quinta-feira, 17 de março de 2022

761 QUARESMA, PÁSCOA, TEMPO DE DÁDIVA...

 


Terminámos a Quaresma, período litúrgico significativo pelo que comporta em si. Período de reflexão e preparação para a Páscoa, período que nos deve levar à introspecção, ao recolhimento, à austeridade, especialmente à contenção nesta sociedade de consumo onde nos atolámos.


 Período que nos deve levar igualmente à solidão, tão necessária para repensar o homem e a vida, o outro, o próximo e, naturalmente a frugalidade, o jejum, mas também a superação de nós mesmos. Jesus não se retirou para o deserto sem comer por quarenta dias e quarenta noites antes de iniciar a sua vida pública ? Quaresma é sinónimo de jejum, de abstinência da carne, de mortificação, de caridade e de oração.

 

O homem vive rodeado de tentação, de tentações que não o engrandecem, antes aviltam, a igreja nunca soube fazer entender ao seu rebanho quanto perigo se esconde nestas tentações, no aviltamento a que o rebanho se deixou e deixa reduzir e o apequena, a apequena.

 

É um caso de perfeito divórcio entre doutrina e prática, entre a teoria e a práxis consentida, permitida, diria mesmo convidativa, manipuladora, sedutora, mas jamais redentora, redentora ou demonstrativa da superior racionalidade do homem.

 

Quaresma é esforço, rigor, e um apelo à conversão, um convite a que pensemos e mudemos em nós o que está fora do preceito cristão e racional, o que cai fora do âmbito da dignidade humana, dignidade pela qual tantos homens têm lutado e tombado antes e depois de Jesus, ele próprio cordeiro no altar dos sacrifícios que deviam remir todas as nossas faltas. Respeitemo-lo pelo menos, mas lembremos também a sua redentora travessia do deserto, redentora e purificadora.

 

Os tempos actuais deviam levar-nos a pensar melhor a Quaresma e a Páscoa, pois atravessamos tempos agitados em que a liberdade de expressão é posta em causa e se torna opressão e manipulação em vez de informação e libertação. Quando a emoção se sobrepõe à razão e a guerra mobiliza mais o homem que a paz, é caso para que nos interroguemos se não deveríamos pensar durante quarenta dias antes de agirmos.

 

A tradição cristã é uma regra normativa confluindo para a paz e a concórdia entre os homens, e é-o para todos os homens, mesmo para os não-cristãos, mesmo para os agnósticos, mesmo para os ateus, todos estes porventura até mais necessitados por não encontrarem com facilidade quem lhes aponte algum caminho mais indicado para ser trilhado, percorrido e cumprido para o bem de todos.

 

Os mandamentos de qualquer fé são sempre universais, mas nunca obrigatórios, há caminhos que temos ou devemos percorrer por vontade própria não por Imposição. Ser cristão é percorrê-los mesmo que não aceitemos a submissão a essa ou a qualquer outra doutrina.

 

Ser homem é ser herdeiro de uma tradição que se estende das catacumbas aos nossos dias, ser homem é acreditar que todos somos irmãos, que todos somos descendentes do mesmo mar, não por acaso Santo António pregava aos peixinhos, não por acaso todos temos uma espinha, uma primordial espinhal medula, uma coluna espinhal. Não por acaso o símbolo dos primeiros cristãos após Spartacus (109 ac – 71 dc) foi o peixe, o desenho de um peixe que um bordão iniciava traçando-o nas areias de qualquer chão e outro bordão completava identificando assim secretamente os irmãos entre si.

 

Hoje todos somos irmãos todos conhecemos o mistério da nossa origem. Mas conheceremos o nosso destino comum ?

 

Quaresma, Páscoa, tempos de dádiva, entrega-te.

 

Depois da ressurreição e antes de subir ao Céu, durante outros quarenta dias Jesus instrui os seus discípulos nos mistérios e quesitos da dignidade, faz tu o mesmo em relação a ti próprio e, num recolhimento íntimo, pensa-te, ajuíza-te, avalia-te, e age. 




terça-feira, 8 de março de 2022

760 - A SOLIDARIEDADE COMEÇA EM CASA ...


Há anos que as Finanças e a banca portuguesas penhoram as casas aos casais que têm o azar de cair no desemprego ficando incapazes de as pagar, sendo postos na rua quase a pontapé... (por trás de cada penhora esconde-se uma tragédia).

  Nunca vi na AR uma denúncia desses dramas por deputado nenhum, nem vi alerta ou solidariedade por parte dum só português que lhes acudisse...

 E são gente da nossa, são os nossos...

 “Emigrem se quiserem”, “não se acomodem a situações de conforto” , “nem vivam acima das vossas possibilidades” é isto que lhes dizem, e se não emigrarem que vão pedir esmola e arranjem um barraco onde dormir, ou debaixo duma ponte...

 É assim que tratamos os nossos. Não vou agora receber os de fora de braços abertos, não me peçam isso...

 Claro, que sou solidário com todos os refugiados de todas as guerras, mas se pudesse tb apertaria o pescoço a quem esquece os nossos, começando pelos PMs e PRs que temos tido .....  Ou esses tb não têm culpa ? ...

 A caridade, já dizia a minha avó,  deve começar em casa...

 Abraço apertadinho e solidário :/




 

terça-feira, 1 de março de 2022

759 - MINHA CASA, ESTA MULHER ... * (1942)

                                            Chagal - "Aniversário"


MINHA CASA, ESTA MULHER

POEMA DE SANTIAGO KOVADLOFF  *

  

"Minha casa é esta mulher que agora dorme ao meu lado. Como ela, com ela, tudo ao meu redor descansa.

 

Quando ela acordar, as coisas também. As portas se abrirão novamente, a água voltará a correr, passos animarão a velha escada, a luz voltará a cair sobre as plantas.

  

Voltarei à minha mesa, às palavras, e a sua voz, como uma auréola, rodeará meu dia.

  

Quando ela for trabalhar, levantarei os olhos da página, e uma tapeçaria, um cravo, um amuleto inesperado na cozinha da casa repetirá o nome desta mulher que povoou tudo com sua presença e o sucesso de suas mãos.

  

Ela é a minha casa, a porta principal de acesso ao significado desses cómodos. Se o egoísmo ou a indiferença interrompem nosso encontro, a casa escurece.

 

Como uma dura denúncia de uma solidão irremediável, as paredes estarão carregadas de presságios, a cor de cada coisa retrocederá, a casa esvaziar-se-á, e morar nela será expor-me aos elementos.

  

Minha casa é esta mulher que agora dorme ao meu lado. Quando ela está longe, tudo está longe na casa; sem ela as coisas em meu redor andam aos montes, e estar aqui torna-se uma tortura; assedia todos os lugares, cada passo dói, cantos e objectos tornam-se inúteis.

 

E a casa lembra, num sussurro triste, que um dia soubemos ser melhores. Se a alegria renasce, a casa renasce.

 

Quando a lucidez ou o desejo nos une novamente, a casa se ilumina novamente: meus papéis fazem sentido, cada cómodo é a evidência de um projecto. A casa toda é uma festa e o sopro suave e denso da vida desce novamente a velha escada".

  

* Santiago Kovadloff (Buenos Aires, 14 de diciembre de 1942)



                                         Pintura de RAMON CASAS  

sábado, 19 de fevereiro de 2022

758 - MARGARIT, AVENTURA DOMÉSTICA *


AVENTURA DOMÉSTICA *

 

Sozinho em casa procuro nos armários.

 

Encontro antigos mapas de estradas,

contratos que venceram, esferográficas

que não escreverão mais cartas, velhas calculadoras

sem pilhas, relógios que o tempo derrotou.

 

O passado aninha-se no fundo das gavetas

como um rato triste.

 

Vazios, os vestidos pendem

como velhas personagens que nos interpretaram.

 

Mas de súbito encontro a tua lingerie,

da cor da noite, da areia; fina, com pequenos bordados.

 

Cuecas, soutiens e meias que desdobro

e que me fazem regressar ao brilhante, embora misterioso,

fundo de amor e sexo:

 

é ele que, de facto, dá vida às casas, como os faróis e as luzes

de barcos e cafés a um porto ignorado…

 

        *Joan Margarit – 2018 - AVENTURA DOMÉSTICA








segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

757 - " É SIMPLES " https://www.facebook.com/nini1976

 


É SIMPLES  *

É simples

Junta-me a ti e

Deixa-nos estar assim

Um bocadinho

Depois

Começa a passar o indicador esquerdo,

Devagar,

Sobre o meu ombro direito.


Respira.


Respira mais uma vez e

Tantas, junto ao meu ouvido,

Enquanto vais passando,

Devagar,

O indicador sobre o meu ombro.


Agora

Afasta-te um pouco

Procura-me o olhar

Abandona-te nele.


Deixa-te ir,

Não tenhas medo.


Nesta altura já sou eu que respiro

Junto a ti.


Não sei se há palavras

Se precisamos delas.

Temo-nos.


Passaremos assim pelo tempo.


Um dia

O meu ombro já não será tão liso

E o teu indicador tremerá.


Mas, se fores mesmo tu,

Ainda nos abandonaremos

Um no outro.



*  Cristina Gameiro

https://www.facebook.com/nini1976


https://www.facebook.com/photo/?fbid=10226252820536028&set=a.10206741043433795