Noratlas da FAP numa operação logistica.
Apesar
de saturados devido a tantas horas de voo encerrados dentro do Noratlas da FAP*
o moral era elevado, constituíamos um grupo coeso de instrutores, formadores e
conselheiros militares em diversas áreas e acreditávamos piamente estar
contribuindo para o nascer e fortalecer duma nova e grande nação, com a qual
repartiríamos a história. Com origem em Luanda o voo não seguiu a rota normal,
aquele voo pretendia-se inexistente, estaria no segredo dos deuses e toda a gente
o desmentirá ainda hoje. Os problemas começaram ao levantar voo com
dificuldade em Luanda, a aeronave carregava além de nós, bidons de combustível,
mantimentos, medicamentos, munições, armamento diverso, explosivos, etc, por isso após
cada escala e descarga o espaço a percorrer para a lenta aeronave se erguer nos ares encurtava,
sobrando espaço para distendermos as pernas.
Evitámos
o rumo e a rede de aeródromos já construídos por razões lógicas e rumámos a Bimbe
no Huambo, saltámos dali para Benguela, seguidamente para Lubango, no Huíla, e muitíssimas
horas depois aterrámos finalmente numa pista improvisada em Xangongo uma
vilazita junto ao Cunene e que vinha sendo flagelada a partir do sul. Ao invés do rumo normal, mais rápido e mais directo Luanda,
Ngunza, Benguela e finalmente Lubango junto a Lobito, zonas já servidas de
aeródromos, ainda que com piso de terra mas permanentemente observadas por
pisteiros, batedores, espiões e traidores de toda a índole, ziguezaguámos pelos céus afim de despistar olhares excessivamente curiosos. Valeu a todos o
Noratlas ser o jeep dos ares e aterrar em qualquer lugar sem dificuldade, nesse
aspecto aquele avião era pior que uma cabra. *
Éramos
jovens, idealistas, e enquanto o dinheiro nos deslumbrasse e fosse caindo o
trabalhinho não ficaria por fazer, podiam confiar em nós, eramos gente de bem e
doravante, p’la primeira vez e solenemente empenhados em defender os pobres, os
fracos e oprimidos das garras afiadas do capitalismo mundial, com assinatura em contrato, especialmente
agora que também na metrópole o capitalismo e o fascismo tinham sido
eliminados, precisamente por nós, os militares.
De
Indiana Jones a Rambo ** todos os espíritos nos animavam, havia em nós uma sede
de acção e uma sede de justiça, todos se sentiam o Super-homem, contudo não
demorou que esse estado de espírito iniciasse um processo de acumulação de
dúvidas, dívidas nunca tivemos e nunca ninguém as teve para connosco embora por
vezes a burocracia ditasse períodos de meses, ou até um ano em que o pré não
caía nas contas, ou em que nenhuma possibilidade tínhamos de tal confirmar e,
não fosse a preocupação diária em mantermo-nos vivos num vespeiro cada vez pior
e tal teria bastado para nos tirar o dormir ou democraticamente termos
declarado uma greve.
Noratlas da FAP aguardando abastecimentos.
Esquadrilha de Noratlas sobrevoando o Cunene perto da foz.
A
democracia é para todos, e como por cá se dizia e diz, “ou há moralidade ou
comem todos” ou então uma versão mais popularucha, “ou todos direitos ou todos
marrecos” os angolanos lutavam pelos seus direitos, nós pelos nossos e cedo
aprendemos haver direitos que só à força se adquiriam, todavia armas e munições
era coisa que não nos faltava, embora nunca tivesse sido necessário resolver
qualquer destas situações que se metiam insidiosamente entre nós a tiro.
A
população do sul de Angola era em simultâneo a menos politizada, menos
arrebanhada para as hostes partidárias das várias guerrilhas ou facções,
movimentos que se congregariam em volta dos partidos, sendo também a menos culta, com pouca ou até nenhuma escolaridade, o que muito havia de dificultar o nosso trabalho
dado nos calhar ser também a mais heterogénea que imaginar possamos, cada um dos formandos com seu dialecto, nem entre eles mesmos por vezes se entendendo. Portanto
poderão imaginar, e aquilatar quão difícil se tornava transmitir-lhes
ensinamentos teóricos, quer técnicos quer práticos.
O
nosso vocabulário teria que ser mínimo e descer a um nível mais baixo que o
deles se nos queríamos fazer entender. O português falado era uma espécie de
resíduo assente nos cérebros ao longo de quinhentos anos de colonização,
incipiente, arcaico, prenhe de deformações, pelo que seria inútil
socorrermo-nos dele, como inútil era o uso de palavras caras como circunspecto,
inferir, inerente, deduzir, e de vocábulos de idêntica índole, mais valeria
falar-lhes chinês numa data em que nem os chineses sonhavam ainda sequer o papel que
viriam a ter em Angola.
Esta
limitação imposta pela linguagem, estendia-se em menor grau à formação prática, ao manejo e
compreensão das armas e da complexa mecânica a elas associada não lhes colocando problemas, nem tão pouco a compreensão do arco balístico descrito pela granada
do morteiro, arma em que poucos deles não seriam peritos, e de um modo inato que
nos surpreenderia. Muitas vezes discutimos entre nós se essa facilidade de
entendimento não derivaria do uso indígena do arco e flecha e da lança, armas
em que de modo empírico digamos, os obrigava desde cedo a compreender e
aprender a relação entre a distância ao alvo e o arco descrito pelo projéctil,
flecha ou lança. Era inegável ter que haver ali uma relação de causa efeito, os
pretinhos não nasciam com pré-disposição para o manejo do morteiro, ninguém
nasce.
Esquadrilha de Noratlas sobrevoando o Cunene perto da foz.
Aos
poucos fomos ganhando a sua confiança, aos poucos fomos ganhando o conhecimento
dos seus dialectos e eles o domínio do português, aos poucos as barreiras entre
nós foram-se esbatendo, então, e só então arriscámos as aulas práticas e o que
isso implicava, sair para o mato, ler pistas, perseguir inimigos, enfrentá-los
investindo ou sustendo os seus avanços, usando e aplicando as teorias
aprendidas e socorrendo-se do conhecimento adquirido nas aulas, flagelando-o e evitando que nos fustigasse, sendo neste
momento que duas verdades indesmentíveis e incontornáveis nos assolaram a nós,
instrutores, a nós parte neutra, a nós advogados do diabo.
Contrabalançando
os problemas de linguagem e de comunicação apontados, e nada despiciendos se
nos lembrarmos como a comunicação é vital debaixo de fogo, ou numa ofensiva
silenciosa e concertada contra o inimigo, estou a lembrar-vos que as nossa vidas
e as vidas dos demais dependiam disso, de nos entendermos e fazermos
compreender, sem o que nada mais restaria que confusão, asneiradas, gritaria,
caos e mortes. Mas, adiantava eu que contrabalançámos essa nada insignificante
desvantagem com a habituação prática à linguagem gestual, linguagem esta que
desenvolvemos até à exaustão em combate e quase nos permitia trocar impressões,
dar e receber ordens e actuar sem um pio, sem abrir a boca, sendo esta mímica o corolário da
camuflagem perfeita e que nos colocava próximos da invisibilidade, tornámo-nos quase invisiveis e infalíveis e, quando em grupo actuávamos na prática como um homem só mas
potencialmente perigoso, destruidor e letal.
Outro
aspecto que ajudou imenso a contrariar as dificuldades de linguagem e comunicação
apontados foi sem dúvida nenhuma a disposição inata desses jovens indígenas
para a luta, caçadores exímios, peritos na camuflagem e na furtividade, muito
nós instrutores aprendemos com eles, em especial no tocante à leitura de pistas
e tudo que fizesse parte da especialidade de batedor. Eram incríveis os seus
dotes, o que os seus olhos viam, e mais incrível demonstrou ainda ser a
explicação dada ou formada a partir de sinais ou pistas por eles observadas.
Eram pisteiros incríveis, um cão não faria melhor e sabemos como os cães e o
seu apuradíssimo faro são eficientes em qualquer busca, análise ou detecção.
Eram absolutamente surpreendentes.
Noratlas parqueado num aerodromo do sul de Angola.
A
par dessas qualidades guerreiras, eram motivados e aguerridos, sim, como se
inda acreditassem que bala de branco não mata preto, ou bala de preto fossa não
matasse preto bom. Eram voluntariosos, perspicazes, inovadores, empreendedores e
eficazes em tudo quanto a guerrear respeitasse, incluindo as mulheres. Diga-se
em seu abono muitas delas não ficarem devendo nada aos homens, tendo vindo uma dúzia e meia delas a ocupar lugares chave ou mesmo a comandar mais tarde destacamentos autónomos que atingiram um
grau de operacionalidade e eficácia de fazer inveja a muita gente.
Guerrilheiras houve que a história de Angola forçosamente terá que respeitar.
Verdade não possuírem, nem elas nem eles consciência ética ou moral idêntica à nossa, eram gente duma cultura diferente, sobretudo de umna cultura submetida a esta guerra havia demasiado tempo o que simplesmente atropelava os valores mais sensiveis devido à premência de sobrevivência. Enquanto a nossa cultura/civilização era balizada por preceitos civilizacionais de séculos, ou milénios, de que a Convenção de Genebra era o vértice, a sua ética ou moral estavam fortemente condicionadas pela sobrevivência, para a pátria mãe, mui viradas para a mãe terra, a mãe natureza, e do ponto de vista ambiental respeitavam-na como ninguém mais, porém eram pouco mais que insensíveis pois estariam mais perto do apelo da selva caso se vissem envolvidos em combate ou numa guerra, áreas em que eram sumamente eficazes, ou, caso se tratasse de enfrentar um inimigo, situação em que seriam implacáveis, irredutíveis e impiedosos, a tal ponto que, gradualmente, fomos obrigados a incutir-lhes respeito pela vida humana, fosse ela de amigo ou de inimigo, vida aliás nascida em África como reza a história, tendo-nos valido o facto de, a par de toda esta "selvajaria" em que nasciam e viviam, serem igual e excessivamente submissos aos poder, aos poderes, aos poderosos, ao branco e ao seu saber, ao branco e ao seu poder. (Continua).
Verdade não possuírem, nem elas nem eles consciência ética ou moral idêntica à nossa, eram gente duma cultura diferente, sobretudo de umna cultura submetida a esta guerra havia demasiado tempo o que simplesmente atropelava os valores mais sensiveis devido à premência de sobrevivência. Enquanto a nossa cultura/civilização era balizada por preceitos civilizacionais de séculos, ou milénios, de que a Convenção de Genebra era o vértice, a sua ética ou moral estavam fortemente condicionadas pela sobrevivência, para a pátria mãe, mui viradas para a mãe terra, a mãe natureza, e do ponto de vista ambiental respeitavam-na como ninguém mais, porém eram pouco mais que insensíveis pois estariam mais perto do apelo da selva caso se vissem envolvidos em combate ou numa guerra, áreas em que eram sumamente eficazes, ou, caso se tratasse de enfrentar um inimigo, situação em que seriam implacáveis, irredutíveis e impiedosos, a tal ponto que, gradualmente, fomos obrigados a incutir-lhes respeito pela vida humana, fosse ela de amigo ou de inimigo, vida aliás nascida em África como reza a história, tendo-nos valido o facto de, a par de toda esta "selvajaria" em que nasciam e viviam, serem igual e excessivamente submissos aos poder, aos poderes, aos poderosos, ao branco e ao seu saber, ao branco e ao seu poder. (Continua).
**
Rambo é o personagem do romance "First Blood", escrito por David
Morrell em
1972 e posteriormente adaptado ao cinema. The Young Indiana Jones Chronicles, narram
as aventuras desse personagem durante sua juventude ao lado de seu pai. A saga
foi editada pela Marvel Comics que já a havia publicado numa série em
quadrinhos, BD, muito antes de em 1983 ter vendido a sua adaptação ao cinema
Nota: Este texto foi extraído de
uma tese de mestrado que o processo de Bolonha tornou inútil e portanto abandonada e transformada em memórias de guerra. Faz agora
parte de um todo muito maior, procura retratar a realidade, não está sujeito às
vicissitudes do politicamente correcto, narra factos, não faz juízos de valor
nem alimenta preconceitos. Branco é branco, preto é preto, negro é negro, black
é black, selvagem é selvagem, cada vocábulo será utilizado pura e simplesmente de acordo com o
narrador e a sua exclusiva opinião quanto à situação em que melhor se insira no
texto.