sábado, 20 de julho de 2019

608 - PERNAS, PARA QUE VOS QUERO EU ? .........



Dia sim dia não fecha uma loja, mas a velha baiuca do Dimas das gravatas fechou há bué de anos, quando ele próprio ficou um trapo e as gravatas passaram de moda. A última julgo tê-la vendido ao meu amigo Esteves, então um exemplar único de fadista, marialva, machista e um racista empedernido desde que regressara de Angola. Imagino o que diriam dele se fosse vivo, e assim se escapou ao julgamento dos tempos modernos.

Era verde a gravata, de um verde lindo, vivo e colorido, ainda me lembro, tal como lembro as palavras do velho Dimas repetidas por ele, ele Esteves;

- Esta gravata, esta seda tem tamanha qualidade que poderia servir de baraço a qualquer um e aguentá-lo pendurado duma azinheira semanas sem fim, e olhe que lhe fica bem este verde lindíssimo amigo Esteves, assenta-lhe mesmo a matar.

“Assentava-lhe a matar” rematara o velho Dimas, ainda assim convenhamos que para gravata tão álacre e de tamanha qualidade o discurso elogioso foi mórbido, isto para além de soar a graxa, quando não a servilismo, coisa caída em desuso poucos anos atrás quando do 25 de Abril e infelizmente regressando ao cimo das ondas nestes nossos confusos dias. Julgo ter deixado bem explicada a razão pela qual o Dimas nunca conseguiu empatia com as novas liberais e libertinas gerações, eram outros tempos, novos tempos aos quais o Dimas foi incapaz de se adaptar e a loja sucumbiu.

Belos tempos esses, em que a Vitorinha do Esteves como ele carinhosamente chamava à sua papoila, sim, também lhe chamava Papoilinha, lembrando Charneca Em Flor da Florbela Espanca, tempos em que a Vitorinha dizia eu, tinha um palminho de cara, era presença alegre, sempre viçosa, bem quista e atraente. Em boa verdade a Papoilinha do Esteves, uma papoila entre a gente, entre nós, seus amigos e colegas, seria decerto uma flor no deserto que por essa época o notariado era, serviço e repartição onde assentou que nem uma jarra florida mal acabou o liceu.

Plantada estava, estavam, nos Registos e Notariado ela, nas finanças, hoje Autoridade Tributária ele, repartição onde mal chegou a esboçar carreira, isto é, não encarreirou, para falar verdade descarrilou. Inda casados de fresco e já ele a trancava em casa vítima dos seus arrotos de machista, aquilo era casa trabalho, trabalho casa, e a cada ano a Papoilinha murchava e perdia pétalas, estames e corola, enfim, secava, murchava, empalidecia como se tivesse sido emparedada.

Quis o destino conceder de novo protagonismo à linda gravata verde de seda com que o Esteves casara, estreara no casamento entendam-me, e, no dia em que entrou como fiscal no lagar da Sofal, credenciado e engravatado, levou-o a curiosidade a ver in loco como era espremida a azeitona, talvez c’o fito de aprender ele, novel fiscal tributário a espremer os desgraçados dos contribuintes.

Olhou, remirou, baixou-se e viu de novo com redobrada atenção como a prensa espremia a azeitona esmagando-a até ela dizer tudo o que havia a dizer e largar o oiro que adoramos num fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira. Debruçando-se sobre ela ia perguntar qualquer coisa;

- Para que serve esta roda tão grande sempre girando, girando sem parar ?

Quando um dos raios da dita roda num ápice, digo repentinamente o apanhou pela bela e linda gravata verde pendendo-lhe do pescoço e num gesto mecânico, ou maquinal foi o Esteves puxado com brusquidão de encontro à roda nem tendo tempo de acabar de formular a questão que acabara de colocar e que tanto parecia atormentá-lo, por que rodava aquela roda tão grande sempre girando, girando sem parar.

A verdade é que aquela roda enorme e girando, girando sem parar o ia puxando como uma apaixonada puxa aperta e estreita num abraço o seu amor, e o Esteves a cada segundo mudando de cor, rosa, pálido, vermelho, roxo, azul, e mais cores não mostraram aquela cara e aquelas bochechas porque quando finalmente lograram parar a máquina já o Esteves estava morto e bem morto, com o pescoço partido.

Razão teve o Dimas, a linda e bela gravata verde em pura seda que lhe vendera mostrara-se forte que nem corda de sisal e, se não aguentou um pendurado de uma qualquer árvore de Natal, sim era Natal, aguentou bem todos os esforços do Esteves para se livrar dela, do Esteves e do resto do pessoal que na vã tentativa de evitarem o pior rasgando a gravata, só conseguiram enrolá-la ainda mais partindo-lhe o pescoço e deixando o desditoso fiscal encravando o mecanismo, entretanto desligado e, diria eu, desligado quando eram já sopas depois de almoço.

E por falar em sopas, ou em sopas depois de almoço como se diz na minha terra, na Páscoa seguinte e após o abalo sísmico sentido na sua condicionada vida marital a Vitorinha voltou a florir e a sorrir, libertou-se das grilhetas servindo num churrasco primorosamente construído pelo Esteves e encostado ao anexo do quintal, um petisco de comer e chorar por mais pois de chorar se tinha ela cansado há muito, petisco onde não faltou um fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira nem um pratinho raso desse oiro puro afim de molharmos a sopa nele, digo a sopa de pão com a qual acompanhámos o paio, o queijo, o presunto, a linguiça assada, havendo até quem se deliciasse e contentasse meramente com a sopa demolhada e uma caneca ou copo por onde escorresse a aprazível cerveja refrescada e refrescante que nos punha a cantar o cante.


Não sei se alguém se lembrou do Esteves, eu recordei-o mas calei-me afim ou a fim de não estragar o convívio a ninguém. Festa é festa e à noitinha, já alegre e tocadita a Papoilinha, sentindo-se viver, e reviver, sentindo-se de novo mulher e livre, animada pelas estrelas perfulgentes, passando a mão por coxas e pernas, olhando-me com o olhar que os bons amigos guardam para os melhores de entre eles, diria para mim:

- Estas minhas pernas ainda têm pele de pêssego como dantes, não têm Baiãozinho ? 

           

terça-feira, 11 de junho de 2019

607 - MESAS, OUTRAS MESAS, OUTROS CAFÉS.


Sim, é tal e qual como dissera porque pensara que, depois de, depois de tu, tu sabes, pensei que depois de partires eu me sentiria mais livre, mais liberto, menos constrangido, por isso pensei que abandonaria logo de seguida o hábito das manhãs neste café, todos os dias, diariamente, como se esta mesa um lugar cativo e cativo eu do teu problema, da tua situação, da tua dor.

Julgava eu que me libertarias, ou que me libertaria eu de ti, que gradualmente poderia começar a ocupar outros lugares, outras mesas, outros cafés, outras presenças, outras pessoas, outras amigas e amigos, por que não ? Pensava eu, pensei eu que seria o melhor, e depois de, tu sabes, acabei por acatar e meter em prática essa minha tão meditada sugestão. Há mar há mar e há ir e voltar, há morrer e viver.

Foi sol de pouca dura. Coisa pouca, mas eu não sabia, há coisas que só vividas, experimentadas, sofridas, por isso aqui estou de novo à mesma hora, na mesma mesa, no mesmo café, as mesmas pessoas ora entrando ora saindo e eu olhando-as, eu que agora já sei, já sei que não, não, nada foi como eu pensara e, não só nada adivinhara como me enganara redondamente quanto ao que pensara, quanto à solução que alinhavara e experimentara.

Tu sim, tu libertaste-te da irrelevância e do sofrimento que o destino de destinara, eu não, não consegui, não fui capaz e, coisa extraordinária, é onde melhor me sinto e onde menos sinto dentro de mim e à minha volta este vazio que me acompanha sempre, vá onde vá, por onde vá, com quem quer que vá.

Algo me falta, algo se obstina em ocupar este vazio que me preenche e esse vazio és tu, a tua falta. A tua ausência. Não foram os cafés nem as mesas que mudaram, fui eu quem mudou. Pois se vejo tudo mudado, e se tudo está mudado, tal se deve à disposição com que agora tudo olho, com que olho este mundo onde já não pontificas e por isso tão repentinamente mudado, como um lago propositadamente secado ou a mim alguém tivesse vazado um olho, cegado.

 Falta na ruas e nos lugares que volto a percorrer o eco das tuas gargalhadas, a luz do teu sorriso, a melodia da felicidade que irradiavas e com a qual me contaminavas, a mim e a todos com quem te cruzavas. Por isso voltei ao mesmo café de onde pensara libertar-me e onde menos sinto este vazio de cada dia e, pasme-se, onde mais perto de ti me sinto pois este lugar ao menos diz-me alguma coisa, nele inda ouço a tua fúria de viver, o teu grito, a tua lembrança, a tua esperança, enquanto o resto do mundo se me tornou repentinamente indiferente, dizendo-me cada vez menos. Para ser franco confesso, depois de ti este mundo não me diz absolutamente nada, não me diz já mesmo nada.

Algumas vezes, por vezes, durou certo tempo a coisa, deambulei pelas calçadas que pisáramos, por percursos que percorrêramos tantas vezes durante tanto tempo que esqueci já quão foram eles por nós calcorreados, até que, não cansado mas desperto, me senti intimamente martirizado, sofrido. Por isso voltei aqui, voltei a ti, a mim e a este café onde me sinto inda a ti preso, a esta mesa onde pouso ainda o telemóvel e o miro de vez em quando não vá nele cair apelo teu, ou um aflito pedido de socorro, uma qualquer mensagem que não desejo ver passar despercebida no elo dessa corrente quebrada, qual cordão umbilical que por tanto tempo me prendeu à tua vida.

Perdera-me, voltei aqui como se necessitado d’uma âncora onde me agarrar e firmar para depois, com bonança e mar calmo, mar chão, me aventurar de novo a recuperar a identidade perdida, decidido a encontrar novo rumo, apostado em traçar um azimute que novamente me ligue à vida agora que a vi perdida, me vi perdido e necessitado de novo compromisso para me encontrar.

Contigo aprendi o significado de perseverança e tenacidade, náufrago de mim mesmo percebi agora a tua teimosia, tu sabias quão nesses substantivos eu seria forçado a apoiar-me para sobreviver, tu sabias do mar revolto que eu enfrentaria, tu não te limitaste a deixar arrumadas gavetas e assuntos, tu aplanaste o caminho que eu tomaria, aplacaste os demónios que me assaltariam e, conhecendo quanta dureza preenchia o caminho que percorrias sobrou-te contudo gentileza p’ra pensares no trilho que me caberia pisar.

Há muitos muitos anos eras tu pouco mais que uma criança dei-te a mão, desinteressadamente mostrei-te o mundo, este mundo do qual tão cedo te foste, este mundo que agora me ajudas a pisar, a percorrer.

             Obrigado meu amor, meu amor de sempre, meu eterno amor. 


sábado, 25 de maio de 2019

606 - SÓ MESMO ELES, SOMENTE OS OLHOS …


Olhos vermelhos, carregados, inchados, e só o cansaço te foi visível ? E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Ou traídos ? De frustrações assumidas ? O cansaço de tantos fardos carregados não lograste alcançar ? E os meus olhos ? Mais é o que escondem que aquilo que mostram não é ? Mas tu não sabes e por eles tentas descortinar-me a idade ? Olhando-os ? Medindo o grau e a cor que carregam como quem numa feira esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula à venda por qualquer cigano ?

E eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que aprendi a não tomar a sério mas para o qual me faço parecer ou não me perdoariam a ousadia. Sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prendem ?

Sim prendem as vidas vulgares, fúteis, cheias de nada, impantes de vazio !

Eu sorrio para mim mesmo apesar das desilusões. Também as tenho, mas sempre saboreando a vida ainda que esta tenha duas faces como qualquer moeda, sabendo que sem uma a outra nada vale, é falsa, por isso sei dar valor a cada momento, a cada minuto, como se único, e fruí-lo porque será pago, ser-me-á cobrado como tudo na vida, o reverso, a outra face, e só quem está para se dar receberá, apesar dos custos, da cobrança na hora do acerto. Por isso este coração enorme, devastado, devassado, ferido, cicatrizado, contudo cada vez maior, cada vez mais dado, oferecido, e quanto mais oferecido e dado mais se agiganta, feliz, contente, jamais saciado mas permanentemente em paz, em dádiva, em oferenda.

E é pelos olhos que me perscrutas ?

Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me o coração, vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada. Não presa, não estupefacta por bater ainda certo, ritmado, mas surpreendida com a sua grandeza, generosidade, porque apesar dos remendos, o seu acolhimento e magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, à tua observação.

E crê-me, fora as marcas que observaste não recordo já os maus momentos, nem jamais esquecerei os bons por um segundo que seja. E vivo sem tormentos, uma vida plena, feliz, cheia, preenchida, uma vida !

Eu tenho uma vida sabes ?

E adoro-a, e adoro-me, e uma desmesurada confiança, este amor-próprio, esta auto-estima, e o ego inflado quanto baste, e nem um bar a mais, e nem um grama a mais, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, porém nem invejo, nem procuro.

Espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma vida sabes ? Vivo ! E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu ! Verdade que sempre cicatrizando feridas, verdade que sempre sorrindo à vida, e os olhos ? Ah ! Os olhos ! São tudo para ti os olhos ? Mas nada mais para mim que não espelho opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a agitação, não consigo viver sem ela ! Sabias ?

E nada viste ? Ao menos a cor ? A pupila dilatada ? Retraída ? E nada mais viste ? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas do mundo fecharem-se quando as olhas ! Mas viste o cansaço ? Notaste o cansaço ? Bastou-te ?

E então ? São para mim estes ovos ? Ficas contente c'a oferenda ? Feliz ? Basta-te este gesto ? E que conclusões esperas ? Posso sabê-las ? E os ovos ? Obrigado, mas já agora, são crus ou cozidos ? Não tem nada a ver uma coisa com a outra ? Mas tem tudo a ver.

Parecendo aparentemente uma questão despicienda não o é, e é mesmo muito importante saber essa diferença se cozidos se crus. Se crus remeterá para os primórdios da história, diria mesmo que nos remete para antes da pré-história e para o bom senso que permitiu ao homem aguentar-se contra todas as adversidades, sobreviver. A oferta de alimento, óbvia e naturalmente cru representará uma dádiva da natureza expressando a preocupação com a terra, a Pangeia, o ambiente, mas sobretudo com a sobrevivência e continuidade do clã, um por todos todos por um, primeiro sobreviver.

Se esta oferta é de ovos cozidos a história é outra, a história e o tempo, já nos remetem para o pós aparecimento do fogo que como toda a gente sabe permitiu assar ou grelhar digamos que cozinhar os alimentos, livrá-los de bactérias, torná-los mais digeríveis, mais calorias, portanto mais alimento e melhor aproveitado pelo estômago tendo levado ao crescimento do cérebro e à evolução deste, a um pensamento mais estruturado. Se cozidos eu diria que não é já e somente uma questão de boa vizinhança ou de amizade entre nós, antes uma preocupação muito para além do sobreviver estando em causa coisa mais profunda que isso, consideração, é como dizer se te candidatares votarei em ti, ou se pensares liderar a tribo estarei do teu lado. A propósito, em Olhão ou em Paço de Arcos há tótemes ? Pelourinhos não valem, são resquícios d'outro tempo d'outra mentalidade d'outra história.


Ao comê-los saberei quanto fiquei perto ou longe da verdade, saberei quão afastada estás de mim e da roda da vida…

Ah ! E que dizes da sobriedade ? Do tino ? Do tino e do tinto ! E já agora deste juízo ? E de tantas merdas, juízos de valor e preconceitos com que durante anos te encheram a cabeça ! E mantenho a minha, aposto nada viste nos meus olhos pois não ?

Ah! Ah ! Ah ! Isso ? Há quantos anos alijei eu essa carga !

             Crê em mim, só então o sol ! A luz !  A claridade ! A plenitude !

             A vida ! 

Encaminhei-me, dei-me, não estou p'ra arrendar, entreguei-me !




terça-feira, 21 de maio de 2019

605 - ELISABETE BARRADAS – EXPOSIÇÃO "TRAÇOS" – UMA CRITICA JUSTA E MERECIDA


 Encontrámo-nos ombro a ombro e casualmente ao balcão da pastelaria Violeta, eu dando um rombo na dieta e alambazando-me com uma trouxa-de-ovos e ela enfardando um farta brutos.

- Tu aqui ?

- Tu por aqui ?

Estou para uma visita à galeria Casas de Sant’Ana e São Joaquim, quero ver a exposição “TRAÇOS” de Elisabete Barradas de quem já vi em tempos umas coisas, parece valer a pena e para tal aqui estou...

- E eu ! Então vamos os dois, pagas as bicas que és tu o cavalheiro e eu uma senhora.

Assim foi, e lá fomos os dois cantando e rindo ver a exposição da Elisabete Barradas, a dois passos dali, exposição dela e de outros.

- Já vi umas coisitas dela repeti, fizeram-me lembrar o louco do mestre José Cachatra * os temas e as cores eram muito aproximadas, mais que tudo foi esse aspecto que me convenceu a visitar a exposição, e a ti ? Que te move ?

- Ela tem trabalhos muito diferentes desses que referiste, a mim é mais a curiosidade acerca dos novos trabalhos dela que me atrai, isso e o trabalho dos seus alunos que também estarão ali expostos.

- Muito bem nina, olha é já aqui, mete lá o dedo nessa coisa e faz força que eu impo !

Entrámos na galeria, nada mais nada menos que a casa senhorial do meu amigo Cordovil e que nos recebeu com a peculiar hospitalidade característica desta nobre e antiquíssima família eborense.

Depois foi deambularmos por ali, vendo e admirando o “palacete” e simultaneamente a exposição. Um palacete amplo e belo, uma panóplia e infinidade de divisões, escadas, corredores, arrecadações, terraços, um quintal no interior, enfim, praticamente o paraíso no centro da cidade. Até um gongo tocámos e quase dançámos na cozinha, tal a sua dimensão.

Para outra dimensão nos remeteram os trabalhos de Elisabete Barradas, remeteram ou pretendiam remeter, quase todos eles, e se não todos uma grande percentagem, apontando aos céus, encaminhando-nos para as alturas, para a transcendência, a lua, o universo, o astro, o infinito, o nirvana, onde nem um escadote faltava.

- Que estranho Sandra, já reparaste no grosso das obras dela ? Há aqui uma tendência muito acentuada para o alto, ora vê !

E ela viu, reviu e confirmou a minha impressão, à primeira vista surgia-me como uma ocorrência inverosímil, repetitiva, mas lá estava. Diria que como a expressão involuntária de uma tara ** ou mais que uma tara, uma panca, uma pancada, uma pedrada disse eu rindo para a Sandra.

- Será ela daquelas que metem na veia Sandra ?

- Parvo, não digas parvoíces.

- Sei lá, não seria a única a fazê-lo, nem seria a primeira vez que tal aconteceria nos anais da pintura cuja história está pejada de casos desses e eu nem conheço esta Elisabete.

Respaldámo-nos confortavelmente conversando recostados nos antiquados e fofinhos sofás de uma das salas, é que muitos artistas pintaram sob o efeito de drogas psicotrópicas, há até um género de pintura assim classificada, psicadélica. Van Gogh foi um exemplo extremo, cortou uma orelha, Picasso era doido por mulheres segundo uma série que há pouco passou num canal por cabo, Cachatra era louco, são dezenas ou milhares os exemplos de pinturas e pintores que carregaram taras... Salvador Dali idem... Além de louco era excêntrico…Temos outro caso extremo, o de WilliamTurner que uma vez se fez amarrar ao mastro de um navio em plena tormenta para não ser tentado a acobardar-se e obrigando-se a sofrer e viver uma tempestade com o fito de a mais tarde a pintar. O que terá motivado esta Elisabete a repetir-se dentro do mesmo tema ?

Aquilo ficara a fazer-me coca-bichinhos na mona, e embora saibamos como a pintura, aliás não só ela como toda a arte é subjectiva e nos interroga, na primeira oportunidade indaguei junto da própria pintora que me tirasse as dúvidas pois tantas mas tantas pinturas famosas se devem a loucos, à loucura ou a drogas... A manias... A taras.. Freud pegava nas pinturas e na explicação que os doentes delas davam e elaborava diagnósticos certeiros... A par dessa estratégia existem em psicologia os chamados testes psicométricos, e também a psiquiatria recorre à interpretação dos conhecidos testes de Rorschach, acho que é assim que se chamam, os quais têm por base a interpretação de borrões, de manchas, no fundo de pinturas... Pinturas esborratadas digamos... 

Mas chegar à fala com a artista foi um desastre, ela parece ignorar que quem se expõe publicamente, quem se expõe (em galerias ou não) sujeita-se a ser criticada, entendendo eu aqui a critica como comparação, análise e avaliação, e no fundo preparação pessoal para a enfrentar, à critica, ripostar explicar, justificar, defender a sua posição, usando da retórica, da lógica, tendo-me vindo à memória o esforço uma vez observado ao meu amigo Marcelino Bravo, ilustre pintor eborense, que numa exposição se desfez em atenções para explicar à turba o significado de uma sua nova tendência ou conceito tendo faltado somente fazer-nos um desenho para que melhor o compreendêssemos.

Tal nem de perto aconteceu com esta Elisabete, com quem troquei impressões no chat duma rede social, as quais vou reproduzir aqui integralmente para vosso inteiro conhecimento e apreciação:

Eis o diálogo tido domingo, 19 de Maio, no Messenger entre mim e a pintora Elisabete Barradas após esta ter aceitado a amizade solicitada:

EU - Bem vinda, vi ontem uma exposição sua, gostei.  🙂
ELA – Obrigada
EU - Só não percebi uma coisa.
ELA - Diga lá o que não percebeu?
EU - A fixação pelas alturas, pelo céu, pela lua, o escadote sempre presente, a tentação de ascender, subir, trepar, a convergência ao alto, e eram numa grande percentagem as figuras que apresentavam essa particularidade, será fixação ? Pelo quê ?
ELA - Não me parece que seja fixação, um determinado estilo do artista, fase !!!
Continuo
Não é fixação !!!
EU - Usei a palavra sem sentido pejorativo, tal como comentei com a Sandra que aquilo me parecia uma tara, igualmente sem esse sentido destrutivo. Estilo, fase, compreendo.
ELA - Tara?
EU - Fase, é melhor fase.
ELA - Desculpe
Boa tarde !!!!
EU - Falo de um comentário com a companheira com quem fui ver a exposição, leia bem, pk não é o que parece

(Mas ELA  já tinha “desligado”, já se fora embora… )

EU - Tem mesmo uma tara, tenho razão, acabou de ma conceder 😀  Boa tarde e boa continuação enquanto pintora, e reveja a sua posição, cultura e atitude enquanto pessoa, não basta pintar melhor ou pior, é necessário algum humanismo, alguma disposição para levar até ao fim as trocas de impressão com o visitante, o impacto da sua arte nele visitante, observador, consumidor, imagino-a nova, nova demais, sem experiência de vida, a dose certa de humildade e modéstia poderão fazer muito por si, já a arrogância e a prepotência são as armas dos ignorantes... Ah ! E leia, leia muito, bons autores 🙂 Xau bjs e boa sorte

ELA depois disto cortou-me a amizade tendo-me bloqueado.

                    _____________ / ___________

Ora o que sucedeu foi nem mais nem menos a senhora ter confundido soberba com disponibilidade, e arrogância com ignorância. Custa-me entender que quem cursou Belas Artes não tenha estudado a história da pintura, biografias de pintores famosos, que não tenha ligado à literatura (está lá tudo) ou possa descurar o humanismo, a psicologia, a que a arte pela sua natureza anda intimamente ligada, ou a formação pessoal. 

          Não basta saber pintar melhor ou pior, existe a chamada inserção social que obriga a respeitar cânones, não basta vender mais baratas ou mais caras as obras, há que ser educado, bem formado, estar preparado para lidar com a clientela, que, se de arte, será minimamente culta, bem formada e exigente, e sobretudo, se se mantém uma escola de pintura há que defender o seu bom nome e não prejudicar artistas convidados nem alunos com condutas de todo inutilmente impróprias.  

Exposições de Elisabete Barradas jamais, ou nunca mais, e é pena porque a senhorita até pinta umas coisitas, nem pinta mal de todo, podia ser uma promessa não fosse o seu feitio irrascível, veja-se o caso de Joana Vasconcelos, não é engraçada mas soube cair em graça e expõe por todo o mundo que conta, já quanto a esta duvido que esse mundo para a qual nem de perto está preparada alguma vez se lhe abra.

É pena, mas nem todos podem ser sublimes… 

Como por exemplo eu ahahahahahahahahahahhahaha !!!









FICHA TÉCNICA DA PINTORA SEGUNDO ELA MESMA: - Artista plástica na empresa Self-Employed e trabalha em Artista plástica na empresa Carvão Estúdio, Évora Portugal - Estudou Artes Plásticas - Pintura em Belas-Artes ULisboa - Anterior: Escola Secundaria Gabriel Pereira - De Évora - Artista Plástica - Representante de artistas argentinos e uruguaios -




** SIGNIFICADO DE TARA SEGUNDO O DICIONÁRIO PRIBERAM DE LINGUA PORTUGUESA:  Ver pontos 4, 6, 7, 8. 9 e 10.

Ta·ra
Substantivo feminino

1. Peso de recipiente ou continente vazio, sem o produto que pode conter (ex.: para obter o peso real da mercadoria, é preciso deduzir a tara do peso bruto).

2. Recipiente ou objecto que pode conter determinado produto (ex.: prefira bebidas engarrafadas de tara retornável).

3. Peso de um veículo de transporte vazio, sem a carga (ex.: o reboque tem tara superior a meia tonelada).

4. [Medicina]  Anomalia hereditária (ex.: tara genética).

5. Defeito de fabrico (ex.: moedas sem tara). = FALHA

6. [Figurado]  Mácula, defeito, senão.

7. [Informal]  Desequilíbrio mental (ex.: ele não deve ser bom da cabeça, deve ter uma tara qualquer). = PANCA, PANCADA

8. [Informal]  Fixação ou atracção muito forte, por algo ou por alguém (ex.: tara por melancia). = MANIA, OBSESSÃO, PANCA

9. [Informal]  Desvio patológico do comportamento sexual considerado normal (ex.: tara com pés). = DEPRAVAÇÃO, PERVERSÃO

10. [Veterinária]  Defeito que diminui o valor de uma cavalgadura.

11. [Botânica]  Taioba.

"Tara", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/tara [consultado em 20-05-2019].













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quarta-feira, 15 de maio de 2019

604 - SUBIR AO CÉU COMO O ANJO MENADEL


O meu amor não lhe deu vida pois ela sempre a teve própria, mas creio solenemente tê-la ajudado a manter em alta a auto-estima que, como se diz por aqui, chegava para dar e vender, sempre em alta.

Observava-a e, quanto mais a olhava mais o meu maravilhamento recaía sobre tanta confiança, tanta certeza, tanta disponibilidade amor e carinho dado mas não vendido, vendo-a eu a ela um pouco a modos como quem vê um anjo na terra.

Eu olhava e quanto mais olhava mais me convencia estar vendo um anjo… Ou seja, ver para crer como São Tomé e eu, que tanta coisa já vira, pasmava surpreendido ao ver-me confrontado não tanto com a sua beleza celestial, mas com a sua capacidade de dar, de dar-se. Ela para quem na vida tudo fora parco, sopesado, comedido e submetido a criteriosa ponderação.

Sentindo-me protegido por um misto de beatitude celestial e profana dela emanada, senti-me sempre um privilegiado e, não desejando extrapolar a modéstia dessa visão revi tudo, não me atrevendo a considerar-me um eleito, um escolhido, ainda que no meu íntimo me sinta como tal, tal a felicidade fruída ao ser por ela abençoado, tocado. 

Difícil será para um mundo de pecadores como nós ascender aos céus, muito mais fácil é vogar nos ares da sua bênção, limbo para onde me senti levado e para onde a toda a hora me sinto arrastado numa santidade beatífica, tendo daí resultado ter solidificado em mim uma vontade imperiosa de fazer o que está certo, de ser mais que eu mesmo, de me superar, de me ultrapassar, bafejado e impulsionado por essa energia vital p’la qual me sinto tocado, que me tocou e transformou.

Aceitarão que não subi aos céus, inda que vogue na terra imbuído desse espírito de boa vontade entre os homens que ela tão bem inculcou em mim. Afirmá-lo seria manifestamente exagerado, contudo, todavia mas porém e, quer bafejado pela fortuna quer aspergido pela sua virtuosidade, também eu me senti e sinto tocado pela sua bondade e destinado a cumprir quanto compete a um homem bom, a qualquer cidadão consciente do seu dever, a todo o apaixonado que se preze e respeite o amor, a sua dádiva, a sua força anímica. No fundo a coragem a força e a energia que dela emanam e ao longo de séculos tem transformado a face deste planeta.

É quando fecho os olhos que melhor vejo ou recordo a sua beleza, a sua face, a tez ruborizada a que o amor deu cor, os olhos amendoados transportando a essência de amendoeiras em flor, os lábios finos de anjo que convidam envolvem e abraçam, o fácies todo ele num repente de uma beleza ímpar que só a ascensão consente e redime, eu repentinamente flectido em genuflexão respeitosa ante a sua graça e a imagem endeusada que de si construo passo a passo e por isso hoje um candelabro no seu altar e uma jarra com rosas vermelhas que a celebrem, testemunhem e jurem a assumpção da minha fé, a minha devoção, o meu amor por ela, jurado e prometido crente ser o amor que nos move e nos une, ciente de que a esperança não é uma palavra vã e que o Senhor sabia o que afirmava ao gritar aos quatro ventos amai-vos uns aos outros, multiplicai-vos, ide e povoai a terra.

Nunca busquei nem verei nela a Madre Teresa que nunca foi, nem a meus olhos tal serás meu amor, mas o teu amor a tua bondade a tua beleza e serenidade será lembrança que me acompanhará doravante e de mim fará por ti um homem novo, simultaneamente ávido e saudoso da tua doçura, da tua meiguice, da tua candura.

 Não num concílio dos deuses e menos ainda num qualquer concílio papal, se porá em causa menos a importância o lugar e o tempo que a autoridade celestial ou terrena. Estará eternamente em causa a unidade e intimidade familiar, não o núcleo nuclear, o núcleo do universo, o núcleo elementar, o núcleo central, fulcral, a célula, o átomo, a partícula ínfima deste universo maravilhosamente expandido e descoberto ou o maravilhamento da paixão como a única força gravítica celestial. É neste momento único, neste horizonte de eventos, nesta singularidade, neste limite que se jogará o amor, é aí mesmo, é precisamente nesse momento, tal como apostolava Einstein quando professava, que uma justificação, uma explicação será devida e dada aos gentios.

Sit Dominus Deus inhabitare facit unius moris