Para
aqui estou, olhando… Olhando e sorrindo a quem por mim passa. Rangendo os
dentes de revolta, ódio, porque me sei diferente. Comiseração, não sei, apenas
que se não na minha vida este acidente…. E eu seria outra, talvez indiferente
ao que agora em mim mora, esta revolta, este ódio, a mim mesma, a toda a gente.
Muita coisa mudou, foi como se o mundo tivesse acabado de repente.
Tantas
as vezes que paro... e penso, qual caminho hei-de escolher, qual o melhor, se
devo seguir o meu instinto, se o não devo fazer, pois sei que, aquele que
escolher, será, e o outro, sempre para esquecer. Não há opções, não há
alternativas.
Olhei-o,
primeiro nele me despertou o corpo hercúleo, o porte erecto, os modos atentos,
o sorriso franco, a beleza do olhar, a simpatia do trato. Não reparou que
observado, continuou airosamente o seu mister, aproximou-se, não de mim, mas de
uma caixa enorme que alguém deixara no meio do salão de exposição e vi-o olhar
em redor, talvez buscando quem lhe valesse, retirá-la devesse, ou ralhado ser
por tal desleixo.
Foi
questão de segundos do olhar à acção, e, num ápice, numa destreza toda ela
beleza, a segurança que só a força permite, baixou-se, pegou-lhe pelos cantos,
e, como quem uma nota musical desenha, ergueu com tanta graciosidade quanta
pode ter um simples gesto, aquele peso enorme até ao ombro, sem soltar um ai,
um gemido, um lamento.
Siderada,
ficaria horas olhando-o porque, nesse minuto vi quanta harmonia lhe animava a
vida, felicidade irradiava do seu rosto belo, o cabelo escovinha, olhos pedindo
avidamente ser beijados, ou eu desesperadamente desejando beijá-los, a tez
morena, o peito largo, os músculos salientes e trabalhados, qual Adónis em cujo
colo me entregaria, apenas para me afundar naqueles lábios carnudos e sedentos,
ou sedenta eu porque para aqui sentada e condenada.
Bruno,
assim se chama o meu enlevo, que nem sabe nem sonha quantas vezes aqui venho agora
e desiludida parto se o não vejo.
Os
ombros ! Que portento !
A
altura meã, que mais lhe acentua os cânones que o corpo denuncia. Uma tara!
Diria dele em meus tempos de menina e moça.
E
não sabe ele nem nunca saberá quanto amor lhe dedico agora que presa e solta,
presa em mim, solta dos constrangimentos, convenções e condicionamentos que
esta moral em mim, em nós, inculcou e repudio num repúdio gritado, qual grito
de socorro e desespero em que me enleio, em que me tolho, que me troa em
pensamento mas nem ousa passar pela garganta e me sufoca.
E
para aqui estou, olhando. Olhando e sorrindo a quem por mim passa. Rangendo os
dentes de revolta, ódio, porque me sei diferente. Comiseração, talvez, quem
sabe, sei só que não devia ter surgido nesta minha vida esse acidente…. E eu
seria outra, talvez indiferente ao que agora em mim mora, esta revolta, este
ódio, a mim mesma, a toda a gente.
É
difícil de um momento para o outro aceitarmos que…
Porque
se a todos vós amo, também a todos vós quero e nada mais anseio, apenas que não
em mim este flagelo, esta vida parada, porque eu também quero viver !
Quero
a vida cheia merda !
Estão
a ouvir-me seus merdas !
Também
eu quero a vida cheia !
Que
se lixem todos !
E
aqueles olhos pedintes, os lábios carnudos e sedentos, o colo em que me
entregaria se pudesse, todo ele prometendo carinho, meiguice, doçura, mil
promessas em que de bom grado me afundaria, mas não, condenada, agarrada a esta
cadeira, e querem o quê fogo !
Sumam-se-me
da vista !
Desapareçam
!
Deixem-me
só fogo !
Que
desesperada e enleada em lembranças já esqueço, recordações esvanecidas, de
momentos que contaram, já não contam.
Mãe !
Mãezinha ! Porque só agora te quero tanto ? Que nem correr para ti posso,
abraçar-te, aconchegar-me no teu seio !
Tento
soltar as asas, voar, procurar de novo algo, impaciente, ansiosa pelo que
espero encontrar porque todos os dias novos esforços são novos desafios, desde
o início, desde a partida, são sempre novos desafios e todos os trajectos são
grandes, agora sei, conheço melhor o percurso da vida, e não devia ser assim,
não devia nunca.
Todos
os dias novos desafios, sempre, e em tudo, tristezas uns, alegrias outros, até
atalhos parecem surgir, com diferentes vias, por vezes uma luz que sigo
sofregamente e cujo caminho não tem, ou nunca mais chega ao fim e, se chega,
quando chega, é ao fim da estrada imprudente que tomei.
Ao
menos tu Bruno, estás aí posso ver-te, sonhar contigo, tocar-te.
Nunca
o soubeste mas, dia houve em que sorrateira, empurrando esta cadeira, fui até à
tua beira e me acerquei de ti, te toquei, e tu solícito, como sempre, como és;
- Em
que posso ajudá-la menina ?
Corri
!
Corri
é força de expressão !
Nem
sei como tanta força repentinamente me acudiu aos braços, de tal modo que em
duas braçadas as rodas desta cadeira galgaram a saída e me vi só, feliz,
contente por me teres visto e falado e por momentos, fui outra, fui como
qualquer outra e, ruborizada, coração pulando no peito, sonhei-te, nesse
momento como em tantos outros, e tens sido o meu sonho o meu elo de ligação à
terra, o meu elo de ligação à esperança, e por dias se me aliviou o desespero.
Cuida-te
Bruno, que essa moto, essa bomba, jamais faça de ti o que fez de mim um carro
lindo...