sexta-feira, 19 de agosto de 2011

84 - O LIVRO QUE NUNCA LI ..........



A vida é por vezes tramada, como neste caso insólito, em que tanto fez por mim um livro que nunca li, e também precisamente por isso, eu seja hoje quem sou, e como sou. Estávamos em finais da década de sessenta ou princípios da de setenta, festejava-se o “Dia do Lusito”, em que por todo o país a Mocidade Portuguesa promovia essa habitual encenação do Estado Novo.

Eu terminava nesse ano a minha quarta classe, e depois das cerimónias da praxe, deixaria um ramo de flores no padrão dos “Descobrimentos”, ali à zona da Nau e cantaria o hino nacional de braço estendido, bem à moda nazi, marchando, bem alinhado, rumo ao antigo Liceu (hoje Universidade), onde no respectivo ginásio (agora um moderno anfiteatro) tiveram lugar as solenidades do dia. Não o sabia, só o descobri quando reclamaram a minha presença no palco, tinha sido considerado, ou indiciado para receber o prémio do aluno mais aplicado, (obrigado professor Pulga) pelo que, juntamente com os melhores alunos das restantes escolas desta cidade, fui contemplado com um exemplar do tal livro que nunca li, “O 2º Cerco de Dio”, rubricado pelo autor, que nunca vi nem conheci, como não recordo quem, para além do meu professor, me tenha cumprimentado ou dado os parabéns.

Fiquei orgulhoso, desci as escadas impando de glória, e só no regresso a casa, na companhia de um colega que recebera as “Aventuras de Tintim”, o Ananias Quintano, constatei que o livro nada me dizia, e mais indicado seria para gente como o Prof. Vitorino Nemésio, cuja conversa na TV de igual forma eu não entendia minimamente. Mas é curioso como tanto fez por mim um livro que nunca li, aquele prémio, aquele louvor, teve o condão de me dar tantas vezes coragem para superar o insuperável. 

E tantas foram as vezes em que conquistado o “Quadro de Honra” me senti eufórico e redobrei a força anímica para prosseguir, quantas as que me levou a não desanimar quando algumas vezes as pautas acusavam num vermelho bem carregado; “reprovado”, sinal de que ia por mau caminho e havia que arrepiar, sinal que me fazia cair em mim e meditar sobre o que andava fazendo, sinal ou expressão que nunca me causou os traumas ou desvios emocionais que, alegam agora os novos pedabobos, ameaçam as criancinhas. Chumbava em Julho? Repetia em Setembro, era só uma questão de trabalhar mais e melhor, como tudo na vida era uma questão de trabalho, e quando me sentia vacilar lá me vinha o livro à memória; se foste capaz uma vez, és capaz cem vezes, o remédio é sempre o mesmo, trabalho trabalho trabalho e muita aplicação. Resultou.

Mas porque não li o livro, perguntar-me-ão? Primeiro porque sendo uma criança, um jovem, não me senti minimamente atraído por um livro para adultos, depois porque já homem não considerei o dito com qualidade suficiente que justificasse a sua leitura. Mas foi no percurso da criança até ao homem que o livro mais me ensinou; ensinou-me o porquê de certos prémios, o que era o Estado Novo, o fascismo, o nazismo, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, a PIDE, o corporativismo, o colonialismo, o partido único, a guerra, a subversão, a sublevação, a subserviência, a emigração, a censura e a repressão. Conheci os rostos que emoldurados na parede da sala de aulas pensavam por todos nós, que velavam por todos nos; o Senhor Presidente do Conselho e o Senhor Presidente da República. Aprendi o que era a esperança e a democracia, a diferença entre elas e tirania ou vilania, foi por isso que, como muitos portugueses, assisti com ironia ao desmoronar desse mundo tão caricato quanto as razões de quem o mantinha de pé.

Curiosamente um livro de história que nunca li traçou o meu percurso, licenciei-me em História e em Ciências Sociais na mesma casa que serviu de palco à cena relatada. Nunca o li, mas já o folheei, não é história, nem sequer um romance histórico, antes um rol de subjectivas vãs e vagas ideias de quem pretendeu com ele dotar o país de glórias pelas quais não passou, nem no tempo dos Castros e Albuquerques, nem mesmo no tempo áureo do Salazarismo, que a todos tentou sacrificar face ao poderio militar da União Indiana, que nos reclamara o que era seu em 1956.

Está na estante há tantos anos que para mim não é já um livro, é uma taça, um troféu, a seu lado, e sobre quem cai já a mesma desconsideração e lástima, obras de políticos actuais, vivos e activos ou reformados, mas igualmente condenados na minha escala de valores a serem fuzilados numa urgente oportunidade.