Meu tio
Sofio, já velhinho mas nem tanto como pensarão, convocou toda a família com
aviso de recepção, para que não faltássemos à comemoração das suas bodas de platina. Não sei
quantos anos ele tem, e muito menos quantos comemora de casado, dado que está
decididamente brincando...
O que sei,
porque chegou em carta registada, é a data da sua morte.
Meu tio Sofio
tem um cancro terminal que alimenta e o devora há vários anos. Desta não é
para brincar, os médicos recomendaram-lhe o tratamento das partilhas e heranças
enquanto vivo de molde a poupar depois trabalhos aos que ficam. Diligente,
ele tem-se esforçado ao máximo, com o mesmo e rasgado sorriso com que sempre
enfrentou, palavras dele; - “ a puta da vida”.
Desta vez,
para comemorar as bodas e a sua partida próxima, promete uma festa de arromba e
uma maldição sobre os faltosos. Não vou
arriscar, o fato preto com que casei ainda me serve, servirá para a festa e
algum tempo depois para o funário.
Só quem conhece
meu tio Sofio acreditará nesta história, a primeira que conto de verdade de uma
pontinha à outra. Invejo-o. Não
porque vá morrer, mas pelo espírito com que enfrenta a coisa. Bazófia não
me tem faltado e sempre me tenho comparado em muitos aspectos ao meu tio Sofio.
Deixa ver se na hora H mantenho a mesma firmeza e disposição. Talvez ele
tenha perto de oitenta anos, ou nem tantos, mas garanto que já viveu pelo menos
centena e meia.
Ainda jovem
navegou para Angola em defesa daquela nossa colónia e por lá ficou após ter
saído à peluda. Bom mecânico de equipamento pesado, facilmente garimpou lugar
na Diamang Dundo, a sociedade mineira da Lunda e a maior empresa da África
portuguesa, onde, nesse lugar remoto, se poderiam ver as maiores máquinas
mecânicas, com quatro, dez ou vinte rodas.
Quando
militar, e porque os aerogramas do Movimento Nacional Feminino permitiam
gratuidade na correspondência e resposta certa, arranjou, como outros magalas
da época, uma madrinha de guerra na metrópole. Maria Ana se
chamava ela, e nem sei como calhou começarem a corresponder-se sem jamais se
terem visto, e sem que a escrita fosse o forte de qualquer deles.
Acho que o
Movimento Nacional Feminino incentivava as moças na metrópole a não negarem
apoio moral ás nossas tropas no terreno. Acho, e quase tenho a certeza. Conheceram-se
por carta, por aerogramas, trocaram fotos, julgo que ainda a preto e branco, e
tantas cartas trocaram que esgotaram o baralho e ás tantas iniciaram-se com um
outro de tal modo viciado, que lhes mexeu nos sentidos e revirou as emoções. Tão viciado
que se enamoraram, pediram em casamento e casaram, por procuração, sem que
alguma vez se tivessem visto, tocado ou falado.
Ele lá, ela
cá, que só depois de casada rumou a Angola para se juntar ao marido e exercer
no Hospital da Lunda, já que era enfermeira de profissão. Foi um
casamento feliz do qual resultou o meu primo Sandro, bom rapaz e bom “vivant”,
prova provada de que saiu ao pai, pai que antes de todos retornou a Portugal,
e, ou antes ou já depois, não recordo, correu mundo como mecânico especializado
de equipamento pesado e granjeou imensos conhecimentos, amizades e fortuna
pelas Arábias, Israel, Egipto, Jordânia, África do Sul, Estados Unidos e
Brasil, entre os que recordo, embora tivesse havido mais.
Mas esta
crónica não é sobre os países que meu tio Sofio conheceu, é sobre um casamento
com décadas e que a tudo sobreviveu apesar de ter tido origem num modo tão
informal. Discussões
sempre houve algumas, que eu saiba sem consequências, e divergências nem lembro,
pelo menos que tenham sido de fundo. Agora sim é
que ninguém cala a minha tia Maria Ana que lhe não perdoa ir-se embora assim
sem mais nem menos, sobretudo sem o consentimento dela.
Falei há dias
com eles pelo telefone, e juro que nunca os tinha visto tão animados com uma
festa. Eu tentando
manter uma conversa sóbria e formal, ainda que sem qualquer êxito !
– Berto! Não
faltem ouviste ! E traz a tua boina das farras ok ? E não faltem que não vos
perdoaremos !
– Deste lado
do bocal eu ria para eles e chorava para mim.
Por muito
alegre que seja jamais igualarei no espírito e na atitude a displicência de meu
tio Sofio perante a vida e sobretudo ante a morte.
E
chamavam-lhe na família um mulherengo, imaginem !
Acreditem que
é verdade.