Ela entrou quando eu erguia a bica, vinha
despenteada, melhor, desgrenhada, fralda da camisa por fora das calças,
amarrotadas e, claro, não fui o único a olhar, toda a gente a mirou
de alto a baixo…
É evidente que, quando o Rui se abarbatou com a
professora de português, ou ela com ele melhor dizendo, o burburinho estalou na
escola e depressa se espraiou à cidade. A beleza da professora Marina já a
trazia nas bocas do mundo por tudo quanto era café pastelaria padaria talho ou
mercearia, um espírito jovem aberto e cosmopolita como o dela não poderia
jamais medrar numa cidade de província, e as más línguas davam azo ao que
agora designamos por assédio de menores.
… De alto a baixo percorri eu a pauta com os olhos
esperançados numa hipótese que julgava bem remota, que ela tivesse passado
depois de uma oral daquelas. Para meu espanto passou ! E mais “espautado”
fiquei quando vi a nota com que passara ! Eu a tudo respondera mais ou
menos a contento e sacara um onze suado, ela, que passara o tempo a gaguejar
sem acertar deleitava-se ! Um catorze !
Rui era um latagão, menor, é certo, devia andar pelos quinze ou desasseis, mas um latagão a cuja beleza terá sucumbido a
alfacinha que se escondia na libertina Marina, toda ela hormonas aos saltos que
nem pipocas num tacho, e a desgraça deu-se por artes e graça de Deus, temos que
o admitir, pois só o Senhor poderia ter feito com que os caminhos daqueles dois
resultassem numa rota de colisão.
Um catorze… aquilo não era normal, nem normal fora a
passagem dela do primeiro para o terceiro examinador do júri, algo se passara
ali diante dos meus olhos que eu não entendera. Corri, logo que deram as orais
por terminadas para o cesto dos papéis da sala, o papelinho que na mesa andara
de mão em mão jazia amarrotado, desenrolei-o atabalhoada e apressadamente, e
pasmei :
- “quando chegar a vez dela passa-me a loura das
mamas grandes“, sic…
Embatuquei.
Se de tudo isto agora me lembro é porque o S.
Martinho se aproxima arrastando consigo a infinita tristeza que nesta quadra
sempre me invade. Longe vão os anos em que a malta, e entre a malta esquecida relembro em especial o Xico Grou
e o Gilberto Teigão, ceifados ao nosso convívio, um numa picada da Guiné, o outro num acidente no Alentejo, quando eu sempre pensara que num confronto a céu aberto com aqueles que de Angola hoje nos põem em sentido.
Ainda os lembro a todos como se hoje fosse, o Xico Grou de
permanentes ramelas nos olhos, tinha uma qualquer irritação crónica nas
pálpebras, de risadas fortes, grossas, acelerando uma Sachs Lebre branca que
volta não volta surripiava ao velho. O Teigão arvorando feições robustas, baixo e
entroncado, e o mesmo sorriso fácil que ainda hoje vejo na face da irmã
Margarida cada vez que a olho. Foi o primeiro de nós a ter carta de condução, o
que o tornava invejado e admirado, e também ele de quando em
vez aparecia com o carro do velhote.
Eu devia andar pelos doze ou treze anos, catorze no
máximo, e qualquer deles não teria mais que dois ou três além dos meus, todos no
secundário da escola de Stª. Clara.
Embatuquei porque lembrei o longínquo dia em que se
me acabou a mama. Num recanto da livraria acumulavam-se os livros de banda
desenhada, Capitão Marvel, Flash Gordon, Zorro, Tio Patinhas, Pato Donald,
Pateta, Mandrake, Cisco Kid, Tintin, Fantasma, o Mundo de Aventuras, a coleção Seis Balas, todos. A malta chegava-se ali,
os de trás tapavam os da frente que por sua vez surripiavam as revistas a
granel. O senhor Cabeça, que bem estranhava o sumiço que elas levavam, sem
contraponto na caixa registadora, ficou à coca.
Virou-me num repelão, num repente levantou-me as abas
do quispo e os braços, as revistas caíram no chão ao mesmo tempo que na minha
cara um valente estaladão. Fugi dali a correr, envergonhado, e nunca mais fui
capaz de roubar nada. Até hoje…
Juntávamo-nos aos magotes no recreio dessa velha
escola, o Fernando Maudslay contando anedotas, o maralhal apinhado nas
escadarias do ginásio em redor dele, o Mendes (alto, forte, de Montoito, e que
nunca mais na vida vi) permanentemente interrompendo-o e o coro calando-o num
vozeirão crítico, enquanto a vinte metros o Neves (sim o tal que passados nem
meia dúzia de anos se enforcou e cuja irmã, que chegou a casar com o
“Vasculho”, se enforcaria anos depois) mas dizia eu, o Neves acelerava a sua
Flandria azul numa competição ensurdecedora com o Leitão, numa Pusch amarela e
por aqueles dias alvo da cobiça de todos. O José Luís Pacheco esse agarrava-se ao saco
das marmitas do almoço não fosse algum mais brincalhão entornar-lho.
Jogava-se no pátio e olhavam-se as garinas na alta
varanda da escola, os mestres Brito e Rui sempre por ali aparando os excessos e
o padre Alegria dando sermões e distribuindo chapadões por dá cá aquela palha e
por tudo e por nada que era como nos convencia e levava ao carreiro.
Questões de fé.
Eram outros os tempos, em que o Raul e o Couvinha, o
outro, que ou ao portão da escola para os rapazes e dentro do ateliê de mestre
Paulino, e já nem sei ao certo se divago ou se o ateliê era mesmo ali à rua do Alfeirão, ou então ia tudo de
cambalacho para a FNAT, brincar e jogar que era o que melhor sabíamos e fazíamos.
Eram como disse tempos em que esses meninos já nos
deslumbravam com os seus desenhos psicadélicos, o Arrais esse é que só aviões,
e o Espada, já muito assumido e ainda mais responsável mas sempre atazanando quem lhe chamasse Zé Galo.
Até hoje. Disse eu um dia. Durou apesar de tudo até
hoje. Estava farto dos ciúmes parvos, inconsequentes e da inveja tola em que ela
se afogava, da pretensa propriedade que parecia ter sobre mim. Eu não podia
cagar fora do penico, e o penico era bem pequeno. Foi-se. Foi-se desta para
melhor. Nem queiram saber como me sinto aliviado.
Foi-se. Diria que exagerou em meter a foice em seara
alheia. Cultivo a individualidade com o rigor de um boticário encerrado na sua
capelinha e, se me pisam os calos, reajo pior que o pior ácido ou reagente.
A gente cá somos assim.
Não sou único. Não, não sou o único. Alguns de nós
são assim.
O 25 de Abril havia de rebentar, mas não antes que
uns na Holanda, outros na França, e até no México calculem !
Claro que a vida não parou, mas não seria a mesma sem
eles e os resquícios que cada um plantou.
Não recordo cada uma das trezentas e setenta e duas
anedotas que o Fernando Maudslay contou numa manhã e de seguida, mas já não esqueço o
seu ar feliz, os seus ares felizes digo, quando ele e a Tininha atravessavam a
Praça do Giraldo aos beijinhos, num namoro que todos teriam achado mais
inconcebível que o da professora Carina e do seu aluno Rui Linhan e que acabou, adivinhem, como acabavam todos os contos de fadas antes do 25 de Abril.
Muito antes da ciência ter descoberto hormonas e
feromonas já eu as sentia e via pular diante de mim bailando e encantando.
Vem aí o S. Martinho, hei-de lembrar com saudade o
Xico Grou e o Teigão, o Neves, e tutti quanti em mim deixaram marcas, a Lúcia,
o Palma, a Adelina, o Rosmaninho, a Matilde, o Fadista, a Teresa, a Conceição, o Zé Manel cheiroso, o
Fan Fan, o Valverde e o Paitio.
Assim ou assado. Tanto faz. Para o que é já basta
assim. Antes assim que que mal acompanhado. Ela foi-se, foi-se mas deixou
saudades.
Saudades leva-as o vento, haja tempo e aparecerá quem
as faça esquecer. Para ser franco já nem me lembro do que almocei.
Palavra.
Palavra puxa palavra desatámos aos berros, Bela lhe
chamavam a ela e, se não tinha as mamas da Bárbara das orais tinha uns olhos
flamejantes um corpo caliente e uma língua viperina, porque de nome era
Idalina, de apelidos imorais.
A Idalina viperina flamejante e caliente esquecia-a
eu cada matina em que, persistente, pegava na mota e ía desentupir as narinas
off the road … por campos e eucaliptais.
Dei com eles
abraçados num langor amodorrado.
Claro que fingi nem os ter visto nisto naquilo e coiso e tal e juro que me calhou como confissão natural das pautas de noves e dezes e onzes e notas tais de que eu não passava afinal e trama em que ela lavrava e portanto se alcandorava aos dezassetes e dezoitos, pudera, faziam oitos, e opino e imagino nem sei que mais, mas imaginais vossas excelências o que, escondidinhos no bosque…
Claro que fingi nem os ter visto nisto naquilo e coiso e tal e juro que me calhou como confissão natural das pautas de noves e dezes e onzes e notas tais de que eu não passava afinal e trama em que ela lavrava e portanto se alcandorava aos dezassetes e dezoitos, pudera, faziam oitos, e opino e imagino nem sei que mais, mas imaginais vossas excelências o que, escondidinhos no bosque…
Nem mais um dia, escondi isto trinta anos, mas já não
suporto enganos...
... Ele, foi meu professor, foi ministro, foi um poço de iniquidades, e olha p’ra isto ó Evaristo !
... Ele, foi meu professor, foi ministro, foi um poço de iniquidades, e olha p’ra isto ó Evaristo !