Curioso, apressei-me a desvendar o mistério,* retirei
o cartão do meu telemóvel, inseri o cartão da saqueta, cliquei o meu PIN, não
deu, cliquei um PIN inscrito a lápis na frente da saqueta e deu ON
E agora ? Tinha que haver ali um número qualquer,
onde ? Comecei pela letra A, aliás a única com algo guardado na memória,
Armando Noronha, Dr, assim mesmo, foi longe o Bicho pensei, e marquei
Atendeu-me uma voz simpática, de timbre jovem e
sotaque muito muito levemente brasileiro
- Ligue-me ao Dr Bicho, Noronha Bicho por favor
- Alô ! Boa tarde ! Sou a Magda ! A esposa, ele não
está, foi buscar meninos no colégio, vou tomar nota de número de seu celular e
ele depois liga p’ra você tá ? Como é mesmo seu nome ? Tá ! Tudo certinho ! Anotei
! Beijinho ! Ele vai ligar p’ra você logo que chegar tá bem ? Chao !
Merda, pensei. Maior agora o mistério
Passei o resto do dia trocando os cartões SIM mas do
Bicho nem sinal, ainda tentei ligar o número dele através do meu telemóvel mas
ou nem atendiam ou desligavam logo como se a chamada caísse
Finalmente, ao terceiro dia de tentativas houve um
sinal, uma chamada caíra enquanto eu estava com o meu cartão inserido, liguei
de volta e lá estava ele, a voz pausada, calma, parecendo mais predisposto a
responder que a indagar, mais tarde percebi porquê, no momento apenas balbuciei
um olá Bicho, sou o prof Baião, bons ouvidos te ouçam (logo eu que até ouço mal)
fiquei curioso e...
E mais nada, atalhou-me sim sei, disse, gostava de
vê-lo, de lhe agradecer, mas a vida tolhe-me, ando há anos para o contactar, o
prof nunca vem a Lisboa ? Eu gosto pouco
de ir aí, o prof sabe, não deixei aí família, e se tivesse talvez fosse pior,
isso aí não me deixou boas recordações, pago para não encontrar de frente certa gente …
Mas que me deves que mereça um agradecimento assim Bicho ? Fiz o meu papel, nem menos nem mais que a minha obrigação
Na altura saberá prof, guarde este número e
contacte-me somente por ele, não atenderei outros
números, se, e quando vier a Lisboa contacte-me com antecedência, se tiver
problemas com o transito mandarei buscá-lo onde estiver, agora desculpe-me,
tenho que desligar, chamam-me da urgência. Adeus, abraço
Adeus Bicho, és médico ? Adeus, um abraço
Já não me ouviu, será que é médico ? O mistério
adensava-se cada vez mais
Dentro de um mês a minha Luisinha teria que
deslocar-se a uma clínica na Reboleira afim de se submeter a uma cintigrafia,
esse exame demora normalmente entre cinco a seis horas, aproveitaria para
desvanecer o mistério do Dr Noronha Bicho
Assim fiz, e aproximada a data concertei com ele,
vivia em Cascais, na Qtª da Marinha, deu-me as indicações necessárias, pediu-me
solene e encarecidamente que destruísse e deitasse no lixo o cartão SIM
utilizado, depois me facultaria um outro e, eu vesti a pele do Dr Watson ou a
de Sherlok Holmes, já nem sei, e esperei que o momento chegasse
E chegou
Ainda que a cena se tenha passado há bem mais de uma boa meia dúzia de anos, tenho tudo bem presente no meu espírito, e a estupefacção ainda me não
passou
Premi o botão à entrada da quinta e uma voz pediu-me
que me colocasse bem em frente ao olho da câmara assinalada a vermelho por cima
da campainha
- De acordo com a lei bla bla bla, será identificado
visualmente e a sua imagem guardada durante cento e vinte dias, caso não dê o
seu acordo apresentamos-lhe as nossas desculpas e solicitamos se afaste,
obrigado
Coloquei-me em frente daquele olho de Big Brother,
ouvi um clique de máquina fotográfica, e passado um minuto ou dois os portões
abriram-se silenciosa e automaticamente
Entrei, percorri o lugar com o olhar, 550 a 650 à esquerda, segui
as setas e facilmente dei com a vivenda dele, árvores, lugares de
estacionamento, dois pisos, piscina, não vivia nada mal o Bicho, viver mal é
ser prof pensei
Eu estava alerta, mirando e remirando tudo, não era
medo, era curiosidade, à porta um Mercedes descapotável, cinza metalizado,
ao lado um BMW escuro, pisando a relva um Jeep modesto e de modelo antiquado
que nem saiu cá, e, bingo ! Nele uma chapa de matrícula com menos de seis meses,
afinal eu não esquecera o que ensinara, os meus olhos e sentidos continuavam
apurados
Vou poupar-vos a pormenores, porque isto não é o
guião de uma novela, mas o Bicho não vivia luxuosamente, vivia principescamente
E não, respondeu-me que não era médico, calhou tê-lo
apanhado com um dos meninos na urgência, fora operado a um bracito que partira,
estava tudo a correr bem ! E sorriu !
Todas as suas competências eram informais, não tinha
nenhum diploma, mas seguira o meu conselho e, afirmou, possuía bom olho e bom
ouvido, era bom com as mãos, aprendia facilmente, e nas muitas prisões que
percorrera angariara conhecimentos operacionais e aprendera truques básicos que
nem nas “Novas Oportunidades” se adquiriam
Todos os seus conhecimentos eram informais, todavia
tinham-lhe permitido adquirir as competências necessárias e exigidas, hoje
cobrava e geria, partilhando informalmente esses saberes, e disporia, segundo a
minha percepção, de uma vasta equipa que sem contemplações controlava de forma
exigente, e sublinhou bem mais exigente que eu teria sido para com ele, seria mesmo
perito em gestão de pessoal e empresarial deduzi eu… pois …
Serviu dois copos, perguntou se com gelo ou sem gelo,
abotoou trinta vezes em meia hora os botões de punho em ouro, pareceu-me um indivíduo
acossado ou sempre alerta, mas também seguro de si e prudente, talvez em
demasia
Vi a Magda e os meninos quase de relance, vi riqueza,
muita riqueza, abastança, luxo, meia dúzia de telemóveis de varias cores e
baratuxos que nunca deixaram de tocar e ele nunca atendeu enquanto esteve
comigo, vi um homem culto, bem falante, de linguagem correctíssima e rica, bons
dentes, sorriso simpático, gravata de seda como só tive no dia em que casei,
câmaras de segurança e alarmes por toda a casa, uma acolhedora e bem provida biblioteca,
na mesa um pequeno projector de cinema e outro de slides, ainda lhe disse entre
desculpas e gracejando se não andaria fugido, que não, que era cumpridor e
cauteloso, prevenia, não remediava, e eu que por momentos o chegara a pensar
médico ou diplomata… pois… mas em negócios sujos não o imaginava, sabia-o
visceralmente contra a droga por exemplo, como o sabia um defensor profundo da
não violência
Serviu os whiskies e agradeceu-me tudo quanto por ele
fizera, e eu, com cinquenta anos ainda corei, elogiou-me como o melhor prof que
tivera, lembrei a mãe, professora, e lhe morrera quando criança, de copo na mão
alongou-se em argumentos que nem comentei, os professores estariam em Portugal beneficiando
de consideração que nem mereciam, conhecera imensos, na generalidade convencidos mas ignorantes, sobretudo extremamente incultos, até que, reparando no meu retraido embaraço e enfado, bateu as palmas e hora de almoço !
Sentámo-nos num dos melhores restaurantes de Cascais “A
Pastorinha “, que pensei fosse dele tal a solicitude com que nos acudiram desde
a entrada, enquanto à mesa de garçons a gourmets a clientes passantes todos se
lhe dirigiam com inusitada deferência, perguntei se era patrão daquela gente e
tive como resposta um lacónico dirijo cerca de cinquenta homens por quem poria as mãos no lume, mas não estes, aqui são só amigos, alguns mais atenciosos que outros,
uns devem-me grandes favores outros nem tanto, lembrei-me de Pedro Caldeira que penso era dali, à
despedida bateu de novo e levemente as palmas e um chefe de mesa solícito trouxe um
enorme embrulho ricamente decorado com fitas douradas e lacinhos vermelhos
Prof isto não paga a minha gratidão mas é uma
lembrança desinteressada, colocou-me o braço sobre os ombros e conduziu-me à
porta, despedimo-nos, um garçon colocou a prenda na mala do meu carro, acenei,
ele acenou, não se esqueça do almoço entre nós cada vez que vier a Lisboa,
abraço, abraço, arranquei, parei mil e quinhentos metros adiante curioso por
saber com o que fora prendado
Duas enormes garrafas de whisky Chivas Regal 12 anos
cujo preço na minha terra nem sabem, meia dúzia de copos em cristal debruados
com filete de ouro, no Natal passado deixei cair um deles e estilhaçou-se em
mil pedaços, aproveitou-se o filete dourado, vendi-o na ourivesaria por sair muito caro
transforma-lo num fio ou em anéis que nem uso, graças a ele passei as ultimas
férias em Palma de Maiorca e ainda trouxe dinheiro ...
Entrevi, ou adivinhei a sua vida. Não foi difícil, neste país, esforço e trabalho não garantem nadinha, por curiosidade e como distracção tenho tentado leituras sobre aventuras,
furtos, como aprender a contornar a electrónica, tentei mesmo adquirir vídeos
ou CD’s sobre golpes, assaltos, népia…
Tentem vocês e se conseguirem digam-me. A vidinha
está ficando impossível de ser vivida
Apanhem-no se forem capazes
* Nota: esta crónica vem na sequência e dá terminação à
história começada no texto nº 162, “ PETITS VOLEURS “