quarta-feira, 24 de agosto de 2011

85 - MULHER DE TRINTA ANOS * ...




Percorro o cais devagar, e enquanto mantenho um olho na moto à minha frente, pelo canto do outro espreito o Sado, ali ao lado. Longe vai o tempo em que nos obrigavam à sua travessia nos velhos ferrys até Tróia.


Jovem ainda eu deliciava-me então com essas travessias, cavalgando as ondas mansas e buscando reter no rosto os salpicos arrancados às águas pela afiada proa do barco. A travessia era coisa para menos de meia hora, um quinhão de fantasia em que, ancorado nas imagens dos navios amarrados às docas, deixava a imaginação deambular pelos mares das Caraíbas logrando ver um paquete, coisa rara nesse estuário. 


Júlio Verne despertava em mim à simples visão de um submarino se calhava vê-lo, dada a proximidade de uma base da nossa marinha na península. Como disse, tal bastava para que as “20.000 Léguas Submarinas” me acudissem ao espírito.


Grandes petroleiros descansavam nas docas secas da SeteNave, num sono reparador que se prolongava por meses, mas eram as “dragas” que, quando jovem, mais me impressionavam, quais “catrapilas” dos fundos aquáticos, raspando e cavando caminhos no imenso espelho de água, com os seus mecanismos, veros alcatruzes da “nora” de Neptuno, e para mim a maravilha das maravilhas. 


Olhando-as perdia-me no tempo, e, tal como as formigas humanas que nas docas secas rodeavam infatigavelmente os monstros marinhos em hibernação revitalizadora, também os seres humanos que nelas manobravam impressionavam os meus pensamentos de jovem imberbe e cru adolescente. Corpos de Adónis, despidos cintura acima, deixando reluzir ao sol o aço de músculos que invejava, troncos em V, bíceps e peitorais ameaçando abandonar aqueles corpos suados. Numa ocasião dei por mim pensando a minha sexualidade e a licitude da inveja que esses corpos me provocavam. Dúvidas de jovem, que, se desde cedo me assaltaram, também depressa as transpus. Outras ficariam anos esperando resposta, foi-me difícil a adolescência, é difícil a vida. Pior se a não interrogamos, questionamos, provocamos.


De modo que talvez pela inveja desses corpos cedo pendi para o culturismo. Recordo-me vagamente de um dia, na brincadeira, ter imaginado um homossexual naquela equipa de machos, a bordo de uma draga dançando nas águas do Sado. Coitado, pensei, e por aí me fiquei. Cada um no seu mundo, e o mundo das dragas e dragões é o das grandes obras, tendo o meu pensamento derivado para as épicas e heróicas aberturas do Canal de Suez e do Panamá, as dragas ainda meninas à época, ao pé de super-homens que morreram aos milhares para que as obras ficassem.


Regressei pelas complexas e eternas obras do Porto de Sines, um elefante branco em transformação, e deslumbrei-me mirando veleiros na marina, de onde derivei para uma draga acostada ao cais, onde Apolos se atarefavam manobrando pesadas cordas de amarração, suados, musculados, corpos batidos por leve brisa correndo apressada, agitando pavilhões de navios, flâmulas tremeluzentes, mantendo pairando no ar as gaivotas, como magia, e tornando o mundo menos real. 


Uma mulher de trinta anos passeava-se pelo cais, parecendo deixar-se conduzir pelo vento ébrio que de tempos a tempos lhe levantava a saia azul clara e pregueada. Ao fazê-lo descobria-lhe as pernas altas, esguias, bem desenhadas, coxas firmes, bronzeadas, contrastando com o negro rendilhado das calças. Cabelo louro, revolto, a que ela não ligava e mais acentuava a ideia de que a brisa a conduzia, fechada em pensamentos por adivinhar.


Uma horda ululante de dragões largou a draga, de mimos e vernáculo a rodearam mal se aproximou. Cães que ladraram porque lhes invadiram o território, mas cujos latidos se esfumaram nos seus sentidos à medida que ela, indiferente, se afastou. Não se deixou intimidar, altiva, e de sorriso nos lábios seguiu o seu caminho até desaparecer na intensa luminosidade do dia. Os cães calaram-se, voltaram ao cordame, deixaram de ladrar à lua, lua que a técnica conquistara, e onde o homem ensaiara os primeiros passos. Agora promete-se Marte para breve, não se sabe quanto teremos que esperar, mas teremos.


Para onde vamos? Porque será que o homem teima transpor difíceis obstáculos, tão longínquos, descurando a miséria que o rodeia, a pobreza, o analfabetismo... Mas essas parecem metas que não seduzem ninguém. Só queremos o que não temos, desgraças já temos quanto baste. Agora queremos Marte, Vénus, o Sol na eira e a chuva no nabal, estamos vendendo a alma a troco de missangas e lantejoulas.


A draga vai cavando devagar devagarinho, parando, partindo, até que descobriu, enterrado na lama dos fundos, o corpo daquele rapaz que se matou num domingo.** Paro de pensar, paro para pensar, como vão longe estas recordações, como a vida depressa me fez homem, esquecer o culturismo, Adónis, gays, mulheres de trinta anos, homens perdidos, vento, gaivotas, docas, dragas e dragagens.


Só agora reparo como tenho andado ocupado com a vida, demasiado ocupado, tão ocupado que pensar, recordar, parece um sonho lindo, um luxo caro, mas não é ainda uma heresia pois não?

                    
                                Eu, 30 anos depois do passeio relatado...                  

* Nota: texto escrito e publicado no Diário do Sul no ano de 1998 



DOMINGO  **

 

Quando chega domingo,

faço tenção de todas as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida.

 

Há quem vá para o pé das águas

deitar-se na areia e não pensar…

E há os que vão para o campo

cheios de grandes sentimentos bucólicos

porque leram, de véspera, no boletim do jornal:

«Bom tempo para amanhã»…

Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,

pois nesse dia

aqueles que passeiam com a mulher e os filhos

são mais generosos.

Um rapaz que era pintor

não disse nada a ninguém

e escolheu o domingo para se matar.

 

Ainda hoje a família e os amigos

andam pensando por que seria.

Só não relacionam que se matou num domingo!...

Mariazinha Santos

(aquela que um dia se quis entregar,

que era o que a família desejava,

para que o seu futuro ficasse resolvido),

Mariazinha Santos

quando chega domingo,

vai com uma amiga para o cinema.

Deixa que lhe apalpem as coxas

e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,

quando ela era ainda muito menina…

Para eu contar isto

é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!

À hora negra das noites frias e longas

sei duma hora numa escada

onde uma velha põe sua neta

e vem sorrir aos homens que passam!

E a costureirinha mais honesta que eu namorei

vendeu a virgindade num domingo

- porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

 

Há mais amargura nisto

que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio,

que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,

eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.

E esta era uma das coisas mais belas

que um homem podia fazer na vida!

Então,

todas as raparigas amariam no tempo próprio

e tudo seria natural

sem mendigos nas ruas nem casa de penhores…

 

Penso isto, e vou a grandes passadas…

E um domingo parei numa praça

e pus-me a gritar o que sentia,

mas todos acharam estranhos os meus modos

e estranha a minha voz…

Mariazinha Santos foi para o cinema

e outras menearam as ancas

- ao sol

como num ritual consagrado a um deus! –

até chegar o homem bem-amado entre todos

com uma nota de cem na mão estendida…

 

Venha a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim resta:

e eu fique rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras:

venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas

como um louco maior que a sua loucura…

O rapaz que era pintor

aconchegou-se sobre a linha férrea

para que a morte o desfigurasse

e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica

de revolta contra o mundo.

Mas como o rosto lhe estava intacto

vai a família ao necrotério e ficou aterrada!

 

Conheci-o numa noite de bebedeira

e acho tudo aquilo natural.

A costureirinha que eu namorei

deixava-se ir para as ruas escuras

sem nenhum receio.

Uma vez chovia

até entrámos numa escada.

Somente sequer um beijo trocámos…

E isto porque no momento próprio

olhava para mim com um propósito tão sereno

que eu, que dela só desejava o corpo bem feito,

me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,

que era aquela serenidade

de pessoa que tem a vida cheia e inteira.

No entanto, ela nunca pôs obstáculo

que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.

Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…

(ela está sempre com sujeitos decentes)

e quando nos fitamos nos olhos,

bem lá no fundo dos olhos,

eu que sou homem nascido

para fazer as coisas mais heróicas da vida

viro a cabeça para o lado e digo:

- rapaz, traz-me um café…

O meu amigo, que era pintor,

contou-me numa noite de bebedeira:

- Olha,

quando chega domingo,

não há nada melhor que ir para o futebol…

E como os olhos se me enevoassem de água,

continuou com uma voz

que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:

- …no entanto, conheço um homem

que ia para a beira do rio

e passava um dia inteirinho de domingo

segurando uma cana donde caía um fio para a água…

…um dia pescou um peixe,

e nunca mais lá voltou…

…O pior é pensar:

que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre

comos e fosse uma festa?... –

O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,

tão rara e certa e maravilhosa

que deslumbrado se matou.

 

Pago o café e saio a grandes passadas.

Hoje e depois e todos os dias que vierem,

amo a vida mais e mais

que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,

que vá par ao cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…

E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,

que parem ao sol

e joguem um tostão na mão dos pedintes…

E a menina das horas longas e frias

continue pela mão de sua avó…

E tu, que só andas com cavalheiros decentes,

ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,

fita-me bem no fundo dos olhos,

fita-me bem no fundo dos olhos!

 

Então,

virá a miséria maior que todas

secar o último restolho de moral que em mim resta;

e eu ficarei rude como o deserto

e agreste como o recorte das altas serras:

e virá a ânsia do peito para os braços!...

 

Domingo que vem,

eu vou fazer as coisas mais belas

que um homem pode fazer na vida!

 

**Manuel da Fonseca

 

                                                                  

 

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

 

                                                                   

 

Adenda em 10/06/2009  às 17h45m:

 

Domingo (excerto, por Mário Viegas)

Domingo (por Mário Viegas, som deficiente)