quarta-feira, 7 de agosto de 2019

611 - ALGUÉM MAIS O VIU ? PASSEM PALAVRA



Eu caminhava na frente como deve caminhar todo o homem que se preza sobretudo quem deva dar o exemplo. Fui por isso o primeiro a vê-lo, vi-o mas calei-me bem caladinho esperando que a coluna o visse, ou pelo menos alguém naquela fila de pobres diabos famintos, sedentos e cansados serpenteando p’la savana desse o alarme.

Vi-o e ao vê-lo todos os meus sentidos ficaram alerta, arrebitei as orelhas e foquei os olhos ao longe em varredura. Como um radar varre os céus eu varria a picada, o horizonte, o capim baixo, as escassas árvores e alguns afloramentos rochosos dispostos à direita e à esquerda do rumo que palmilhávamos.

É difícil imaginar quanto uma coisa tão pequena mexeu connosco, nos sobressaltou e colocou em sentido, melhor, em estado de sentinela alerta. Como difícil é imaginar quão tal coisa nos pode dizer apesar de tão diminuta mas a verdade é que disse e muito, porém só fala se a interrogarmos, se nos interrogarmos. Quem porfia mata caça, e se tal é verdade o inverso também o é, quem não porfia é caçado.

Cem metros adiante estaquei, a coluna estacou atrás de mim e só então alguns acordaram do torpor que seis horas de marcha tinham incutido nos homens, neles e nelas, tendo havido quem pensasse irmos parar ali, descansar, limpar as armas, até o sol ir já bem alto e o perigo de desidratação elevar-se com ele.

Fiz um sinal e toda a coluna se agachou curiosa e repentinamente desperta, rostos tensos, olhos bem abertos, um joelho no chão, o dedo no gatilho. Não, aquele sinal não fora para descansar, bem pelo contrário e a pulsação acelerou em todos, alguns escorrendo suor pela testa, patilhas, cara, pescoço e p'la coluna vertebral causando arrepios nos homens, suor frio não incomoda, enerva, convoca o medo, deixa todos tensos, os nervos uma catapulta pronta a soltar a energia armazenada, dentes rangendo, mais que uma vez mordi a língua.

- Alguém mais o viu ? Passem palavra baixinho.

e a minha pergunta percorreu num sussurro toda a coluna como um boomerang, três minutos depois chegava a resposta, Rosa, a penúltima da fileira vira-o mas não julgara ter a importância que eu parecia atribuir-lhe,

- Vêm todos a dormir ? Querem ficar deitados aqui eternamente ?

praguejei entre os dentes enquanto a outro sinal a coluna abandonou a formação em fila e, rastejando ou agachados, silenciosamente  adoptaram uma postura em linha, uma linha curva em meia-lua que melhor nos protegesse  alargasse a amplitude do espaço por nós abarcado e sob observação pois nunca era demais prevenir uma emboscada ao invés de a remediar.

 E tu Rosa ? Viste-o e calaste-te ? Nada disseste, vinhas a dormir na forma ? Vinham todos dormindo na forma ?

e depois destas palavras agrestes formulei uma crítica geral que aliviasse a pressão sobre Rosa, afinal todos se tinham calado e nem sequer o tinham visto, num registo marcial cochichei de modo a que fosse bem ouvido:

- Será que querem ficar dormindo aqui para sempre ? Será que querem deixar este lugar marcado com uma cruz por cada um ? E quem as colocará ? Esquecem estarmos em campo aberto e que não o terem visto poderia ter feito com que estivéssemos já todos despachados ?  

E logo de seguida para agradar a Rosa, uma negra que estimava, me estimava e nos estimávamos sempre que possível naquele ambiente de inferno e loucura em que os dias se repetiam e as noites nos assustavam. Virei-me para ela e:

- Rosa tu que o viste poderás dizer sobre ele alguma coisa ? Que nos poderá ele dizer ?

Eu não perdia uma oportunidade para treinar e consciencializar os meus homens, nem me limitava à cartilha teórica, saía com eles para o mato, encabeçava e levava a cabo as operações mais díspares, sobretudo nunca abandonava a postura exemplar nem o lugar da frente mal a coluna se punha em marcha numa longa fila indiana.

- Então Rosa ? Um leão comeu-te a língua ?

- Nã, nã nada disso. Bem, era preto, pousava descontração na beira do carreiro ali sobre a erva nem tocando o chão, nã estava todo queimado ainda, parecia se deitara havia tempo nenhum, eu dizer que um outro alguém distraidamente ali o deixara no caminhar e que não anda longe de nós esse alguém.

- Muito bem Rosa, e já que foste a única a vê-lo volta atrás e vai buscá-lo para lhe arrancarmos tudo o que pudermos, ele ainda tem muito para contar, vai sem receio, nós cobrimos-te.

No regresso Rosa encontrou-nos em círculo, uma sentinela em cada extremo do diâmetro dessa circunferência, embora atentos ao que se passasse em redor não perdiam pitada do nosso instrutivo debate e, mal Rosa mo entregou fi-lo passar de mão em mão para ser bem observado por todos e p'ra que entendessem como arrancar-lhe preciosas informações.

Sabia-se ser preto, ter sido encontrado deitado na erva sem tocar o chão, só perdera a cabeça tendo o resto incólume o que garantia a sua idade e tempo de exposição, seria novo e estaria ali há bem pouco tempo.

- Nõ ser dos nossos, nossa gente não é assim, não usa. Balbuciou Nhuma.

- Nã ser nã, e de quem será pertença, quem saber de quem ser o descuidado ?

- Não temos a carteira mas foi arrancado de uma, é preto, de papel e cera, não está deformado pelo sol nem sujo pelo chão portanto terá poucas horas de queimado. Quem o acendeu atirou-o descuidadamente fora e agora está a cantar e a contar-nos o que sabe. E que mais poderá ele contar-nos Hermenegildo ?

- Bem meu tenente, como o senhor sempre diz não passa tudo de suposições mas é o que temos e por vezes essas suposições tornam-se grandes verdades por isso afirmo que esse matéria é usado pelo sul-africanos, será pois natural não andarem longe, passaram por aqui é sabido, está aí a prova.

- Muito bem, passaram por aqui e já agora, avançavam para lá ou para cá nesta mesma picada em que nos encontramos ? Pergunta para o Xavier.

- Tenente, se ele estava à direita eles avançarem no nosso sentido, estando à esquerda eles avançarem em contrário a nós, daí estarem avançados ou esperando nós, eles se encontrarem um par de horas ou duas no nossa frente. Nós ter que nos cuidar de má surpresas.

.- Correctíssimo, tens razão mas, e se quem o atirou fora fosse canhoto ou o tivessem ali deixado propositadamente para nos ludibriar ?

- Sendo canhoto ficaria no esquerda, meu tenente tá me baralhando, haver pouco canhoto, mais certo ter sido destro, há mais destros e menos canhotos por tal é mais acertado confiar no direita e eu fico no meu dito, eles estar na nossa frente nos esperando e o mais stá para se ver creditem.

- Muito bem, bom raciocínio, resumamos, fosforo recente, preto, de papel e cera como o pessoal do exército sul-africano costuma usar, caminharão no mesmo sentido que nós, estarão ou não na nossa frente, esperando-nos ou não, as probabilidades apontam para isso, portanto é mantermos os olhos bem abertos, caminharemos em meia-lua e nem um pio quero ouvir.

Não desejávamos ser apanhados em campo aberto nem pelo sol erguendo-se bem depressa e bem quente. Caminhámos para alcançar a mata dispersa assinalada no mapa, ideal para descansar, dormir e efectuar a manutenção do armamento até a noite cair pois caminhar na noite castigar-nos-ia menos, a orla do Calaári era um inferno. Faltando somente duas a três milhas para atingir a mata assinalada e mantendo a formação em linha por ser mais indicada como defensiva, percorremos contudo esse percurso descrevendo um largo arco de modo a quando entrássemos na mata tivéssemos o sol por trás dando-nos uma vantagem nada despicienda já que a haver encandeamento caíria sobre o inimigo.

Agimos bem, mal nos aproximámos da beira da mata fomos baptizados com fogo cerrado, havia quem não nos quisesse deixar sair de campo aberto mas a nossa estratégia fora bem delineada, a um sinal meu os homens abriram mais o leque em meia-lua e à vez entraram na mata. Antes disso tinham fixado os pontos de origem do fogo do inimigo e, conhecendo as posições dos seus atiradores, embrenhámo-nos na mata. O nosso leque enfrentou galhardamente a situação ripostando contra esse inimigo que nos esperava emboscado cercando-o e fustigando-o com metódica e calculada precisão, porém havia que poupar munições pois o tiroteio poderia vir a tornar-se demorado até alguém poder cantar vitória.

Eu recomendara um cerco deixando-lhes aberta uma saída na retaguarda, uma escapatória, nada pior que um animal enjaulado e essa medida pode ter ditado a nossa sorte. Menos de uma hora antes de anoitecer dois enormes helicópteros do SAA aproximaram-se, um fazendo fogo de barragem sobre nós enquanto um outro se ouvia descendo para recolher o pessoal e talvez mortos e feridos. Abrigámo-nos da metralha vinda do céu o melhor possível e, depois deles partirem vasculhámos a zona. Pelos rastos visíveis abalaram com seis ou sete feridos ou mortos pois algum armamento fora abandonado na urgência da retirada.

Nós contabilizámos quatro feridos ligeiros um de maior gravidade, o homem do rádio, rádio que contudo lhe salvou a vida. O rádio ficara desfeito mas o ombro do nosso homem mantinha-se inteiro, apenas uma boa ferida pouco maior que uma mão aberta. Houve até quem brincasse com isso, “não há dúvida que o rádio salva vidas” e àquela salvara-a, o problema doravante era se sem ele salvaríamos as nossas. Em dois dias alcançámos a nossa base, a tempo do homem do rádio evitar uma gangrena pois a ferida, nunca medicada, estava ficando uma lástima.

E ainda há quem diga que a vida não vale um fósforo. Aquele salvou-nos a todos de cair num grande buraco …

***** https://www.youtube.com/watch?v=QMMhfJOlaJs&list=RDbaxj_eVPEe8&index=22

***** https://www.youtube.com/watch?v=H1IJVOOehdk&list=RDQMMhfJOlaJs&index=39

segunda-feira, 29 de julho de 2019

610 - 2 ESMERALDAS, 2 ANÉIS DE ESMERALDAS



Quase dez meses depois segui finalmente as tuas sugestões e atrevi-me a sair. Não por me faltar vocação para eremita, ou estilita, mas para dispor de espaços largos onde diluir a mágoa que visto desde que partiste.

Verdade, confinado entre as quatro paredes de casa ou do café convivo melhor contigo e comigo mesmo, são um espaço íntimo partilhado por nós mas onde a tua ausência me sufoca e martiriza como um silício metódico, qual imaginário e persistente pêndulo sobre mim caindo fustigando-me.

Era portanto tempo de tomar à letra, aceitar, acatar as tuas sugestões, sempre fiz delas lei como bem sabes, sabias, e nem havia razão para assim não ser tão ponderadas e acertadas elas eram, sempre foram.

Aproveitei o domingo tal como o rapaz que saiu à rua num domingo para se matar* inda que não fosse esse o meu fito. Confesso que sim, também eu já quis morrer, foi duro quando te perdi, é ainda duro e raro o dia em que por ti não choro, às vezes nem é bem chorar, mas marejam-se-me os olhos de lágrimas somente por lembrar-te, por estranhar a tua ausência, por notar a tua falta, lamentar não te encontrares a meu lado partilhando quaisquer eventos ou acontecimentos, sentir ainda o incrédulo da toda esta situação para que me vi atirado, mau grado os teus conselhos, sugestões, desejos, ordens ou apesar da tua despedida, tão terna quão doce, mais de um mês antes de partires por saberes que esse dia chegaria, só não sabias quando. 

Aventurei-me no domingo passado, pela primeira vez em muitos anos saí do meu retiro voluntário e procurei na praça multidão em que banhar-me e onde, como as galinhas da capoeira da tia Hortênsia pudesse espojar-me e sacudir as minhas chagas, tal qual os galináceos mal encontram dois palmos de terra solta onde largar os piolhos num banho purificador e necessário ao equilíbrio do corpo e da alma, do biorritmo e dos electrólitos, dos sais minerais e outros que tais, do Ego, do Superego e do Id, todos eles em instável e periclitante equilíbrio há muito, pelo que, para me amparar ou acudir caso uma tontura, um desmaio ou qualquer súbito, desconhecido ou inesperado episódio, fi-lo acompanhado não fosse o Diabo tecê-las, credo, lagarto, lagarto, lagarto.

Socorri-me da Fatinha, aquela tua amiga sueca, aliás nossa amiga e que conheceras há muito, há mais de quarenta anos, quando do teu estágio de Terapeuta no Hospital de S. João, ou teria sido no Curry Cabral ? Foi há tantos anos que nem recordo já onde, só recordo vocês duas na festa de finalistas, de braço dado e sorriso rasgado, onde somente a cor dos diplomas divergia, branco amarelado para Fisioterapia, Rosa pálido para Enfermagem, ainda que os vossos anéis fossem iguaizinhos e vaidosas pegassem no diploma com o cuidado devido para que o fotógrafo apanhasse as pedras esmeralda, símbolo do vosso esforço e do vosso orgulho.



Foi pois da nossa velha amiga Fatinha que me fiz acompanhar, quem melhor que uma enfermeira não achas ? Sempre me disseras mais valer prevenir que remediar e eu não esqueci a lição, aliás uma outra amiga minha, a Zezinha, tivera já oportunidade de me dar idêntico conselho, arranjar uma enfermeira. Como podes constatar sigo os teus conselhos e busco não me desviar do bom caminho, nem a pé nem de carrinho.

Aportámos à Praça do Geraldo para um concerto dos Fanfare Ciocarla integrado no festival de verão Artes À Rua, uma coisa   assim como o Viv’à Rua dos nossos tempos e que eu apreciei pela semelhança com o chinfrim dos Kumpania Algazarra, que sabes eu adorar e que a Fátima também apreciou pelas parecenças com os grupos musicais da sua terra, uma terrinha de nome impronunciável, idem para os grupos musicais da sua preferência, todos eles compostos por elementos de Linköping** de onde ela é natural.

Valeu a pena, voltei a sentir-me vivo, não cabeceei nem desmaiei, nem sequer tonturas tive e, não fossem duas ou três lagrimazinhas soltas no escuro do espectáculo e pelas quais ninguém deu menos tu e eu, diria ter a noite valido a pena, inda que para pena minha te tivesse recordado com ternura, amor e carinho, tendo perpassado pela minha mente se não todos quási todos os espectáculos daquele género em que os dois estivemos presentes, partilhámos, e nos quais algumas vezes dançámos.

Depois, lépida, a Fatinha deixou-me em casa, eu sofrera uma pequena queda na mota e o travão entalara-me o dedo contra o punho do acelerador e por pouco não foi cortado, não ficou cortado mas a custo evitaram ter sido cosido, o pessoal do nosso hospital ainda é do melhorzinho e bastos me acudiram de pronto na urgência não te tendo esquecido a ti, recordando-te todos eles com carinho. A propósito, estou quase curado e já consigo conduzir de novo sem perigo que a ferida abra, pelo sim pelo não evito fazê-lo e voltei a trancar-me em casa, só tu e eu, como dantes, como sempre, não te esqueço nem descuido o meu desvelo por um momento que seja e podes ter a certeza de estares em boas mãos meu amor, esquecer-te é que não, nunca.

Pela tua mão começo a soltar-me, recomeço a voar, torna-se menor e mais leve a mágoa carregada mas não a tua lembrança, nem a paixão que sempre te dediquei e continuarei a dedicar, até por ter voltado a sentir o amor, a sentir que me proteges, que me acompanhas, por te continuar ouvindo e seguindo as tuas sugestões, os teus conselhos, lembrando a tua doçura e carinho, a sentir quanto eles são agora mais necessários que nunca ao meu viver ao meu reviver, ao arriscar trilhar de novo espaços abertos sem receio.

Confio velares por mim meu amor, de peito ufanado e novamente ousado enfrento decidido as multidões e banhando-me nelas sem qualquer medo cicatrizo as chagas, afasto o silício, reequilibro os chacras, o karma e o mantra buscando evitar as cabeçadas mal dadas, as tonturas, os desmaios ou quaisquer súbitos e desconhecidos ou inesperados episódios …







segunda-feira, 22 de julho de 2019

609 - AMOR E UMA FERRAMENTA ......................



AMOR E UMA FERRAMENTA

Ânimo sonhos, intenções,
tudo me dá vida e inspira,
tudo levo p’la frente em arrastões,
ou tudo passo p’la espada, e tudo expira.

Se calha travarem-me o pio,
me censuram, ou me ameaçam,
eu abro o peito com brio,
e luto até que emudeçam.

Não viro costas a justas,
confio na luz que me anima,
e junto uma a uma as letras,
do teu nome minha menina.

Porque teu nome é poesia,
é doçura e carinho, coração,
porém o que tu mesma querias,
era uma chave de estrias,
dar largas a esta emoção…

Desapertar um bocadinho,
a pressão na válvula aórtica,
ajustar ternura e mimo,
regularizar a sistólica…

                    By Humberto Ventura Palma Baião 21-07-2018 – domingo – 16:15h


sábado, 20 de julho de 2019

608 - PERNAS, PARA QUE VOS QUERO EU ? .........



Dia sim dia não fecha uma loja, mas a velha baiuca do Dimas das gravatas fechou há bué de anos, quando ele próprio ficou um trapo e as gravatas passaram de moda. A última julgo tê-la vendido ao meu amigo Esteves, então um exemplar único de fadista, marialva, machista e um racista empedernido desde que regressara de Angola. Imagino o que diriam dele se fosse vivo, e assim se escapou ao julgamento dos tempos modernos.

Era verde a gravata, de um verde lindo, vivo e colorido, ainda me lembro, tal como lembro as palavras do velho Dimas repetidas por ele, ele Esteves;

- Esta gravata, esta seda tem tamanha qualidade que poderia servir de baraço a qualquer um e aguentá-lo pendurado duma azinheira semanas sem fim, e olhe que lhe fica bem este verde lindíssimo amigo Esteves, assenta-lhe mesmo a matar.

“Assentava-lhe a matar” rematara o velho Dimas, ainda assim convenhamos que para gravata tão álacre e de tamanha qualidade o discurso elogioso foi mórbido, isto para além de soar a graxa, quando não a servilismo, coisa caída em desuso poucos anos atrás quando do 25 de Abril e infelizmente regressando ao cimo das ondas nestes nossos confusos dias. Julgo ter deixado bem explicada a razão pela qual o Dimas nunca conseguiu empatia com as novas liberais e libertinas gerações, eram outros tempos, novos tempos aos quais o Dimas foi incapaz de se adaptar e a loja sucumbiu.

Belos tempos esses, em que a Vitorinha do Esteves como ele carinhosamente chamava à sua papoila, sim, também lhe chamava Papoilinha, lembrando Charneca Em Flor da Florbela Espanca, tempos em que a Vitorinha dizia eu, tinha um palminho de cara, era presença alegre, sempre viçosa, bem quista e atraente. Em boa verdade a Papoilinha do Esteves, uma papoila entre a gente, entre nós, seus amigos e colegas, seria decerto uma flor no deserto que por essa época o notariado era, serviço e repartição onde assentou que nem uma jarra florida mal acabou o liceu.

Plantada estava, estavam, nos Registos e Notariado ela, nas finanças, hoje Autoridade Tributária ele, repartição onde mal chegou a esboçar carreira, isto é, não encarreirou, para falar verdade descarrilou. Inda casados de fresco e já ele a trancava em casa vítima dos seus arrotos de machista, aquilo era casa trabalho, trabalho casa, e a cada ano a Papoilinha murchava e perdia pétalas, estames e corola, enfim, secava, murchava, empalidecia como se tivesse sido emparedada.

Quis o destino conceder de novo protagonismo à linda gravata verde de seda com que o Esteves casara, estreara no casamento entendam-me, e, no dia em que entrou como fiscal no lagar da Sofal, credenciado e engravatado, levou-o a curiosidade a ver in loco como era espremida a azeitona, talvez c’o fito de aprender ele, novel fiscal tributário a espremer os desgraçados dos contribuintes.

Olhou, remirou, baixou-se e viu de novo com redobrada atenção como a prensa espremia a azeitona esmagando-a até ela dizer tudo o que havia a dizer e largar o oiro que adoramos num fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira. Debruçando-se sobre ela ia perguntar qualquer coisa;

- Para que serve esta roda tão grande sempre girando, girando sem parar ?

Quando um dos raios da dita roda num ápice, digo repentinamente o apanhou pela bela e linda gravata verde pendendo-lhe do pescoço e num gesto mecânico, ou maquinal foi o Esteves puxado com brusquidão de encontro à roda nem tendo tempo de acabar de formular a questão que acabara de colocar e que tanto parecia atormentá-lo, por que rodava aquela roda tão grande sempre girando, girando sem parar.

A verdade é que aquela roda enorme e girando, girando sem parar o ia puxando como uma apaixonada puxa aperta e estreita num abraço o seu amor, e o Esteves a cada segundo mudando de cor, rosa, pálido, vermelho, roxo, azul, e mais cores não mostraram aquela cara e aquelas bochechas porque quando finalmente lograram parar a máquina já o Esteves estava morto e bem morto, com o pescoço partido.

Razão teve o Dimas, a linda e bela gravata verde em pura seda que lhe vendera mostrara-se forte que nem corda de sisal e, se não aguentou um pendurado de uma qualquer árvore de Natal, sim era Natal, aguentou bem todos os esforços do Esteves para se livrar dela, do Esteves e do resto do pessoal que na vã tentativa de evitarem o pior rasgando a gravata, só conseguiram enrolá-la ainda mais partindo-lhe o pescoço e deixando o desditoso fiscal encravando o mecanismo, entretanto desligado e, diria eu, desligado quando eram já sopas depois de almoço.

E por falar em sopas, ou em sopas depois de almoço como se diz na minha terra, na Páscoa seguinte e após o abalo sísmico sentido na sua condicionada vida marital a Vitorinha voltou a florir e a sorrir, libertou-se das grilhetas servindo num churrasco primorosamente construído pelo Esteves e encostado ao anexo do quintal, um petisco de comer e chorar por mais pois de chorar se tinha ela cansado há muito, petisco onde não faltou um fiozinho resplandecente de belo azeite puro de oliveira nem um pratinho raso desse oiro puro afim de molharmos a sopa nele, digo a sopa de pão com a qual acompanhámos o paio, o queijo, o presunto, a linguiça assada, havendo até quem se deliciasse e contentasse meramente com a sopa demolhada e uma caneca ou copo por onde escorresse a aprazível cerveja refrescada e refrescante que nos punha a cantar o cante.


Não sei se alguém se lembrou do Esteves, eu recordei-o mas calei-me afim ou a fim de não estragar o convívio a ninguém. Festa é festa e à noitinha, já alegre e tocadita a Papoilinha, sentindo-se viver, e reviver, sentindo-se de novo mulher e livre, animada pelas estrelas perfulgentes, passando a mão por coxas e pernas, olhando-me com o olhar que os bons amigos guardam para os melhores de entre eles, diria para mim:

- Estas minhas pernas ainda têm pele de pêssego como dantes, não têm Baiãozinho ? 

           

terça-feira, 11 de junho de 2019

607 - MESAS, OUTRAS MESAS, OUTROS CAFÉS.


Sim, é tal e qual como dissera porque pensara que, depois de, depois de tu, tu sabes, pensei que depois de partires eu me sentiria mais livre, mais liberto, menos constrangido, por isso pensei que abandonaria logo de seguida o hábito das manhãs neste café, todos os dias, diariamente, como se esta mesa um lugar cativo e cativo eu do teu problema, da tua situação, da tua dor.

Julgava eu que me libertarias, ou que me libertaria eu de ti, que gradualmente poderia começar a ocupar outros lugares, outras mesas, outros cafés, outras presenças, outras pessoas, outras amigas e amigos, por que não ? Pensava eu, pensei eu que seria o melhor, e depois de, tu sabes, acabei por acatar e meter em prática essa minha tão meditada sugestão. Há mar há mar e há ir e voltar, há morrer e viver.

Foi sol de pouca dura. Coisa pouca, mas eu não sabia, há coisas que só vividas, experimentadas, sofridas, por isso aqui estou de novo à mesma hora, na mesma mesa, no mesmo café, as mesmas pessoas ora entrando ora saindo e eu olhando-as, eu que agora já sei, já sei que não, não, nada foi como eu pensara e, não só nada adivinhara como me enganara redondamente quanto ao que pensara, quanto à solução que alinhavara e experimentara.

Tu sim, tu libertaste-te da irrelevância e do sofrimento que o destino de destinara, eu não, não consegui, não fui capaz e, coisa extraordinária, é onde melhor me sinto e onde menos sinto dentro de mim e à minha volta este vazio que me acompanha sempre, vá onde vá, por onde vá, com quem quer que vá.

Algo me falta, algo se obstina em ocupar este vazio que me preenche e esse vazio és tu, a tua falta. A tua ausência. Não foram os cafés nem as mesas que mudaram, fui eu quem mudou. Pois se vejo tudo mudado, e se tudo está mudado, tal se deve à disposição com que agora tudo olho, com que olho este mundo onde já não pontificas e por isso tão repentinamente mudado, como um lago propositadamente secado ou a mim alguém tivesse vazado um olho, cegado.

 Falta na ruas e nos lugares que volto a percorrer o eco das tuas gargalhadas, a luz do teu sorriso, a melodia da felicidade que irradiavas e com a qual me contaminavas, a mim e a todos com quem te cruzavas. Por isso voltei ao mesmo café de onde pensara libertar-me e onde menos sinto este vazio de cada dia e, pasme-se, onde mais perto de ti me sinto pois este lugar ao menos diz-me alguma coisa, nele inda ouço a tua fúria de viver, o teu grito, a tua lembrança, a tua esperança, enquanto o resto do mundo se me tornou repentinamente indiferente, dizendo-me cada vez menos. Para ser franco confesso, depois de ti este mundo não me diz absolutamente nada, não me diz já mesmo nada.

Algumas vezes, por vezes, durou certo tempo a coisa, deambulei pelas calçadas que pisáramos, por percursos que percorrêramos tantas vezes durante tanto tempo que esqueci já quão foram eles por nós calcorreados, até que, não cansado mas desperto, me senti intimamente martirizado, sofrido. Por isso voltei aqui, voltei a ti, a mim e a este café onde me sinto inda a ti preso, a esta mesa onde pouso ainda o telemóvel e o miro de vez em quando não vá nele cair apelo teu, ou um aflito pedido de socorro, uma qualquer mensagem que não desejo ver passar despercebida no elo dessa corrente quebrada, qual cordão umbilical que por tanto tempo me prendeu à tua vida.

Perdera-me, voltei aqui como se necessitado d’uma âncora onde me agarrar e firmar para depois, com bonança e mar calmo, mar chão, me aventurar de novo a recuperar a identidade perdida, decidido a encontrar novo rumo, apostado em traçar um azimute que novamente me ligue à vida agora que a vi perdida, me vi perdido e necessitado de novo compromisso para me encontrar.

Contigo aprendi o significado de perseverança e tenacidade, náufrago de mim mesmo percebi agora a tua teimosia, tu sabias quão nesses substantivos eu seria forçado a apoiar-me para sobreviver, tu sabias do mar revolto que eu enfrentaria, tu não te limitaste a deixar arrumadas gavetas e assuntos, tu aplanaste o caminho que eu tomaria, aplacaste os demónios que me assaltariam e, conhecendo quanta dureza preenchia o caminho que percorrias sobrou-te contudo gentileza p’ra pensares no trilho que me caberia pisar.

Há muitos muitos anos eras tu pouco mais que uma criança dei-te a mão, desinteressadamente mostrei-te o mundo, este mundo do qual tão cedo te foste, este mundo que agora me ajudas a pisar, a percorrer.

             Obrigado meu amor, meu amor de sempre, meu eterno amor.