sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

UMA BICA CURTA, O CAFÉ FORTE * por Maria Luísa Baião...


Nunca a tristeza me bateu à porta. Hoje estou triste. Hoje preciso de ti. Não suporto este silêncio ameaçador fazendo o universo parecer em mudança. Nunca pressentira tal, sinto, mais que nunca necessária, a calma a que me habituaste, a calma que me habita a alma, sempre. Mas hoje preciso de ti, de uma bica curta, o café forte, que coloque de novo em movimento este relógio parecendo parado no tempo, para que o tempo se repita e reencontre de novo o rio manso cujo destino traçámos.

Hoje preciso de ti, não consigo viver este espírito. Entre mim e a chuva esta janela, medito, e na memória a espuma das ondas, dias plenos de festa, não razoáveis, mas todos dias de festa que em mim provocam frémitos, ainda. Hoje preciso de ti. Rebusco recordações coloridas, um jantar, uma vela, o brilho da lua, a tua voz quente, sempre. Eu sei meu amor, eu sei, conheço a cadência das horas felizes passadas contigo, afastando sombras do meu coração. Talvez saudade das palavras eloquentes com que nunca me faltaste, dos hábitos de ternura de que me tornei carente.

Hoje preciso de ti, não dispenso a tua presença, só a tua companhia basta, afasta tristezas. Como foi, como sempre foi, ano após ano, não esqueço. Através de ti entendi o mundo, conheci o amor verdadeiro, esse amor que me tornou a vida feliz, me suavizou os dias, me deu a conhecer as carícias da noite. Hoje preciso de ti. Que me passeies terna, lentamente, e me recordes quão queridas tantas promessas já cumpridas. Uma bica curta, um café forte, o brilho das estrelas, a tua voz quente, sempre. Meu amor eu sei, não sei se te diga, se te conte, como foi quando me mostraste o céu, me deste a lua, e me chamaste mulher. Não esquecerei jamais essa revolução tranquila no meu ser, de como aprendi a ler e imitar o voo livre das aves.

Hoje preciso de ti. Aprendi a vida graças a ti meu amor. Ressoam ainda em meus ouvidos os dias em que te tornaste luz, te ergueste como um sol, notei como te apagaste e ainda apagas, sempre que é necessário que o saber brilhe em mim. Sei a que devo este sorriso perene. Como um raio solarengo e luminoso descansaste no meu colo e, na memória, ficou-me o teu rosto, o teu gesto, o prazer de te tocar. Não é um amor em braille, nem a vida é um ballet, mas fazes-me sorrir, pois não recordo dias negros, mas sim e sempre o desejo.

Uma bica curta, o café forte. Que me traga o sabor de coisas passadas e bonitas, que me traga fortes as recordações de ti, de nós. Hoje preciso de ti, revisitar recantos doces, desvendar de novo os mistérios que o fogo encerra, os corpos como marés, fazendo tinir fios de lantejoulas e conchas. Um café forte, a bica curta, julguei precisar de ti hoje. Tornaste-me o que sou, fizeste-me decidida, forjaste-me numa amizade que me preencheu a vida, o passado, o presente, e decerto o futuro. Foste tu quem me ajudou a ser adulta, a quebrar regras, a distinguir, entre outras, cretinice e idiotice no racionalismo ébrio que em mim inculcaste.

Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, e para ti estas palavras. Quero ver-te sorrir também, sempre, tu, eu, nós. Transgredir e rir, rir e transgredir. Assim, sempre, sim e sempre o desejo.

Não preciso de ti, a tua resposta chegou enquanto alinhavava estas linhas. Assunto resolvido. Uma vez mais te agradeço. Tens uma bica curta, um café forte esperando, comigo, agradecida, a gentileza que sempre me votaste, quase religiosamente, ardentemente, sempre. Chamaste-me um dia mulher, e eu mudei. Acordei. Reconheci desde aí capacidades que nem sabia existirem em mim, e se já me agradeceste um dia o que fiz por ti, é hoje a minha vez. Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, o meu coração ainda bate com a cadência de outrora. Já não precisar de ti foi o melhor que por mim fizeste, e, oh meu Deus que encantamento não ser capaz de te dedicar um lamento. Foste capaz de tornar-me a vida assim !


Vem meu amor, aquieta-me, aquieta-te, junto de mim !  

PUBLICADO POR MARIA LUÍSA BAIÃO EM DIÁRIO DO SUL, KOTA DE MULHER 2003