Foram
momentos únicos e o culminar de meses de receios fundados ou imaginados, pelo
que quando a enfermeira mo mostrou sorri, ali estava o fruto da tanta
preocupação, dias, semanas, meses, sem um defeito, todo escuro e narigudo como
o avô paterno, uns pés enormes, já não mo trocariam, fui descansar de semestre
e meio de apreensões, sim, que outro nome dar-lhes ?
Preocupações,
vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o Toninho não me saíra da
cabeça, um primo nado deficiente profundo, daí o alívio agora sentido. Porém passadas duas décadas voltaram a
assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não eram paixões, eram
borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Dizer-vos
quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é-me impossível, pois
não recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição,
e agora isto. Fora essa impressão incomum que me cativara primeiro e depois encantara
para sempre.
Por isso
agora esta dor, esta desorientação dos olhos que falam, que interrogam, que apoiam
mas já não prometem por não o poderem fazer, só Deus poderá julgar, e submeter
ou libertar. Foram essas as janelas da alma a que nos debruçámos ignorantes do
porquê do devir, da sina, do fado, ignorantes do caminho a seguir, ignorando
as borboletas, os apertos no estômago, eu esquecido daquilo em que me viciara,
dos seus carinhos que não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa
natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e agora isto, por esta é que eu
não esperava.
Recordo que quando
o mundo me assustava ela ali estava, inamovível, indispensável, imperecível,
nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me,
e o que ela adorava falar, falar de história, mas poderia ser qualquer outra
coisa, sei lá, matemática, economia, física, ou geografia… eu desta vez
fingindo ouvi-la, escondendo o embaraço, a dor, escondendo esta como escondera a precedente,
camuflando o lamento, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade,
enganando a formalidade que a minha exposição e transparência denunciavam.
Eu
pressentindo aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim desta
história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo,
numa só vontade. Sinto-o sempre que à noite te abraço e o teu respirar cansado
me assusta, pressinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o
porque voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não te sentir preencher como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas
não comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu
colo.
Verdade que
nunca te prestara tanta atenção como agora, é do choque, é a reacção digo eu. E
recordo como vivias, como falavas, tentando monopolizar tudo, aludindo às mais-valias,
cotações e outras equações ligadas à economia, o câmbio, as acções, os
discursos, as vontades. Por vezes nem te ouvia, tal seria naufragar no teu
encanto de sereia, precisamente o que eu não queria. Porém, o que eu gostava ouvir-te
falar de economia … ou qualquer outra coisa, história, matemática, física ou
geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro,
debaixo duma manta curta, destapando ora os pés ora os ombros.
Agora ambos
sabemos e estamos cônscios serem os últimos tempos, dias, semanas ou meses quem
nos porá à prova extraordinariamente apesar das borboletas no estômago, não são
paixões, são borboletas mesmo, apertos, o estômago enrolando-se. O medo de fazer
as malas, arrumar a vida, abalar, reclama o melhor de nós, quer sejamos o
passageiro ou o bagageiro. Foi assim naquele dia, meticulosamente, como
sempre fizeras com tudo arrumavas a vida afim de não deixar assuntos pendentes.
A desorganização exaspera-te, a incapacidade do país aflige-te, a
superficialidade das pessoas consterna-te. Questões de princípio em ti
inculcadas há muito e agora, alheia a tudo que não seja pensado e ponderado ao
pormenor, detestas ainda mais o improviso e como tal acautelas cenários possíveis, buscas
soluções e fazes-me recomendações, a mim, que tudo faço para me subtrair à alçada
da razão retinindo-me na consciência como uma campainha e alertando-me para a ameaça da mortalidade
ou emergência que receio, temo, e atentamente vigio por paradoxalmente me
parecer desta vez a ceifeira não admitir contradição.
Tenho medo,
sinto medo, não irei contar-te de mim, nem tão pouco falar-te de mim, muito
menos queixar-me, sei quão detestas lamúrias, não fazem parte do teu feitio,
nem do meu, como tu interrogo-me, quem, quem irá depois cuidar de mim ? Será
isto egoísmo ? Pela primeira vez na vida forço-me a esconder de ti estes olhos
gotejando lágrimas mas a verdade é que me sinto abafado, e só a ideia de
perder-te me provoca uma insegurança que esta falta de humor tão imprópria de
mim não consegue disfarçar nem esconder por mais que eu tente.
Sim, é
ressentimento e dor, por não conseguir esquecer-te quando tu falavas e eu
ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias à pressa, como sempre,
como tudo, como se o tempo pudesse acabar-se-te, ou partisse eu, a quem a tua
conversa seduzia como feitiço sobre mim caindo e revolvendo numa
inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te relembro focando a
geografia, contando-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos
vias, eu ouvindo e sorrindo nostálgico numa ternura impaciente. Temo
sinceramente jamais te ouvir falar de geografia… ou d’outra coisa, sei lá,
geometria, economia, álgebra, trigonometria …
O futuro
ficou repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me
fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir à percepção paranóica das coisas e das pessoas, agora parecendo-me perigos reais ou situações a
temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias são essas temidas
sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de
humor, a revolta e os ressentimentos, não é por isso que subjugo a dor, iludo a
solidão e recuso a tua morte.
Quantas
noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão suporto
veremos, quanto martírio me torturará ainda não recusarei, tudo que seja
aflição, agonia, tormento e tribulação colocarei na conta do deve e haver desta
catarse que abnegadamente aceitei mas pela qual ergo os punhos ao céu. Sim eu
sei, é o preço da minha condenação à liberdade, como homem estou condenado a
ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu
preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o
homem paga por ser condenado a ficar livre.
Munida de
meras palavras, falaste-me um dia da eutanásia, do livre arbítrio, do conflito
entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas desse equilíbrio entre
o sujeito que eras e o social em que te movias, lembro-me como se fosse agora,
lembro-me que nunca mais no meu espírito houve paz, condescendi e calei-me,
disseste-me com um sorriso:
- A vida é um
palco, sê.
Tornei-me
egoísta,
e desde aí
vivo no medo, de ficar só, de perder-te.