Percorro o cais devagar, e
enquanto mantenho um olho na moto à minha frente, pelo canto do outro espreito
o Sado, ali ao lado. Longe vai o tempo em que nos obrigavam à sua travessia nos
velhos ferrys até Tróia.
Jovem ainda eu deliciava-me então com essas travessias, cavalgando as ondas mansas e buscando reter
no rosto os salpicos arrancados às águas pela afiada proa do barco. A travessia
era coisa para menos de meia hora, um quinhão de fantasia em que, ancorado nas
imagens dos navios amarrados às docas, deixava a imaginação deambular pelos
mares das Caraíbas logrando ver um paquete, coisa rara nesse estuário. Júlio Verne despertava em mim à
simples visão de um submarino se calhava vê-lo, dada a proximidade de uma
base da nossa marinha na península. Como disse, tal bastava para que as
“20.000 Léguas Submarinas” me acudissem ao espírito.
Grandes petroleiros descansavam
nas docas secas da SeteNave, num sono reparador que se prolongava por meses,
mas eram as “dragas” que, quando jovem, mais me impressionavam, quais
“catrapilas” dos fundos aquáticos, raspando e cavando caminhos no imenso
espelho de água, com os seus mecanismos, veros alcatruzes da “nora” de Neptuno,
e para mim a maravilha das maravilhas. Olhando-as perdia-me no tempo, e,
tal como as formigas humanas que nas docas secas rodeavam infatigavelmente os
monstros marinhos em hibernação revitalizadora, também os seres humanos que
nelas manobravam impressionavam os meus pensamentos de jovem imberbe e cru
adolescente. Corpos de Adónis, despidos
cintura acima, deixando reluzir ao sol o aço de músculos que invejava, troncos
em V, bíceps e peitorais ameaçando abandonar aqueles corpos suados. Numa
ocasião dei por mim pensando a minha sexualidade e a licitude da inveja que
esses corpos me provocavam. Dúvidas de jovem, que, se desde cedo me assaltaram,
também depressa as transpus. Outras ficariam anos esperando resposta, foi-me
difícil a adolescência, é difícil a vida. Pior se a não interrogamos,
questionamos, provocamos.
De modo que talvez pela inveja
desses corpos cedo pendi para o culturismo. Recordo-me vagamente de um dia, na brincadeira, ter
imaginado um homossexual naquela equipa de machos, a bordo de uma draga
dançando nas águas do Sado. Coitado, pensei, e por aí me fiquei. Cada um no seu mundo, e o mundo
das dragas e dragões é o das grandes obras, tendo o meu pensamento derivado
para as épicas e heróicas aberturas do Canal de Suez e do Panamá, as dragas ainda
meninas à época, ao pé de super-homens que morreram aos milhares para que as
obras ficassem.
Regressei pelas complexas e
eternas obras do Porto de Sines, um elefante branco em transformação, e
deslumbrei-me mirando veleiros na marina, de onde derivei para uma draga
acostada ao cais, onde Apolos se atarefavam manobrando pesadas cordas de
amarração, suados, musculados, corpos batidos por leve brisa correndo
apressada, agitando pavilhões de navios, flâmulas tremeluzentes, mantendo
pairando no ar as gaivotas, como magia, e tornando o mundo menos real.
Uma mulher de trinta anos
passeava-se pelo cais, parecendo deixar-se conduzir pelo vento ébrio que de
tempos a tempos lhe levantava a saia azul clara e pregueada. Ao fazê-lo
descobria-lhe as pernas altas, esguias, bem desenhadas, coxas firmes,
bronzeadas, contrastando com o negro rendilhado das calças. Cabelo louro, revolto, a que ela
não ligava e mais acentuava a ideia de que a brisa a conduzia, fechada em
pensamentos por adivinhar.
Uma horda ululante de dragões
largou a draga, de mimos e vernáculo a rodearam mal se aproximou. Cães que
ladraram porque lhes invadiram o território, mas cujos latidos se esfumaram nos
seus sentidos à medida que ela, indiferente, se afastou. Não se deixou intimidar, altiva,
e de sorriso nos lábios seguiu o seu caminho até desaparecer na intensa
luminosidade do dia. Os cães calaram-se, voltaram ao
cordame, deixaram de ladrar à lua, lua que a técnica conquistara, e onde o
homem ensaiara os primeiros passos. Agora promete-se Marte para breve, não se
sabe quanto teremos que esperar, mas teremos.
Para onde vamos? Porque será que
o homem teima transpor difíceis obstáculos, tão longínquos, descurando a
miséria que o rodeia, a pobreza, o analfabetismo... Mas essas parecem metas que não
seduzem ninguém. Só queremos o que não temos, desgraças já temos quanto baste.
Agora queremos Marte, Vénus, o Sol na eira e a chuva no nabal, estamos vendendo
a alma a troco de missangas e lantejoulas.
A draga vai cavando devagar
devagarinho, parando, partindo, até que descobriu, enterrado na lama dos
fundos, o corpo daquele rapaz que se matou num domingo. Paro de pensar, paro para pensar,
como vão longe estas recordações, como a vida depressa me fez homem, esquecer o
culturismo, Adónis, gays, mulheres de trinta anos, homens perdidos, vento,
gaivotas, docas, dragas e dragagens.