Ainda lembro esse dia de
júbilo em que estalaram foguetes festivos, petardos, embora tenha sido a queda
ocasional mas simultânea de estrelas cadentes que me fizeram pressentir,
através do instinto, no momento em que a conheci, a iminência do destino impondo
ao meu fado outros rumos, imprevisíveis, pois foi como se alguém tivesse
acendido lustres no caminho que para casa piso, ou como se festejando estivesse
toda a vila em que vivia.
Tão intrigado fiquei quando ela se me revelou,
que duvidei de uma linha nunca vista na palma da minha mão e, tantas vezes
mesmo em sonhos ou através de uma simples imagem a contemplei, sem coragem para
algo lhe pedir que, se me acabaram nesse instante os dias de apodrecida
felicidade mas, foi particularmente ao ver as borboletas que acusam de
provocar com um bater de asas furacões no outro lado do mundo que me senti
como que invadido no meu ser, no meu intimo, tendo sido como entrar numa outra
dimensão e ter ficado outro, fiquei outro.
Repetidamente e com prazer revivo
esse momento único, contemplo de quando em vez o céu e acodem-me essas
lembranças dela, em tantas das quais fui levado a pensar se não estaria perante
uma visão de espanto, em que não mais o meu coração até aí aturdido e adormecido teve um instante de sossego, porque passei a cumprir um destino
exclusivamente ditado pelo capricho da rosa-dos-ventos, diariamente dedicado à exaltação da sua glória e em que o silêncio passou a incomodar-me mais que o
alvoroço em que dantes vivia.
Quantas vezes tropeço agora
nas minhas palavras dantes tão ordeiras que me enleiam ou fizeram que a
realidade se enredasse em mim, de tal modo que ouço gaitas trinando como
celebrando esta minha alegria incessante e, não há dia sem que tempestades de
flores me ensopem da cabeça aos pés, a mim que passei a ouvir as rosas abrindo
silenciosamente pela manhã e a ver meninas virgens fazendo renda nas soleiras
das portas quando marcho pelas mesmas ruas às quais dantes nem um minuto de
atenção me prendia e agora até te lembro, formosa como sempre, num hábito de
noviça do mais puro linho, tu oferecendo-te numa inimaginável cama
cuidadosamente decorada para os desaforos do amor e, num gesto em que curiosamente jamais deixas de te persignar antes de para ela subir, razão pela qual deixei de suportar a nostalgia dos tempos passados, visto durante eles ter
morrido em mim a razão última da minha ansiedade e hoje estar pronto a jurar e
garantir que te quero tanto que morreria por ti.
Será caso para dizer andar-me
o pensamento flutuando na luz cristalina da esperança e me perguntar se não
será pequeno o mundo ?
É não é ?
Ignoro se sempre assim foi,
mas sei que é assim agora, assim o vejo neste instante e no meu constante
fluir, tão manso quanto o pode ser um rio.
Compreenderão o facto de
sentir em mim que o tempo foi todo ele transmutado se até o ar sinto menos
pesado em virtude dessa mulher, baixinha sim, mas que eu decreto a mais bela
do mundo e fez com que arrastasse comigo, e desde aí, um rasto de orações que de
um momento para o outro me transtornaram, ao invés de me aclararem o
discernimento, coisa que de todo pareço não dispensar nem precisar, tal a
lucidez que me voga na alma, alma a que algo aguçou o instinto premonitório e
faz com que nem deitado, abanando-me e abandonando-me debaixo das acácias
durma, eu que das sestas era defensor e rei, e pasmo, pois já nem pensando
entre os roseirais e os loureiros me deixa de seduzir a lembrança dessa mulher,
a mais doce, carinhosa e meiga da terra que é como a vejo sempre, como uma
imagem, um sonho, uma visão deslumbrante da mais bela do universo e, em
simultâneo, Cupidos soltando balões coloridos como se com ela cada dia, todos os dias, fossem dias de festa.
Então, eu que nunca fora
crente nem agnóstico, penduro ao peito fiadas de escapulários e sortilégios,
temendo que de um momento para o outro se vá este encantamento no qual vivo e
me dá vida, e me pergunto a toda a hora se será que vivemos em mundos separados
ou dimensões diferentes somente ligadas por estreito e baixíssimo portal, mas
sobretudo por que razão e por que raios só agora te encontrei e por que andaste tantos anos perdida de mim ?