscarmos soluções para os choques que nos opuseram, nem pedimos conselhos ou recomendações a quem quer que fosse, mas quem estava próximo ? A idiota da Cassilda ? A esparvoeirada da Guilhermina ? Falo por mim, reconheço tudo ter feito de bom e de mau, subtraí-me inicialmente à alçada da razão e somente agora as asneiradas a que dei azo me retinem na consciência, qual alarme avisando-me para uma ameaça pairando sobre a nossa relação, seria pior que nunca se tal acontecesse.

Nesse momento, nós que julgáramos esta união na esfera da imortalidade afinal tivemos que lhe acudir de emergência pois receámos, tememos, que despudoradamente tivéssemos ido longe demais e a coisa pudesse não ter conserto.

Em boa hora passei a vigiar atentamente os teus pais e as nossas vidas, apostado em salvar esta relação que, por mais paradoxal que possa parecer-vos desta vez exigiu que a aposta recaísse na separação, digo no afastamento deles. E nada de irmos às compras juntos, apostei em mantermo-nos juntos o mínimo de tempo e separados o máximo, há que evitar a saturação, a confrontação, os nervos, os choques e os conflitos, passámos a privilegiar o debate e a admitir e a incentivar o contraditório de modo metódico, a fim de evitar que chegássemos de novo aos extremos a que chegáramos e antes que as coisas se tornem irreversíveis.

Tive medo, confesso que senti medo, confesso que as noticias sobre os teus pais eram cada vez menos animadoras, para não dizer desencorajadoras, ou ameaçadoras. Não me queixei, nada de lamúrias, nunca fizeram parte do meu feitio mas fizeram então, sobretudo tendo em conta que televisões e jornais apontavam que a soldo dos teus pais todos nos procuravam e todos nos mentiam, a proximidade deles devia ser muito pior que qualquer outro dos medos que vivemos.

Logicamente interroguei-me, quando teria a coisa fim ? Estaria sendo egoísta ? Pela primeira vez na vida forcei-me a reconhecer a verdade e a verdade é que me senti ameaçado. Senti-me abafado e efectivamente querida só a ideia de perder-te me provocou uma insegurança e uma falta de humor inusuais em mim mas que não consegui disfarçar nem esconder por mais que tivesse tentado. Na verdade aquilo buliu comigo, alterou-me os ritmos biológicos e quem sabe o quê mais. Nunca acreditei nessas balelas da sina, da aura, do karma e dos chacras mas desde então tive motivos para pensar nisto tudo. É certo que acabei rindo-me da coisa, mas rio-me agora pois na altura tudo senti, desde suores frios a tremores, tudo menos vontade de rir. Esta merda do medo dos teus velhos ou do caraças mexeu comigo, connosco, e quem disser o contrário estará a mentir…

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

674 - TIBAU TAVARES, TT, O CAMPION DI MAIO*



    Apreciação de algumas das suas músicas e do seu registo em geral.

 

A modos de introdução devo dizer que esta apreciação crítica (crítica no sentido de análise e não no de depreciação) me foi sugerida ou pedida pela Sandra B. por me saber tão apreciador quanto ela da música e canções de TT, mais importante ainda, por ela me considerar isento e insuspeito, já que ao longo dos tempos temos trocado impressões a este respeito e nunca lhe escondi o que realmente penso acerca de uma música, uma canção ou um simples acorde vindo de TT. 

Por agora irei debruçar-me em especial sobre quatro das suas canções, Ramantxada, Diabo Ca Ta More Nau, Palavra e Tempo Di Azagua, precisamente as quatro que eram até agora desconhecidas para mim, seu admirador, fã e ouvinte há longo tempo.

 Em abono da verdade devo confessar que até aqui sempre fui um admirador e apreciador interessado da música Cabo Verdiana, talvez o único lugar do mundo que poderia viver da música e dos seus músicos, tal a variedade, quantidade, qualidade e diversidade de sonoridades, aliás se Cabo Verde é bem conhecido em todo o mundo, muito é devido à sua extraordinária musicalidade.

 Qualquer que seja a música cabo-verdiana ou de TT, facilmente se detecta em quaisquer delas uma miscigenação, se é que esta palavra pode ser assim entendida, de ritmos africanos e caribenhos de mão dada com elementos musicais tipicamente europeus e cujo soluto resulta numa infinidade de estilos musicais muitos específicos, tal qual o funaná, a tabanca, o batuque, ritmos que foram importados ou influenciados da vizinha África, e até de Portugal. 


Há na música Cabo Verdeana remédio para todos os gostos como na farmácia e, nota importante, a sua música não está ainda contaminada pela uniforme vacuidade a que as editoras discográficas e agentes inerentes tudo submetem na busca de um lucro rápido, porém efémero e fatal para um artista que abrace esse caminho, um caminho que embora o possa conduzir por um arco iris ao pote de ouro jamais lhe trará fama duradoura nem reconhecimento internacional. Refiro-me naturalmente à chamada música plástica ou música chiclete, mastiga e deita fora…

 A originalidade, frescura e espontaneidade das músicas cabo-verdianas e de TT, garantem-nos uma faceta genuína actualmente difícil de descortinar a no concernente à música mundial, toda ela impregnada, ou devo dizer infectada por artifícios electrónicos e digitais, até a nível instrumental ou sobretudo a esse nível, produzindo e reproduzindo facilmente uma panóplia de sonoridades variegadas e eclécticas, todavia artificiais. Porém não confundir esta minha crítica com a salvação da música em meio ou suporte digital afim de a preservar para a eternidade.

 Em Cabo Verde, a exemplo de TT, tudo anda de instrumento na mão, todos sabem tocar um qualquer instrumento e a música brota como flores nessas ilhas e nos ilhéus atlânticos, genuína, colorida, quente, como se estivesse destinada a ser servida numa bandeja ou numa palete.


Voltando a TT e à sua criação/actuação, quer a solo quer com a dupla Pupkulies & Rebecca, a sua música ou sonoridade tem um registo inconfundível, quase uma impressão digital. Transporta até nós o calor das mornas cujo ritmo observa ou respeita mas sem que se lhes submeta, e nessa dolência / indolência embala a carinhosa solenidade, sonoridade e musicalidade de que todas as suas canções se revestem em maior ou menor grau e nos embalam em doce melodia, harmoniosa calma e paz celestial.

 Em Ramantxada, que ouvi tendo repetido a audição várias vezes (tal como fiz com todas as outras canções), encontramos o seu habitual registo, o mesmo habitual som, uma musicalidade muito própria, agradável, talvez para mim impaciente por a ouvir toda, me tenha parecido haver alguns trechos demasiado repetidos, talvez por isso cansativos, talvez cotrrectos para actuações ao vivo, mas que contudo me parecem não resultar numa audição em CD/DVD. Todavia não esqueçamos a impaciência de que eu estava animado…

 De igual forma Em Diabo Ta Ca More Nau encontramos o tradicional ritmo “Tibauteano” que tão bem nos sabe levar, empurrar docemente para a canção seguinte que essa sim, por ser traduzida ou parcialmente traduzida para português, se torna mais agradável e mais rica a nossos ouvidos, já que nem todos “pescam” um pouco de crioulo como comigo acontece. Quer uma quer as outras canções, todas elas estão imbuídas do mais puro estilo musical cabo-verdiano. Idem para todas as outras não mencionadas aqui mas com as quais ao longo dos tempos me tenho deliciado. Verdade que gostei especialmente de "Palavra" e de "Tempo Di Azagua" contudo não é minha intenção menorizar quaisquer outras.


Entre outras coisas falámos, a propósito da música de TT sobre mercados e vendas, e ambos concluímos ser a Europa quem adquirirá a maioria dos seus muitos, diversificados e arrebatadores CDs e, sendo conhecida a presença de TT na Alemanha, a mesma será de todo o interesse para ele, pois em Cabo Verde o mercado é muito pequeno muito restrito. Ocorreu-nos também que, sendo o mercado da língua portuguesa  enorme, as canções deviam ter este pormenor em conta, ser cantadas ou meio cantadas ou traduzidas para português e, sendo a morna Património Mundial pela Unesco, poderia a composição delas ser mista sem que houvesse lugar a transgressão de normas. Uma parte em crioulo outra parte em português seria uma boa solução. Através de TT viémos a saber posteriormente, pois ele mesmo no-lo afirmou, ter já composta uma morna que observa essa particularidade, parte em crioulo, parte em português.


Entre conversa, piadas da Sandra e anedotas minhas bem picantes, Tibau Tavares  confidenciou-nos estar a pensar levar adiante um projecto incluindo duas vozes, dueto partilhado com uma cantora portuguesa e metendo a nossa guitarra em tal morna, projecto a que anuímos com emoção, pois até do ponto de vista comercial achámos a ideia dele bem boa, porque os fãs dela, dessa cantora, irão através dela conhecer TT e divulgá-lo, irão divulgar também a sua música e trazer-lhe novos fãs e decerto enorme incremento nas vendas, senão vejamos; em Portugal pode contar somente com 10 milhões de potenciais consumidores, mas no Brasil são qualquer coisa como 220 milhões, acrescentemos Angola, Moçambique, Timor, S. Tomé  Príncipe, a diáspora portuguesa e cabo-verdiana no mundo, que não são pequenas... Ao todo talvez acima de 500 milhões de potenciais compradores para os seus CDs, um mercado deveras interessante pois não há músico que viva do ar que respire ... 


A tua ideia é uma mina mano, alvitrou a Sandra, se conseguires fá-lo, assim o caso mudará de figura até porque ela também colherá vantagens da parceria, também precisará de ti para entrar no teu mundo, no mundo dos teus fãs e, consequentemente, facturar mais. Nenhum de vós certamente terá pai dono duma fábrica de ventoinhas e é mais que certo ninguém viver do ar ...

A deixarmos alguma sugestão ou conselho diríamos apenas que na música, como na literatura, as primeiras palavras contam imenso, as primeiras palavras, os primeiros acordes, e como tal há que dar ênfase aos primeiros minutos, como às primeiras linhas, agarrar o ouvinte e, ainda que mantendo o mesmo registo que garantiu o sucesso alcançado, não esquecer a volubilidade dos fãs, e como tal não os castigar ou cansar com demasiadas repetições, mas dar-lhes surpreendentemente algo novo de cada vez, mantendo sempre a corda tensa e as expectativas altas. 


Em particular por não sermos nós quem está no palco, ficamosm incapacitados de observar a partir de cima os espectadores e ouvintes, os fãs, remexendo-se na cadeira, no sofá ou na pista de dança, não somos nós quem lhes topa as emoções e disposições, portanto entendemos que TT, melhor que nós saberá levar o barco a bom porto, saberá com tempo fazer as alterações e melhoramentos que entender nas suas músicas pois a nós resta-nos acreditar e ter esperança, já que fé e devoção são coisa que há muito nos animam.

 E é tudo, um abraço mano.



SOBRE O AUTOR:

TT, Tibau Tavares (José Mário Tavares Silva), é natural da ilha do Maio (Cabo Verde), foi cantor na igreja e escola locais aos 6 anos, lugares onde terá tocado os seus primeiros acordes. Durante a estada no liceu da capital cabo-verdiana, na cidade da Praia, participou na banda do liceu e em vários outros grupos musicais. Depois do regresso à sua ilha natal a ilha do Maio, trabalhou na capital dessa ilha, Cidade do Maio, onde fundou o grupo musical “Os Maienses” e posteriormente o “Maio Acústico”.

 Em 2005 gravou sua música "Tradição", que daria nome ao seu primeiro álbum. A cantora cabo verdeana Lura comemorou um grande sucesso com sua música "Ponciana e as Águas" e além dela, uma outra cantora interpretando a morna “Noite de Porto Inglês”, Zizi Vaz de seu nome, enriqueceram o seu repertório com composições de Tibau.

 Em 2010 TT, Tibau Tavares tornou-se conhecido como compositor nos Estados Unidos, onde uma grande variedade de artistas têm interpretado músicas suas desde então. Em 2013 gravou dois CDs com a banda alemã “Pupkulies & Rebecca” e com esta formação apresentou brilhantes participações em festivais por toda a Europa.

 Em 2017 lançou o seu segundo álbum a solo. Produzido igualmente na Alemanha, o álbum “Wonderful Africa” que fez furor e causou sucesso no “Africa Festival Würzburg”, o maior festival de música e cultura africana da Europa. Um seu CD actual "Melodia" contém 7 faixas inéditas, é fácil de encontrar e vale a pena ouvir.  

                       Foto da actuação de Tibau Tavares em Coimbra


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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

669 - DO MACACO NU AO REI VAI NU, CHEGA !*

 


Os últimos tempos vividos, os atropelos à democracia, a parcialidade manifesta, a falta de isenção de decoro e respeito por eleitores, contribuintes, espectadores e Tutti quanti, têm-me conduzido a profícua meditação.

 Verberamos os tempos da outra senhora, digo do antigo regime, mas parece nada termos aprendido com eles, de tal modo que nos encontramos agora bem pior que em 1926, quando um salvador foi chamado para que a pátria não perecesse. Direita e esquerda parecem apostadas em ver qual delas vê pior, seja ao perto seja longe, e a verdade é que volvidos 46 anos de pacata democracia nos encontramos não num beco sem saída mas no fundo de um abismo.

 É curioso que decorridos 46 anos de relativa paz neste país e no mundo não tenhamos conseguido fazer ou fechar um único negócio de modo positivo. Ora nenhuma empresa, nem nenhum país, se aguenta ou sobrevive vivendo sobre negócios ruinosos. Que me diga quem souber qual negócio que Portugal fechou nos últimos 46 anos em que não tenhamos tido muitos milhões de prejuízo. Da TAP á EDP, a Sines a todos os mas a todos os negócios em que nos metemos, BESCL, BPN, etc. etc., em todos enterrámos muitos milhões para nada, simplesmente queimados.

 É difícil gerir tão mal, é difícil fazer pior, não nos temos governado, temo-nos desgovernado e mal de há 46 anos para cá. 46 Anos em que nem novas empresas, nem novas oportunidades surgiram e nada de novo cresce a não ser a falta de transparência e a corrupção, é tempo de dizer basta é tempo de dizer chega.

Já nada é nosso, na ânsia de liquidar os agrários que desprezámos entregámos tudo aos espanhóis que veneramos. O capitalista nacional não presta, mas o capitalista estrangeiro é herói respeitado e venerado. De tal modo errámos que hoje nada é nosso, nenhuma grande empresa pública, nem os seguros, nem a banca, nem as terras, nem as estradas, nem as pontes, nem portos nem aeroportos. Pagamos caros comboios deficitários e vergonhosos em que nem andamos, aviões em que não voamos, pagamos cara uma RTP que não vemos, continuamos pagando a taxa de um universo audiovisual que nos embala, trama, mente e aliena.

 Até quando ? Ainda não CHEGA ?

 Pagamos caros serviços de que não beneficiamos e o avanço tecnológico só serviu para nos complicar a vidinha. Ninguém atende telefones na maioria dos serviços públicos, não respondem aos e-mails, patinhamos no nosso próprio atavismo e erguemo-nos contra quem queira mudar este estado de coisas há muito impossível de manter.

 95% Da banca já não é nossa, nem 97% dos seguros e o investimento, de que precisamos como de pão para a boca, se público ronda há muitos anos o zero absoluto, se falarmos do investimento privado direi ser oportunista, leva-nos os anéis não tardando a levar-nos também os dedos, numa condenável ainda que compreensível atitude predadora pois somos nós quem se põe a jeito....

 Contudo o investimento privado, não deixando de manifestar-se pelas horas de amargura que está passando, foge daqui a sete pés apesar de bradarmos por ele. Para o investidor tudo conta, em especial a existência de um mercado suficiente, estabilidade social e uma fiscalidade aceitável e previsível, eu diria serem estas as coisas que mais contam, pois bem, há anos que não temos nem umas nem outras e, lamentavelmente ninguém se opõe, ninguém contesta, ninguém denuncia este estado de coisas.


 A invés de nós, que somos mestres do improviso e avançamos às cegas e sem rede, ninguém parece reparar no modo organizado quase militar com que a China avança no mundo e em Portugal com o seu modelo de internacionalização. Um modelo exemplar e que mais parece ter saído dos manuais de um gabinete de estratégia militar onde se elaboram há mais de trinta anos as melhores tácticas para se assenhorarem do mundo. Começaram por ficar com as “Lojas do 300” mas hoje Imperam e dominam, enquanto nós regredimos para valores de há duas décadas atrás. 

É este o nosso progresso, a nossa situação, em linguagem económica dir-se-á que registamos há mais de 20 anos um crescimento negativo. Toparam o eufemismo ?? Eu diria mesmo um sólido crescimento negativo. Com eufemismos destes todos os dias nos enganam, e todos os dias governantes e deputados se enganam a eles mesmos.

 Direita e esquerda falharam rotundamente em Portugal. A direita por se ter acovardado após a morte de Sá Carneiro, de quem ficou órfã até hoje, incapaz d’o substituir, d’o compreender, d’o igualar. E assim ou devido a isso a direita se tem demitido de defender os seus valores tradicionais. Sim a direita tem valores e tradição, tinha, há 46 anos que se demitiu de os defender, de se assumir, traindo duma assentada e por duas razões todo o povo português, que não defendeu repito, permitindo a sua alienação, tanto quanto permitiu e até participou na alienação do país e do seu rico património social, económico e cultural.

 Como alguém disse “temos a direita mais estúpida da Europa” penso ter sido Miguel Sousa Tavares, que também acrescentou “termos a esquerda mais estúpida do mundo”. Senão vejamos o que conseguimos em 46 anos em que a esquerda governou ou no mínimo condicionou maioritariamente os caminhos deste país ?? No mínimo zero, nada, no máximo 46 anos perdidos, um buracão na economia, e na sociedade uma montanha de dívidas que nem Maomé quererá olhar quanto mais visitar…

 Nem tudo que é bom se deve à esquerda, nem tudo que é mal se pode atribuir à direita, uma outra são o braço e o fiel da mesma balança, e querer governar com uma esquecendo a outra é erro crasso, até a nossa cara tem duas faces, e todos somos portugueses, todos temos boas ideias, todos temos ideias de merda. Há 46 anos que ideias e ideais de merda vingam no país, o resultado está à vista de todos, é hora de mudar de agulha ou de linha. Querer obter resultados diferentes com a mesma mezinha é teimosia de tolos.

 Sim, somos tolinhos, mas portamo-nos como ricaços apesar dos pelintras e pedintes que somos, perdemos a honra e a vergonha, do macaco nu que éramos em 74 passámos ao rei vai nu de agora, e parece nem termos dado por isso. No entretanto enganam-nos e enganamo-nos com soluções incoerentes, duvidosas, em que ninguém acredita mas às quais todos encolhemos os ombros, desinteressados, porque este país é governado por um ninho de aldrabões sem qualquer pudor ou credibilidade, assessorado por mídias não isentos que espezinham a imparcialidade a cada momento, vivem de subsídios e lambem a mão do dono.

 Da ditadura de Salazar passámos à ditadura dos instalados, os mesmos contra os quais décadas atrás Mao atiçou os Guardas Vermelhos dando início à inenarrável Revolução Cultural (formalmente a Grande Revolução Cultural Proletária), movimento sociopolítico na China a partir de 1966 e que se prolongou até 1976. Movimento que de cultural não teve nada mas de barbárie teve imenso, terá sido essa contudo a única forma possível de fazer a terra mover-se, tal qual dissera teimosamente séculos atrás Galileu Galilei, Já não recordo mas penso que em 1633

 - … “ E no entanto ela move-se “ …

 Derrotado o milenar feudalismo chinês com a revolução de 1950, não tardou que funcionários e homens de mão do partido tomassem conta dos lugares deixados vagos e se instalassem neles de armas, bagagens e mordomias. A China, que sofrera uma convulsão (1946 – 1950), estava de novo manietada, desta feita pelos donos da revolução, que prometiam mais mil anos de feudalismo, ou de imobilismo. Mao nunca teria tido de outro modo que não com a ingenuidade, parvoíce e inocência dos jovens, poder para retirar desses lugares de privilégio os novos instalados, e hoje a China é o que todos sabemos.

 Portugal padeceu até 74 com a oligarquia instalada no poder cuja história conhecemos, mas volvidos 46 anos temos nas mesmas cadeiras gentinha ainda pior. Dantes sofríamos os desagravos de uma cabeça uma sentença, hoje os desatinos de cem cabeças e de cem sentenças. Entre uma e outra opção venha o diabo e escolha. 

Os instalados de hoje contra os instalados de ontem, porém estes comem mais, roubam mais, estragam mais e fazem menos, muito menos. Que fizeram de positivo para além de 46 anos de negócios ruinosos ? Para além da venda do país a pataco ? Para além da traição de alienação de sectores estratégicos ao estrangeiro ? Para além de toda injustiça, incompetência, irresponsabilidade e corrupção ?

 Basta, chega, vou terminar deixando-vos dois desafios para interrogação e meditação;


§  Que levou o fascista Benito Mussolini e o partido Fachio a instituir pela primeira vez no mundo regulamentação de trabalho extraordinariamente detalhada e ao tempo a mais completa e progressista da Europa e do planeta, a qual incluía pela primeira vez as 48 horas de trabalho semanal, oito diárias, e em que contexto e condições o fez ?? **

 

§  Por que foi o Kaiser Guilherme II da Alemanha e último Rei da Prússia, esse imperialista, fascista, direitista e capitalista quem instituiu pela primeira vez na história, na Europa e no mundo, um sistema de previdência e segurança social cuja protecção beneficiou desde então milhões e milhões de trabalhadores, e por quê ?? ***


Meditem.


Boas Festas, Feliz Ano Novo

 



  •  ** A Carta do Trabalho (italiano: Carta del Lavoro) é o documento no qual o Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini apresentou as linhas de orientação que deveriam guiar as relações de trabalho na sociedade italiana, nomeadamente entre o patronato, os trabalhadores e o Estado, sendo uma das facetas do modelo político corporativista. A Carta foi promulgada pelo Grande Conselho do Fascismo e divulgada no jornal Lavoro d'Italia em 23 de Abril de 1927. As horas diárias e semanais por algumas categorias (8 e 48) foram estabelecidas pela legislação regular nomeadamente o R.D.L. 19 Março 1923, n. 692. A CDL declarava apenas princípios orientadores como uma Constituição. (NOTA POSTERIOR; O meu obrigado a Ricardo Marchi que ajudou a esclarecer alguns pontos mais duvidosos.)


  • *** Na abertura do Reichstag a 6 de maio de 1890, o Kaiser Guilherme II (Natural de Berlim, 27 de Janeiro de 1859 – falecido em Doorn, 4 de Junho de 1941, foi o último Imperador alemão e Rei da Prússia de 1888 até sua abdicação em 1918 no final da Primeira Guerra Mundial. GVBuilherme II afirmou que o problema que exigia mais atenção era o aumento do projecto sobre a protecção dos trabalhadores.[11] Em 1890, o Reichstag aprovou os Actos de Protecção dos Trabalhadores que melhorou as condições de trabalho, protegeu mulheres e crianças e regulou as relações de trabalho.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

668 - ANJOS, ANJAS, O COMBOIO DOS DOCES ...

                         Pintura, acrilico sobre tela, Fátima Magalhães, 2020 

ANJOS, ANJAS

 

A questão era velha como Freud,

e,  enrolados no linho,

ia sendo desfiada como num fuso,

devagar , devagarinho,

as ideias girando tal qual na roca,

a dialéctica fumegando,

ora parada, ora avançando,

parada num desvio da linha,

uma extensa linha mental

em que a retórica cavava apeadeiros e estações,

onde sinaleiros conduziam o fio à meada,

cuja complexidade constantemente descarrilava.

  

Eram desvios colaterais,

e tu carinha de anjo teimando em bravata de séculos,

os anjos precisamente,

 

Tu :

 

- Quantos anjos na cabeça de um alfinete ?

 

Eu,

tentando trazer-te de volta aos carris,

 

abraçando-te, mimando-te,

a mão subindo as tuas costas,

travada p’las omoplatas salientes,

quais raízes onde dantes as asas,

eu mais que tu, fervendo,

quente, quiescente, aquiescente,

quase no ponto e,

repentinamente,

nova acometida,

 

- Terão os anjos sexo ?

 

Sim ? E qual será o sexo dos anjos ? 

 

O comboio reduzindo a marcha,

a polpa de tomate engrossando,

nós gulosos na avidez do doce,

da compota,

o caramelo ameaçando queimar,


e eu :

 

lembrando a colher de pau da avó Inácia,

 

mexe, mexe !

 

O comboio retomando lentamente a marcha,

devagar , devagarinho,

mexe, mexe !

gozando o travo agridoce a maçã verde.

 

O comboio agora ganhando velocidade,

mais depressa agora !

 

Mais depressa, mais depressa, mais depressa  !

 

Nós entretidos com o caramelo, a compota,

a polpa de tomate derramando,

pouca terra, pouca terra, pouca terra…

 

Não pára !

não páres agoraaaaaaaaaaaaa !!!!!!

mais depressa, mais, mais, mais, maisssssssss !!!

agora mais devagarrrrrrrrrrrrrrrrrr…

 

Oh ! Deus !

não sei se há anjos,

mas há céu,

eu vi o céu,

o céu, o céu, o céu, o céu, o céu …



Pintura, acrilico sobre tela, Fátima Magalhães, 2020


domingo, 1 de novembro de 2020

667 - O RETRATO A SÉPIA By Maria Luísa Baião *

                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Estava amarelecido já, pelo tempo, e julgando as características da película era mais que certo tratar-se de um retrato nas antevésperas da vulgarização do digital. A pose, essa, tinha sido moda meio século atrás, de pé, ar altivo, corpo hirto, a mão descansando nas costas de uma cadeira. 

A pose não enganava ninguém, pois se passara a vida a inventar destinos e grandezas, aquela foto fora tirada pensando na sua exclusiva consagração. Nunca soubera viver sem o mando, como nunca soubera que fazer com ele, o que lhe importara sempre fora sentir o palco como seu, e nele, enquanto viveu, cumpriu o triste papel de personagem enganadora gizando à sua volta um bem conhecido mistério. 

Levara uma vida visceralmente solitária, sempre ficcionando, manobrando, iludindo, intrigando, enganando e mentindo, mas porque em público se calava, a todos fizera julgar ser superiormente inteligente. De quem provavelmente nunca lera um livro, foi de estranhar ver na sua lápide aquela homenagem, como de grande vulto da cultura se tratasse. De sua memória muitos dirão reverências, mas quando descoberto o logro devastador que foi a sua vida, soará o prenúncio de uma queda abissal. Biógrafos registarão o falso charme religioso com que se cobriu e a sua figura será reescrita de forma consensual como a duma personagem nada sensual. 

Causa dos males e dos remédios de que toda a amoralidade é capaz, veremos então surgir o verdadeiro recorte de uma personagem sinistra, narcísica, megalómana, que simplesmente morreu como sempre vivera, cultivando uma fingida discrição, mas, com estudada perfídia arvorando sempre uma doentia arrogância. 

Uns anos mais e tal figura não merecerá mais memórias que D. Sebastião, pois fizera da sua vida uma selva e nela devorara, submetera, achincalhara, todas e todos quantos se lhe atravessaram na frente. A falta de veros amigos provocara-lhe irreversíveis perturbações psicológicas. Lembro ainda quando, com um pretensioso gesto de mão, afastava os conselhos de quantos médicos lhe haviam recomendado internamento psiquiátrico. Amigos de Peniche somente uma ou duas figuras, justamente quem pacientemente lhe escrevia os discursos que com ar grave proferiria como seus. 

 Sempre julgara saber mais que todo o mundo, implacável para com os que lhe estavam abaixo, era contudo irrepreensível no protocolo, adorando cerimoniais, mesuras e vénias aos que superiormente se lhe apresentassem. Passou o último dia na cadeira do poder, que tanto apreciava, certamente vira pela janela o pôr-do-sol, depois partiu, não morreu, apagou-se, deixando no vasto salão um cheiro a velas e a urina. Embora o escondesse de todos, urinava-se então pernas abaixo a toda a hora. Assim se retirara do nosso convívio, podem imaginar maior felicidade ? 

 O destino fizera-nos um favor, a sua morte libertara todos quantos submetera, para esses terminara o desânimo, a apatia. A tragédia / comédia consumara-se e, enquanto o corpo arrefecia, exultante, a populaça emergia de novo, apagando da lembrança toda uma vida sofrida e cabisbaixa, sacudindo o desânimo que durante anos a animara. A alegria de viver retornara lentamente como acontece com a Primavera, estendendo sobre todos um manto de alívio e libertação. 


 Por todo lado soavam estalidos de grilhetas quebrando, ecos de consternação, fulgores de futuros risonhos. Um fardo nos saíra dos ombros, e como quem desce uma montanha, recordo ainda a alegria incontida desse dia. “A vida não é um acaso, é um mistério”, onde foi que eu li isto? Relembro S. Paulo, sim, fora S. Paulo, vai para três mil anos quem dissera acertadamente que: “ Deus escolhera na sua infinita sabedoria e entre a natureza, o que há de mais fraco, para confundir os fortes, e o que havia mais desprovido de saber para confundir os sábios”.

 Estava explicado o retrato, a pose, e essa vida altaneira e obscena confundindo os fortes e ludibriando os fracos. Descoberta a velada e dissimulada ignorância para confundir os sábios. Que mais posso dizer ? Que a vida e os anos haviam feito dessa personagem enigmática, rodeada de falaciosos mistérios, torpes intrigas e cuidados silêncios uma figura ilustre que a morte despira sem pudor nem contemplação desvendando singelamente a sua vera e triste dimensão. 

 Já se avista Marte, chegarei a tempo do seu verão. 

 Ano da Graça de 2895.

 


By Maria Luísa Baião, escrito a 6 de Setembro de ‎2012, inédito, é mais que provável portanto nunca ter sido publicado.