terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

24 - SENTIDOS E EMOÇÕES...


Meu tio Sofio, já velhinho mas nem tanto como pensarão, convocou toda a família com aviso de recepção, para que não faltássemos à comemoração das suas bodas de platina. Não sei quantos anos ele tem, e muito menos quantos comemora de casado, dado que está decididamente brincando...

O que sei, porque chegou em carta registada, é a data da sua morte.

Meu tio Sofio tem um cancro terminal que alimenta e o devora há vários anos. Desta não é para brincar, os médicos recomendaram-lhe o tratamento das partilhas e heranças enquanto vivo de molde a poupar depois trabalhos aos que ficam. Diligente, ele tem-se esforçado ao máximo, com o mesmo e rasgado sorriso com que sempre enfrentou, palavras dele; - “ a puta da vida”.

Desta vez, para comemorar as bodas e a sua partida próxima, promete uma festa de arromba e uma maldição sobre os faltosos. Não vou arriscar, o fato preto com que casei ainda me serve, servirá para a festa e algum tempo depois para o funário.

Só quem conhece meu tio Sofio acreditará nesta história, a primeira que conto de verdade de uma pontinha à outra. Invejo-o. Não porque vá morrer, mas pelo espírito com que enfrenta a coisa. Bazófia não me tem faltado e sempre me tenho comparado em muitos aspectos ao meu tio Sofio. Deixa ver se na hora H mantenho a mesma firmeza e disposição. Talvez ele tenha perto de oitenta anos, ou nem tantos, mas garanto que já viveu pelo menos centena e meia.

Ainda jovem navegou para Angola em defesa daquela nossa colónia e por lá ficou após ter saído à peluda. Bom mecânico de equipamento pesado, facilmente garimpou lugar na Diamang Dundo, a sociedade mineira da Lunda e a maior empresa da África portuguesa, onde, nesse lugar remoto, se poderiam ver as maiores máquinas mecânicas, com quatro, dez ou vinte rodas. 

Quando militar, e porque os aerogramas do Movimento Nacional Feminino permitiam gratuidade na correspondência e resposta certa, arranjou, como outros magalas da época, uma madrinha de guerra na metrópole. Maria Ana se chamava ela, e nem sei como calhou começarem a corresponder-se sem jamais se terem visto, e sem que a escrita fosse o forte de qualquer deles.

Acho que o Movimento Nacional Feminino incentivava as moças na metrópole a não negarem apoio moral ás nossas tropas no terreno. Acho, e quase tenho a certeza. Conheceram-se por carta, por aerogramas, trocaram fotos, julgo que ainda a preto e branco, e tantas cartas trocaram que esgotaram o baralho e ás tantas iniciaram-se com um outro de tal modo viciado, que lhes mexeu nos sentidos e revirou as emoções. Tão viciado que se enamoraram, pediram em casamento e casaram, por procuração, sem que alguma vez se tivessem visto, tocado ou falado.

Ele lá, ela cá, que só depois de casada rumou a Angola para se juntar ao marido e exercer no Hospital da Lunda, já que era enfermeira de profissão. Foi um casamento feliz do qual resultou o meu primo Sandro, bom rapaz e bom “vivant”, prova provada de que saiu ao pai, pai que antes de todos retornou a Portugal, e, ou antes ou já depois, não recordo, correu mundo como mecânico especializado de equipamento pesado e granjeou imensos conhecimentos, amizades e fortuna pelas Arábias, Israel, Egipto, Jordânia, África do Sul, Estados Unidos e Brasil, entre os que recordo, embora tivesse havido mais.

Mas esta crónica não é sobre os países que meu tio Sofio conheceu, é sobre um casamento com décadas e que a tudo sobreviveu apesar de ter tido origem num modo tão informal. Discussões sempre houve algumas, que eu saiba sem consequências, e divergências nem lembro, pelo menos que tenham sido de fundo. Agora sim é que ninguém cala a minha tia Maria Ana que lhe não perdoa ir-se embora assim sem mais nem menos, sobretudo sem o consentimento dela.

Falei há dias com eles pelo telefone, e juro que nunca os tinha visto tão animados com uma festa. Eu tentando manter uma conversa sóbria e formal, ainda que sem qualquer êxito !

– Berto! Não faltem ouviste ! E traz a tua boina das farras ok ? E não faltem que não vos perdoaremos !

– Deste lado do bocal eu ria para eles e chorava para mim.

Por muito alegre que seja jamais igualarei no espírito e na atitude a displicência de meu tio Sofio perante a vida e sobretudo ante a morte.

E chamavam-lhe na família um mulherengo, imaginem !

Acreditem que é verdade.