Chutei,
como se os corresse a pontapé, uma dezena de livros de diversos autores
políticos com que esbarrava amiúde e vulgarmente me estragavam o dia, a noite,
ou pelo menos o momento. Uma insinuação de gripada que me assaltou
com os frios trazidos e uma neura inconfessável que leva já quase um mês de
duração, quebraram-me toda e qualquer disposição para o que quer que seja, ou
fosse.
A
ameaça de gripada tem sido tratada com mezinhas caseiras, muito medronho, ou
ponche, em canecas bem quentes e cheias, e idas bem cedo para vale de lençóis
de modo a suar bem e expurgar o maligno. A
neura, essa, duvido que algum dia me passe, mas isso são contas de outro
rosário.
Meto-me
na cama normalmente com um livro, adoentado ou não, é hábito velho que duvido
alguma vez abandone, a minha gata não preciso chamar, muitas noites mal me
estendo e já ela está a meter-se pela roupa aconchegando-se a meus pés. É um
amor aquela gata, e como não morri após tantos anos de fumaça, não será ela a
acabar comigo decerto, para mais vacinada e tratada a tempo e horas, cuidado
que nem comigo mor das vezes tenho.
Na
balbúrdia da minha raiva, tirei ainda a tempo do lixo, um livreco que andaria
pelas estantes há uns bons quinze anos, inacreditável mas vero, vos afianço. Não
estivesse eu a extrair dele uma leitura tão ternurenta e confesso nem me
acudiria ao espírito dar-vos conta deste corriqueiro pormenor que,
aparentemente, vos interessará tanto como aos anjinhos.
No
momento em que professores e professoras, mantêm com as ministras uma tão
áspera refrega sobre a avaliação, a descoberta desta obra de Luísa Dacosta, “Na
Água do Tempo” – Diário, Quimera, 1992, e que congrega notas suas, dispersas,
desde os anos cinquenta e creio, de toda a sua vida de docente do ensino
básico, caiu que nem mel na sopa.
Antes
de mais deixem-me que vos diga denunciarem as suas notas uma inteligência,
sabedoria e intuição e sensibilidade extremas, coisa que sobremaneira aprecio
numa mulher, de raro que a coisa me é dada a observar. Dos
homens nem falo, se fosse para vos falar de estupidez ficar-me–ia por mim e
teria sobejamente matéria mais que suficiente, também fui professor e nunca
pensei aligeirar as culpas que carrego.
Mas
esta mulher transpira ternura, maternidade e doçura por todos os poros, o que
deixa transparecer ter antevisto muito, e descrito ainda mais, tanto tempo
antes de muitos de nós, coisas com que por vezes nem sonhámos, o que se torna
simplesmente desarmante. Os
relatos de episódios das suas aulas e da sua vida, modo de ser e mentalidade,
avivaram na minha memória a presença da D. Cristina, minha professora primária
em S. Miguel, ou melhor, Regente, e de quem guardo igualmente gratas
recordações.
Muito
mais que a trampa de livros de pedagogia e didáctica que me forçaram a ler,
professorezecos e zecas que nem consigo lembrar, mais valia que este livro
tivesse sido de leitura obrigatória no decorrer dos cursos de ensino, pois que
não ensina, mostra, não desfia regras e normas, forma, não venera teorias e
abstracções idiotas, educa. Que
pena não ter aqui e agora para a conversa a minha amiga Petra, também ela
professora do básico, e com quem de quando em vez me alargo em conversas sobre
o vasto campo de acção do ensino de criancinhas de sonho, como ela lhes chama.
Voltemos
à Luísa Dacosta, cuja existência ignorava mas agora conheço de cor e salteado,
também graças à Net, Luísa a quem humilde e decerto tardiamente deixo o meu
agradecimento e testemunho, pela pessoa que é, pelo tanto bem espalhado sem
esperar daí mais que a grata recompensa de se saber útil aos demais, pela
consideração que com a sua postura fez reflectir sobre todas as mulheres mas, e
sobretudo, pelo amor inquestionável que fez verter da sua vida e com o qual
tantas crianças terá abençoado.
Eu
dar-lhe-ia nota vinte, nem imagino como, com este modelo de avaliação, seria
ela classificada.
Afinal
esta ameaça de gripada teve para mim uma vantagem notória.
Mas
o resto?
Ai o resto!
Que
merda de vida…