sábado, 9 de novembro de 2013

168 - ESTE ANO UMA VEZ MAIS..........


 Ela entrou quando eu erguia a bica, vinha despenteada, melhor, desgrenhada, fralda da camisa por fora das calças, amarrotadas e, claro, não fui o único a olhar, toda a gente a mirou de alto a baixo…

É evidente que, quando o Rui se abarbatou com a professora de português, ou ela com ele melhor dizendo, o burburinho estalou na escola e depressa se espraiou à cidade. A beleza da professora Marina já a trazia nas bocas do mundo por tudo quanto era café pastelaria padaria talho ou mercearia, um espírito jovem aberto e cosmopolita como o dela não poderia jamais medrar numa cidade de província, e as más línguas davam azo ao que agora designamos por assédio de menores.

… De alto a baixo percorri eu a pauta com os olhos esperançados numa hipótese que julgava bem remota, que ela tivesse passado depois de uma oral daquelas. Para meu espanto passou ! E mais “espautado” fiquei quando vi a nota com que passara ! Eu a tudo respondera mais ou menos a contento e sacara um onze suado, ela, que passara o tempo a gaguejar sem acertar deleitava-se ! Um catorze !

Rui era um latagão, menor, é certo, devia andar pelos quinze ou desasseis, mas um latagão a cuja beleza terá sucumbido a alfacinha que se escondia na libertina Marina, toda ela hormonas aos saltos que nem pipocas num tacho, e a desgraça deu-se por artes e graça de Deus, temos que o admitir, pois só o Senhor poderia ter feito com que os caminhos daqueles dois resultassem numa rota de colisão.

Um catorze… aquilo não era normal, nem normal fora a passagem dela do primeiro para o terceiro examinador do júri, algo se passara ali diante dos meus olhos que eu não entendera. Corri, logo que deram as orais por terminadas para o cesto dos papéis da sala, o papelinho que na mesa andara de mão em mão jazia amarrotado, desenrolei-o atabalhoada e apressadamente, e pasmei :

- “quando chegar a vez dela passa-me a loura das mamas grandes“, sic…

Embatuquei.

Se de tudo isto agora me lembro é porque o S. Martinho se aproxima arrastando consigo a infinita tristeza que nesta quadra sempre me invade. Longe vão os anos em que a malta, e entre a malta esquecida relembro em especial o Xico Grou e o Gilberto Teigão, ceifados ao nosso convívio, um numa picada da Guiné, o outro num acidente no Alentejo, quando eu sempre pensara que num confronto a céu aberto com aqueles que de Angola hoje nos põem em sentido.

Ainda os lembro a todos como se hoje fosse, o Xico Grou de permanentes ramelas nos olhos, tinha uma qualquer irritação crónica nas pálpebras, de risadas fortes, grossas, acelerando uma Sachs Lebre branca que volta não volta surripiava ao velho. O Teigão arvorando feições robustas, baixo e entroncado, e o mesmo sorriso fácil que ainda hoje vejo na face da irmã Margarida cada vez que a olho. Foi o primeiro de nós a ter carta de condução, o que o tornava invejado e admirado, e também ele de quando em vez aparecia com o carro do velhote.

Eu devia andar pelos doze ou treze anos, catorze no máximo, e qualquer deles não teria mais que dois ou três além dos meus, todos no secundário da escola de Stª. Clara.

Embatuquei porque lembrei o longínquo dia em que se me acabou a mama. Num recanto da livraria acumulavam-se os livros de banda desenhada, Capitão Marvel, Flash Gordon, Zorro, Tio Patinhas, Pato Donald, Pateta, Mandrake, Cisco Kid, Tintin, Fantasma, o Mundo de Aventuras, a coleção Seis Balas, todos. A malta chegava-se ali, os de trás tapavam os da frente que por sua vez surripiavam as revistas a granel. O senhor Cabeça, que bem estranhava o sumiço que elas levavam, sem contraponto na caixa registadora, ficou à coca.

Virou-me num repelão, num repente levantou-me as abas do quispo e os braços, as revistas caíram no chão ao mesmo tempo que na minha cara um valente estaladão. Fugi dali a correr, envergonhado, e nunca mais fui capaz de roubar nada. Até hoje…

Juntávamo-nos aos magotes no recreio dessa velha escola, o Fernando Maudslay contando anedotas, o maralhal apinhado nas escadarias do ginásio em redor dele, o Mendes (alto, forte, de Montoito, e que nunca mais na vida vi) permanentemente interrompendo-o e o coro calando-o num vozeirão crítico, enquanto a vinte metros o Neves (sim o tal que passados nem meia dúzia de anos se enforcou e cuja irmã, que chegou a casar com o “Vasculho”, se enforcaria anos depois) mas dizia eu, o Neves acelerava a sua Flandria azul numa competição ensurdecedora com o Leitão, numa Pusch amarela e por aqueles dias alvo da cobiça de todos. O José Luís Pacheco esse agarrava-se ao saco das marmitas do almoço não fosse algum mais brincalhão entornar-lho.

Jogava-se no pátio e olhavam-se as garinas na alta varanda da escola, os mestres Brito e Rui sempre por ali aparando os excessos e o padre Alegria dando sermões e distribuindo chapadões por dá cá aquela palha e por tudo e por nada que era como nos convencia e levava ao carreiro.

Questões de fé.

Eram outros os tempos, em que o Raul e o Couvinha, o outro, que ou ao portão da escola para os rapazes e dentro do ateliê de mestre Paulino, e já nem sei ao certo se divago ou se o ateliê era mesmo ali à rua do Alfeirão, ou então ia tudo de cambalacho para a FNAT, brincar e jogar que era o que melhor sabíamos e fazíamos.

Eram como disse tempos em que esses meninos já nos deslumbravam com os seus desenhos psicadélicos, o Arrais esse é que só aviões, e o Espada, já muito assumido e ainda mais responsável mas sempre atazanando quem lhe chamasse Zé Galo.

Até hoje. Disse eu um dia. Durou apesar de tudo até hoje. Estava farto dos ciúmes parvos, inconsequentes e da inveja tola em que ela se afogava, da pretensa propriedade que parecia ter sobre mim. Eu não podia cagar fora do penico, e o penico era bem pequeno. Foi-se. Foi-se desta para melhor. Nem queiram saber como me sinto aliviado.

Foi-se. Diria que exagerou em meter a foice em seara alheia. Cultivo a individualidade com o rigor de um boticário encerrado na sua capelinha e, se me pisam os calos, reajo pior que o pior ácido ou reagente.

A gente cá somos assim.

Não sou único. Não, não sou o único. Alguns de nós são assim.

O 25 de Abril havia de rebentar, mas não antes que uns na Holanda, outros na França, e até no México calculem !

Claro que a vida não parou, mas não seria a mesma sem eles e os resquícios que cada um plantou.

Não recordo cada uma das trezentas e setenta e duas anedotas que o Fernando Maudslay contou numa manhã e de seguida, mas já não esqueço o seu ar feliz, os seus ares felizes digo, quando ele e a Tininha atravessavam a Praça do Giraldo aos beijinhos, num namoro que todos teriam achado mais inconcebível que o da professora Carina e do seu aluno Rui Linhan e que acabou, adivinhem, como acabavam todos os contos de fadas antes do 25 de Abril.

Muito antes da ciência ter descoberto hormonas e feromonas já eu as sentia e via pular diante de mim bailando e encantando.

Vem aí o S. Martinho, hei-de lembrar com saudade o Xico Grou e o Teigão, o Neves, e tutti quanti em mim deixaram marcas, a Lúcia, o Palma, a Adelina, o Rosmaninho, a Matilde, o Fadista, a Teresa, a Conceição, o Zé Manel cheiroso, o Fan Fan, o Valverde e o Paitio.

Assim ou assado. Tanto faz. Para o que é já basta assim. Antes assim que que mal acompanhado. Ela foi-se, foi-se mas deixou saudades.

Saudades leva-as o vento, haja tempo e aparecerá quem as faça esquecer. Para ser franco já nem me lembro do que almocei.

Palavra.

Palavra puxa palavra desatámos aos berros, Bela lhe chamavam a ela e, se não tinha as mamas da Bárbara das orais tinha uns olhos flamejantes um corpo caliente e uma língua viperina, porque de nome era Idalina, de apelidos imorais.

A Idalina viperina flamejante e caliente esquecia-a eu cada matina em que, persistente, pegava na mota e ía desentupir as narinas off the road … por campos e eucaliptais.

Dei com eles abraçados num langor amodorrado. 

Claro que fingi nem os ter visto nisto naquilo e coiso e tal e juro que me calhou como confissão natural das pautas de noves e dezes e onzes e notas tais de que eu não passava afinal e trama em que ela lavrava e portanto se alcandorava aos dezassetes e dezoitos, pudera, faziam oitos, e opino e imagino nem sei que mais, mas imaginais vossas excelências o que, escondidinhos no bosque…

Nem mais um dia, escondi isto trinta anos, mas já não suporto enganos...

           ... Ele, foi meu professor, foi ministro, foi um poço de iniquidades, e olha p’ra isto ó Evaristo !