Se
não foi uma catrefa de anos andou lá perto. Neste momento de dor e introspecção
enquanto o corpo lhe desce à terra dou por mim olhando em redor as gentes que o
acompanham acreditando conhecê-lo, digo tê-lo conhecido melhor que a família,
melhor que quaisquer amigos que teve, e teve bastantes …
Foram
muitos anos, muitos meses, muitos dias, muitas horas lado a lado, partilhando
trabalho e conversas, sonhos e promessas, razões, esperanças e, por que não
dizê-lo, também desilusões. Eram mais de oito horas por dia se tivermos em
conta que, muito antes de Abril e muito antes dos nossos vinte partilhámos diariamente
e juntos centenas de almoços em quaisquer dos muitos e bons restaurantes desta
cidade.
Nessa
altura podia-se e sobrava dinheiro ao fim do mês. Partilhávamos tarefas numa
multinacional derivada da Exide inglesa e os salários nivelados com os da
capital, condiziam com a dimensão desse empório comercial com agências e
fábricas por todo o mundo. Por esses anos, ainda que não fossemos propriamente
qualificados, a empresa era-o, o país era-o, a economia era-o, sendo o escudo
uma das moedas mais fortes e mais seguras do mundo. Fora da empresa poucos
amigos partilhávamos, ele frequentava tertúlias intelectuais em grupelhos de
esquerda, eu pontificava em tudo que estivesse ligado às motas e nelas percorri
o Alentejo primeiro e, anos depois muito mundo europeu.
O
serviço militar, que cumpri com galhardia, separar-nos-ia, porém o bambúrrio de
Abril se encarregou de nos voltar a juntar. Ambos contribuímos para evitar que
a África austral se tivesse transformado num novo Vietnam. Eu soube-o sempre,
ele e uma maioria, nunca acreditaram no que quanto a esse aspecto da questão
lhe dizia e, como milhares de outros nunca soube o que por lá esteve fazendo ou
por que tal desiderato lhes aconteceu. Lembro com saudade um dia em que puxei
dos galões e trouxe a Évora vários autocarros azulinho escuro cheios de
marinheiros, quais gaivota em terra e que haviam de infestar a Praça do Geraldo
e o Arcada. Parceiro em Évora nesse dia ? Ele ! Quem mais poderia ter sido ?
Não
foi com ele que partilhei, partilhámos durante o PREC com Francisco Louçã numa
casa cedida à UDP e pegada à taberna do Pinto, a feitura de cartazes gigantes ?
Eram lençóis pintados à mão e gritando palavras de ordem de que a revolução se
alimentava e aos quais nos dedicávamos com fervor e fé. Foram tempos em que
cada dia trazia uma surpresa, ou era o agrário/latifundiário Mendonça que
encomendara um Mercedes último modelo na Lagril e se recusava a recebê-lo por a
matrícula ser PC qualquer coisa, ou era o Orvalho da Rainha do Sul a exigir
recibos manuscritos e mal paridos em papel pardo p’ra dar contas aos camaradas,
ou o Mário Leitão, um reaça de primeira entoando o vozeirão e em quem vi as
primeiras atitudes democráticas e disposição para lutar por elas e pela
legalidade nesse tempo caótico em que os fins justificavam os meios e todos
atropelavam todos, menos o amigo Leitão, qual penedo ou sentinela vigilante
denunciando arbitrariedades e fazendo-lhes frente pois não suportava atropelo
atrás de atropelo numa democracia que de tal só tinha o nome e que eram o pão
nosso de cada dia …
Voltando
ao Mendonça, que como muitos era considerado reaccionário, agrário,
latifundiário, num tempo em que não se podia ser lavrador inquiro-me hoje, hoje
que tudo pertence aos espanhóis, que a agricultura virou intensiva/extensiva em
campos a perder de vista e não emprega ninguém, que têm inclusivamente improvisadas
pistas de aterragem de onde partem e onde chegam sem dar cavaco a ninguém em
pequenas avionetas, já não são reaccionários, nem agrários, nem latifundiários
? Não ! Agora são investidores, agricultores, nossos donos e os donos disto
tudo e quem leva daqui os lucros da terra deixando-nos as taças e os títulos dos
jornais; Alentejo um dos maiores produtores de azeite do mundo ! Esquecendo que
a terra, os olivais, o azeite, os alentejanos e os lucros tudo isso é dos
espanhóis ! Digam-me lá se não somos um povinho ceguinho e ignorante como nunca
tínhamos sido !?
Era
assim, e nós olhando e pasmando com o à vontade e simplicidade com que se
levantavam estandartes que às escondidas eram pisados e repisados para fazer
valer quaisquer doutrinas para as quais nitidamente não estávamos preparados. Eça
tivera de novo mais que razão, ainda tem, a democracia ficava-nos e fica-nos
curta nas mangas, hoje nem a conseguimos envergar tão encolhida torcida,
retorcida, tão pisada quão repisada ela está.
Foram
muitos os anos que partilhámos naquela multinacional capitalista onde além de
um bom vencimento dispúnhamos de condições de trabalho invejáveis e sobretudo
de um ambiente laboral inigualável, todavia era tanta greve e tantas as tempestades
que o país ia vivendo e atravessando que o maná acabou-se, a empresa não fechou
como milhares de outras mas encolheu, tendo ficado reduzida a vinte por cento
do que era… Metemos ao bolso chorudas indemnizações, as leis do trabalho vinham
ainda do tempo de Salazar e, com, umas décadas de casa, como ambos tínhamos,
saímos no mesmo dia, cada um de nós com uma pequena fortuna no bolso. Não sei
se no bolso, pela época ainda não havia a moda das transferências bancárias,
nem multibanco, acho que nos pagaram em cheque.
Eu
acabara o curso por essa altura, um curso que em parte agradeço a esse meu
amigo que “tapava” as minhas ausências quando ia às aulas. Eu ia á noite e aos
fds dar um jeitinho no trabalho que por esse motivo deixara atrasado mas, no Font
office foi ele quem durante cinco anos sempre me tapou e me salvou. Tenho noção
de que me prestou um inigualável favor. Tive oportunidade de, por diversas
vezes lho lembrar e lhe agradecer.
Foram
tempos felizes num ambiente de trabalho memorável sem as preocupações que hoje
assaltam todos os jovens e menos jovens, a precariedade, a injustiça nas
classificações de categorias profissionais, a incapacidade de se construir uma
carreira, nada disso, nessa época as leis de trabalho eram poucas mas claras,
fiáveis, defendiam efectivamente quem trabalhava não havendo patrão que não
temesse a IGT, Inspecção Geral do Trabalho. É caso para dizer que democracia e
direitos laborais eram coisas daquele tempo, agora qualquer trabalhador é um
escravo sem valor, sem dormir, sem dinheiro que chegue até ao fim do mês, nem
para viver mínima e dignamente qualquer dia chegará se é que para muita gente esse dia não chegou já…
Foram
anos em que a vida fluía e se vivia, tão bem ou melhor que agora e com muito
menos preocupações, menos sobressaltos e menos impostos para pagar. Esta
democracia está a matar-nos, já não somos ninguém, já nada é nosso, a não ser
essa enorme divida claro … Dizia eu que a vida fluía, e no entretanto,
apaixonado casei-me, encontrei o amor da minha vida, já esse meu amigo não
poderia dizer o mesmo ainda que tivesse igualmente casado poucos anos depois. A
intimidade da nossa amizade permitia-nos conhecer as forças e fraquezas de cada
um. Por vezes penso, e acredito piamente que o conhecia melhor que a família.
Foram muitos anos, muitas horas, muitas conversas, muitos assuntos, muitas confidências,
muitos almoços, muita confiança mútua, muita amizade.
Fomos
felizes enquanto colegas e amigos desde aqueles tempos tumultuosos em que vivi
uma paixão assolapada e conheci o amor da minha vida, casara-me, ele casou-se
penso que sem paixão nem amor e, a julgar pelas suas atitudes e comportamentos
tê-lo-ia feito por necessidade e tradição social. Em momento algum senti que
houvesse amor na sua vida, e bem precisava, aliás, quem não precisa ? Ter
sentido ter ele vivido um casamento sem amor terá sido para mim o facto
relevante da vida desse meu amigo e colega que mais me marcou, quanto a ele não
sei, sei apenas ter deixado de ir dormir a casa da avó ou da tia, ali á rua da Azaruja e
ter passado a fazê-lo algures, nunca soube bem onde, só muito tardiamente tive
de tal conhecimento.
Após
a saída dessa multinacional capitalista onde fomos tão felizes a vida nunca
mais lhe sorriu, o país afogava-se numa crise de que ainda não saiu, a
instabilidade, a precariedade no emprego davam descaradamente os primeiros
passos sorvendo-o para uma dança macabra da qual nunca mais logrou sair, facto
do qual culpava amigos de longa data, bem na vida, com tachos ou lugares
cativos em municípios, ministérios, direcções gerais e regionais, delegações, a
quem culpava de só o verem e convidarem para comícios, manifestações e arruadas
ignorando infantilmente a situação dele, as aflições dele, a ansiedade dele, a
insegurança, o constrangimento familiar etc etc etc …
Rápida
e facilmente tracei um paralelo entre a sua situação e o pensamento dela
resultante e o meu próprio pai, engajado desde longa data mas desiludido nos
últimos anos de vida, senão mesmo até falecer com as promessas de Abril, com os
amanhãs em que nunca ouviu cantar, com a democracia por cumprir. Tenho a
certeza absoluta, o meu querido amigo e colega não morreu esquerdista, morreu
traído, arrependido, desiludido. Já quanto ao meu pai apostaria igualmente, que
também mas, ao contrário desse meu querido amigo, essa foi confissão que nunca
me fez, contudo levou-me a deduzir e concluir ter morrido revoltado com as
mentiras de Abril, com os políticos que Abril pariu, com a corrupção
generalizada, o atraso endémico, o seguidismo cego, a partidarite saloia, o
amiguismo sem pudor.
Morreu
sem conhecer o amor esse meu amigo, nem o amor nem a solidariedade, nem a
coesão popular que tanta influência tiveram na sua vida. É este o meu
diagnóstico e opinião formal e final. Só quem não privou com ele, quem não conheceu
o calvário que atravessou por o mano mais velho, o mano economista, o mano com
quem entre 75 e 7 ou 79 passara os sábados trabalhando as escritas das
cooperativas da zona de Arraiolos e que, como as demais, faliriam todas poucos
anos mais tarde.
Foi
principalmente esse mano quem lhe dissipou a fortuna que recebera quando, no mesmíssimo
dia em que abandonáramos os lugares na tal multinacional capitalista a troco de
chorudos cheques. Estávamos no inicio dos anos noventa, os telemóveis apareciam
e seduziam, o mano mais velho, conhecedor e com olho para o negócio juntou os
outros dois irmãos, o do meio e o mais novo, o meu amigo, juntaram capitais e
esforços tendo iniciado um investimento e aberto uma loja de telélés,
acreditando em quem lhes terá dito ser Évora uma terra de futuro. Claro engano
que deitaria por terra o sonho dos manos e esturraria a massa empatada na
coisa. Sem maçaroca, aliás com as mãos cheias de maçaroca queimada, sem emprego
certo, regular, estável, sólido, sobrevivendo na crista da onda da precariedade
esse meu amigo ouviria das boas em casa… Sem culpa, sem culpa, porque o mano
tinha razão, o negócio era de futuro, somente se enganou na cidade e zona em
que lançou as redes, ou âncora, uma cidade sem vida, um Alentejo sem mercado, tivesse-o
feito em Lisboa ou em Setúbal e os três manos estariam hoje ricos.
Em
Évora só o atraso subsiste e vinga, o atraso e o passado, é uma terra sem
presente e sem futuro. A história dos telemóveis foi várias vezes aflorada
entre nós, sei que o meu amigo acabou por compreender as limitações que conduziram
à falência da ideia e ao esturro de muita massa, sei também que acabou
perdoando o mano, os manos, tão crentes e inocentes na coisa quanto ele. O pior
terá sido o que passou em casa, o pior terá sido falta de compreensão e
solidariedade de familiares e amigos, o pior terá sido o engano em que Abril se
transformou, o pior terão sido as tais promessas que passados cinquenta anos
continuam por cumprir e um povo ignorante como nunca fora e que ainda festeja com
esperança o descalabro em que caiu acreditando sem razão para isso e esquecendo
que cinquenta anos não são cinquenta meses, são uma vida, esquecendo que em
cinquenta anos a China de Mao, atrasada, se guindou aos píncaros depois de
ouvir Nixon e Kissinger em 1972, enquanto esta nação velha de quase 9 séculos
nos mesmíssimos cinquenta anos se atolou num buraco do qual nunca mais ou mui
tarde e dificilmente sairá.
Razões
tiveram o meu amigo e o meu pai para partir, ou partirem desiludidos, eu idem,
assim partirei, e vós ?
Ainda
acreditais que este torrãozinho tem futuro ?
Deixai-me
rir …..
Ou
fugir para a ilha !!!!