171 - O SABOR DA MAÇÃ*
Homenagem a Luísa Baião
Conta-se que Sir Isaac Newton deverá
a sua fama e as suas iluminadas teorias a um tio, de nome William Ayscough, que,
impossibilitado de ter descendência, por causa de um rebentamento derivado da
guerra civil que por aqueles anos assolava o país, se recolheu a Woolsthorpe Manor,
onde Isaac nasceu, entretendo-se a arrastar a asa à viúva e mãe do petiz, petiz que
estragou com mimos.
Toda a sua família vivia há
muitas gerações na pequena aldeia de Colsterworth, onde esse tio era amante da
observação de estrelas, não esqueçamos que a polémica obra de Copérnico “ De
Revolutionibus Orbium Celestium", tinha sido publicada em 1543, tendo sido
bastante desenvolvida pelas obras posteriores de outros astrónomos como Kepler
e Galileu, o que justificava a então moderna atracção e observação da abóbada
celeste e dos seus astros. O desenvolvimento do telescópio, que Galileu muito
aperfeiçoara, permitiu tal desiderato.
Para além das estrelas esse tio
era apaixonado pela magia, mais propriamente por malabarismos, sendo exímio prestidigitador,
pelo que terá inoculado o bichinho da maçã no petiz seria ele ainda muito novo,
presumivelmente numa das noites limpas em que caminharia com ele às cavalitas
por entre os pomares de macieiras que atapetavam o Lincolnshire, iluminados
pelas galáxias de estrelas que sobre eles derramavam a luz e às quais o tio
William estenderia uma mão para, num passe de magia, fazer surgir entre os dedos uma
suculenta maçã que Newton se apressaria a esfregar nos calções e a trincar com
afinco e denodado prazer.
Esta é a verdadeira génese da
historieta que o dá como pensador ou dorminhoco debaixo de uma macieira da qual
se terá desprendido, e caído para baixo, e não para cima, a maçã que lhe terá
inspirado, segundo se diz, a celebérrima teoria ou lei da gravitação e da
atracção universais, vulgo lei da gravidade.
Ter-lhe caído uma maçã no toutiço
não passa de anedota, o deslumbramento de Newton surgiu do desafio do mistério, dos céus estrelados e da magia do tio William, o resto são tretas para esconder
que foi um aluno aplicado e que se não conformou à sapiência dos mestres escolásticos
que com resignação aturou e sofreu.
Os tempos que correm “heroicisam”
o sucesso fácil sem sacrifício e sem dor, o que consubstancia uma mentira maior
que a lenda da maçã que todos tanto admiram.
Esta nova versão, nova história
de Isaac Newton, foi-me contada há séculos por quem em simultãneo me disse adorar o
que eu dizia, tanto quanto detestava o que escrevia visto eu ser, a escrever,
um desastre que a tirava do sério.
Verdade que a minha conversa a
virava do avesso, o meu romantismo enlouquecia-a, tanto quanto a exasperava e
desesperava a desconexa desarticulação de tudo quanto eu escrevia.
Eram outros tempos, não havia hotmail, nem msn, nem skype ou facebook, eu dava-lhe a volta aos fins de semana
com os passeios e os meus ditos românticos, para depois estragar tudo com uma
ou duas cartas que durante a semana lhe enviava da escola de fuzileiros onde a
minha vaidade e desejo de ser “Rambo” me levaram. (1)
Aquelas criticas tocaram-me
fundo. Tocaram-me o amor-próprio.
Abracei-a para esconder cara e a vergonha e, disfarçando, logo ali jurei ensiná-la a amar, ela ripostou jurando que havia de ensinar-me a escrever por mais burrinho que eu fosse.
Ambos cumprimos os votos.
Amo-a apaixonadamente desde então
e nem uma única vez pensei que pudesse ser de outra forma, ela conseguiu pôr-me
a escrever decentemente, e hoje parece-me ser a única coisa que sei e faço bem
feita pois ocupei metade da minha vida ouvindo-a e lendo, seguindo-lhe os
conselhos, aprendendo a distinguir, a ajuizar, a identificar e catalogar
géneros e tendências, correntes e estilos, estruturas e esquemas literários,
pelo que muito penei, sofri, não tenho um dom, não fui abençoado nem nasci
assim, pré dotado, predeterminado, há aqui muito trabalho que se não vê, esta
coisa não caiu do céu como a maçã de Newton, ora agora já perceberam o meu
intróito ?
Eu fora um estoura-vergas quando
jovem, com ela assentei e mudei, de meus pais havia de ouvir, anos mais tarde
que
- A Luisinha fez do meu Berto um
homem
A homenagem a quem a mereça, seja
para as letras seja para o amor seja para a vida, muito devo a esta
insubstituível companheira que Deus colocou no meu caminho. Às vezes nem sei que de mim seria
sem ela, sem o seu bom senso, a sua entrega esforçada aos objectivos que traça, ao seu exemplo.
Persegue apesar do ar dos tempos
os mesmos princípios éticos que nela me cativaram, cultiva uma supina
seriedade, um baluarte a que me encosto amiúde, comedida, tão comedida quão
impetuosa na defesa dos seus valores e ideais, e continua bonitinha tal qual
como a achei desde a primeira hora. Sou um sortudo. Fui sou e
continuo sendo um sortudo, se querem invejar-me invejem-me a companhia, a
companheira, a mulher a quem tudo devo e tudo sou. Há muito devia ter tornado
público este desabafo, este reconhecimento, não o fiz mais cedo por lhe
reconhecer a modéstia, não quero contudo perder a oportunidade de o fazer
enquanto é tempo.
Devo-lhe isso.
Claro que tive igualmente
professores a quem estou reconhecido, a par de outros a quem nem tanto, ou mesmo
nada, a vida é assim, eles sabem, aqueles a quem devo obrigados sabem-no, os
outros já me esqueceram, como eu a eles. **
Mais que a bem escrever foi ela
quem me ensinou a cortar, metade ou mais do que escrevemos é palha, dizia-me
com os olhos vivos que eram os dela sempre que me olhava, contar e cortar eram
para ela o alfa e o ómega que eu teria que alcançar. Pouco ou nada se poderá hoje adiantar sobre Marilyn Monroe sussurrava-me, mas são incontáveis as histórias que
podemos imaginar o seu porteiro teria para nos contar não achas amor ?
Por vezes temia esse “amor” que
sussurrado me soletrava, esse amor encerrava sempre um desafio, contar uma
história não é para qualquer um ciciava-me, se nada tiveres para contar ou não
o souberes fazer fica calado.
Confesso ter chegado a temê-la.
Claro que este temer se inscreve,
e circunscreve, na arte da hipérbole pois também ela foi minha mestra nesse misterioso
desenhar, e quem, estendida numa toalha nívea, riscando na areia com o
indicador entrelaçados corações, me instava a completa-los atravessando-os com
uma flecha dourada e a Cupido sonegada.
Essas tardes com ela eram música
celestial, ainda são, se bem que as alvas manhãs e as cabalísticas noites as
tenham minimizado. E, lendo numa quietação o que eu escrevia, instruía-me na melodia da composição, na riqueza e diversidade do vocabulário da nossa
língua, nas rasteiras do excesso de conjunções, na ilimitada potencialidade do
entrosamento realidade / ficção, na desmesurada responsabilidade da opinião, e aliciava-me
no embriagante desafio de opinar precipitando em mim o subtil maravilhamento
que é dar vida às coisas, criar, qual malabarista, ou prestidigitador,
substância a partir do nada, de meras palavras, e, com um sorriso, disse-me um
dia
- A vida é um palco, sê tu
Fui, sou
* Na imagem, livro "Catarina ou o Sabor da Maçã", de António
Alçada Baptista, quase 90 páginas de nada, espremidas não dão nada, não
consegui ir além da 20ª… é a prova provada que não basta escrever ou saber
escrever, é preciso saber contar, dar substancia, dar vida às palavras, enfim,
13 euros de completa vacuidade … este desabafo, este texto, foi escrito no
momento em que, desolado, joguei ao lixo o livro do meu amigo António Alçada
Baptista …
(1) Na altura seria outro qualquer super herói que já nem
lembro, mas a imagem que preenchia o imaginário da juventude de então e que
pretendo dar-vos é essa mesma, a de um irreverente justiceiro aventureiro como “Rambo ou
Indiana Jones”.