Ontem, foi mesmo já noitinha que fui
atraído ao Telheiro, uma aldeia pitoresca no sopé do monte que Monsaraz ocupa.
Uma caminhada nocturna prometida e publicitada pela CMRM inserida nas festas
anuais do Telheiro convenceu-me, até por ter afinidades com essa aldeia há mais
de sessenta anos.
Dez da noite e aqui estou eu, apresentei-me,
com o meu habitual e colorido bordão, calção claro, ténis à maneira, o vistoso
camisolão azulão dos não menos vistosos, famosos e omnipresentes Caminheiros de
Monsaraz, tal qual me podem ver numa das fotos, encostado à direita dela e um
pouco desfocado. Essa caminhada nocturna representou para mim mais que o
episódio do “roubo do santo”, tradição curiosa cujos link podem consultar no
fim deste texto.
Tinha-vos prometido ontem ainda
dizer-vos alguma coisa mais sobre essa caminhada / procissão, tinha prometido que
vos contaria como, mais que a procissão/caminhada, o lugar, a ermida de S.
Sebastião me sensibilizou.
Sendo eu natural de Monsaraz já
conhecia o lugar, junto dessa ermida a minha avó Inácia Ferrador, e meu avô
Palma naturalmente, criaram os mais de treze filhos e filhas que deram a este
mundo, minha mãe, tias e tios, muitos deles e delas tendo partido dali somente para
casar.
Não conheci a ermida por esses
tempos, viria a conhecê-la muito mais tarde, teria eu quatro e tal ou cinco
anos. As mulheres tinham descido a chapada até ao Roxo, umas para caiar a
ermida, outras p’ra lavar e estender os lençóis a corar sobre a erva depois de
lavados, enquanto a gaiatagem, eu e outros que já nem recordo, deambulávamos
por ali e tudo nos servindo de entretém.
Era comum nesses tempos avistarem-se
lá em baixo no roxo, lavadeiras e roupa estendida corando sobre as flores que
atapetavam os campos em redor, a ermida ficava a poucas dezenas de metros, uma
centena talvez. A partir daí, nós putos, como lebres galgávamos a distância até
à estrada nova, novinha, que se estava fazendo do Telheiro a Reguengos e
quedávamo-nos embasbacados olhando a imagem que o futurismo gravava nas nossas
mentes.
Cintilando num emblema dourado e
estampado na lateral do cilindro verde que espalmava a estrada preta, uma
inscrição a vermelho vivo que alguém nos disse ser "Coolfield Road
Roller", gravado no flanco desse monstro, um cilindro bufando e gemendo sempre que
lograva mexer-se, e que depois, enquanto as obras duraram passámos a contemplar
do alto da vila, dia a dia, vendo a estrada crescendo e estendendo-se em linha
recta e a perder de vista.
Deveríamos andar por 1969 ou 1970,
lembro-me porque nesse ano de festas deixei de ver a estreia de Easy Rider, um
filme famoso, com Peter Fonda e Dennis Hopper contando a história de dois motards (eu já era então um pequeno motard) percorrendo o sul e sudoeste dos EUA em busca da liberdade pessoal, pois nesse sábado toda a família estava já
embarcada em Monsaraz e me esperava a todo o momento.
Era o tempo da semana inglesa e eu trabalhara até à uma
da tarde, depois enfiara-me na carreira até terras d’el-rei, dali em diante à
boleia com um padre, num velho Ford que não passava dos setenta e me deixou quase a
uma légua do Telheiro. O padre, curioso, indagou que fazia
eu ali especado à boleia e, quando lhe disse que ia para a tourada em Monsaraz
soltou um grotesco;
- Paganismo !
pelo que aprendi nesse dia uma palavra nova. Talvez que, se lhe tivesse dito ir para a procissão do Senhor dos Passos, no Domingo, me
tivesse louvado e levado até lá mesmo acima… Devia ter amigos e petisco à espera dele no
Bizaca pois cortou por uma estrada de terra em direcção à Barrada.
Não me
atrapalhei, meti a direito, passei ao lado da ermida de S. Sebastião (desde
essa recuada data que nem perto dela estivera), subi a chapada, a três quartos
dela comecei a ouvir a orquestra da artística animando a festa e, a cada
pasodoble eu enchia-me de coragem e acelerava o passo, percebendo já a arena
numa maré cheia e a entrada de quaisquer touros na corrida.
Quando finalmente
na vila ouvi a banda apelando à morte do touro na arena, já nem a coisa me
impressionou, estava estourado, tinha as pernas cansadas mas um rasgado sorriso
na cara. Tal qual ontem à noite quando o assalto à ermida acabou e já estava toda a gente no terreiro detrás da escola primária do Telheiro, o santo roubado metido a recato e o pessoal da trupe desmobilizando, dispersando, como na tropa.
A aldeia do Telheiro não me foi nunca
desconhecida ou mero local de passagem, ali viveu o meu tio Tonhico Ferrador,
inda ontem passei frente à casa que fora dele, com um alto e comprido portado à
frente e de onde tantas vezes parti pra o Outeiro, sozinho ou com o Tio
Domingos Papa-Agulhas, que se amancebara com a minha querida tia Aia. Era com eles que eu passava sempre uma, duas ou três semanas de férias no pino do verão.
Cresci muito nesses anos e nessas férias
passadas em família, quer no Outeiro quer em Monsaraz, e em que o fogo-de-artifício
estoirava mais forte que em qualquer outra vila ou aldeia em redor (incluindo a do Telheiro), festas em que num baile do varandil conheci a “Gafanhota”,
a minha primeira paixão e que havia de suscitar em mim p’la vida fora mais
interrogações que paixões.
Igualmente me foi turbulenta a eclosão da barba e a
adolescência, prenhe de dúvidas, parca de certezas. Curou-me a légua a que
distava dali a ribeira da Guadiana, a rapaziada amiga que em cada verão me acompanhava nas brincadeiras e esqueci (desculpai-me, eu era demasiado novo e o tempo de férias não ultrapassava duas ou três semanas), a caça com fisga ou armadilhas, os ninhos, o cansaço
desses percursos tantas vezes palmilhados, mas também esses novos horizontes
tão mas tão diferentes da cidade, a liberdade de movimentos e os mimos da tia Aia ou da avó Inácia.
Lembro ainda o Telheiro, eu com uns quatro anitos, num dia em que com a
tia Fina e a tia Bia fui esperar a camioneta da carreira em que a mãezinha,
muito branca, chegou vinda da operação ao coração, em Coimbra, sim mãezinha
tive saudades, e medo, sim mãezinha eras linda como até hoje não vi, e de ti
recordo-me, não me recordo é de um fim de festa como o de ontem, em que nem uma
prece, uma oração, uma historieta, um discurso, uma explicação.
O cortejo, a multidão, a procissão/caminhada
terminou como começara, como uma lagarta nas couves, sorrateiramente, e assim eu
próprio fiz, meti-me no carro e dei-lhe gás e festa, um CD a preceito, o volume em
alta, nem dei por ter chegado a Évora.
https://caminharmonsaraz.blogspot.com/p/setembro-e-as-nossas-tradicionais.html
https://www.cm-reguengos-monsaraz.pt/locais/ermida-de-sao-sebastiao/