Claro !
É Ela !
Era trapezista no circo Shen
!
Mas como é que demorei a
reconhecê-la ?
Está tão diferente !
Foi isso.
Não que não continue linda,
entendam-me, talvez até mais linda agora mulher madura, as feições melhor
definidas, uma beleza natural e muito longe do excesso de maquilhagem com que
subia aos trapézios.
Isso e o ter a cara
permanentemente escondida atrás de uns óculos de sol enormes ludibriaram-me
durante algum tempo, até àquela foto sorrindo em que a comissura dos lábios me
chamou a atenção.
Era ela. Tinha que ser ela. Quantas vezes no passado lhe
mordiscara aquela comissura quando, perdidos um pelo outro, nas tardes sem
matiné e sem treinos nos espojávamos na roulotte dos bastidores, perdidos de
loucos, perdidos de paixão, perdidos por cem, perdidos por mil...
Quantas vezes ? Nem já imagino
quantas. Muitas. E depois, repentinamente
desaparecera, deixando-me tal mágoa e crise no âmago que custei a debelá-la. Ainda hoje sinto horror a
tudo que seja cutelaria, a qualquer uma por mais pequena que seja, mesmo a de cozinha. Foi trauma ou feitiço que se
apoderou de mim.
Revivo quando sustinha a
respiração e até o olhar, temente que o mínimo movimento desviasse a
trajectória certeira daquela dúzia de facas uma só que fosse e que ele, de
olhos vendados e surdo ao clamor assustado da multidão nas bancadas, atirava certeiro, infalível, à roda louca em que tu, que te não limitavas aos trapézios, te
deixaras prender pelos pulsos e tornozelos desafiando a lei das probabilidades
e o bom senso, fazendo-me suar, mão na boca, aflito, até que o girar da roda
parasse e te soltasses sorridente para, numa vénia estudada, agradeceres à
chusma a suspensão do respirar que te permitira superior concentração e arrojo
e, dissimuladamente me atirasses com as pontas dos dedos um beijo. Só então me
atrevendo a limpar o suor da testa e a abandonar as cortinas do camarim onde
embevecido me ocultava p'ra te olhar durante uns deslumbrantes cinco anos, todas
as noites exactamente pelas vinte e duas e trinta e também aos sábados e
domingos, meticulosamente às dezoito e quarenta e cinco. Jamais esquecerei.
Sim, recordo como hoje
aquela tarde em que, respondendo a um anúncio me apresentei como candidato a
tratador de tigres e leões, vendo-me antecipadamente como um famoso domador e
sim, o lugar foi meu e admitido logo no dia seguinte, o que fez com que me
exaltasse de tal modo que logo ali dei início à celebração do novo mister,
antevendo uma carreira coroada de sucessos e glória. Tomei então consciência de
quanto tinha pesado e sido preponderante a minha experiência anterior, de que
estava farto e há muito abjurara, especialmente saturado do oficio de magarefe
carniceiro no talho da Manutenção Militar que, por ignorância, abraçara aos
dezassete anos de idade.
Hoje tenho a certeza, teres
sido tu e os teus superlativos elogios à minha destreza e rapidez a esquartejar
bodes velhos, badanas, burros mancos e tudo quanto me traziam afim de alimentar
os tigres e leões que conquistaste a minha atenção primeiro, a devoção depois e esta assolapada paixão que então desassombradamente me fizeste viver desde esse primeiro momento de retoiça quanto o desaforo e a coragem com que, a trinta metros
de altura, saltavas de um trapézio para outro, olhos vendados, as lantejoulas
do fato cuspindo reflexos debaixo dos holofotes rasgando a escuridão e o
silêncio, para no fim nem esperares pelas palmas, e nos sumirmos enrolados por
trás dos panejões, tu refulgindo tal qual um peixe de escamas doiradas
chispando no azul marinho de um mar solarengo, eu de torso salpicado por
goticulas de sangue fresco do jantar das feras e que, excitada, lambias e
sorvias sofregamente como se a salvação se encontrasse na perdição a que nos
entregávamos e eu fosse a tua redenção.
Eras tu. Agora já não tenho
qualquer dúvida. És tu, a Guidinha, a quem jamais perdoei ter fugido com o
atirador de facas e que agora, perturbado pela tua beleza e descoberta, melhor
dizer redescoberta, me vejo incapaz de te odiar como odiei nestes últimos dez anos,
vividos como um silício em permanente azedume, ora toldado ante a tua imagem e
perfeição, ora esperançado numa anunciação de paz celestial que me redimisse do
inferno a que condenaras o meu viver, porque sim, és tu, ou tu ou tão sublime
encarnação que bastaram dois segundos para que todo eu tivesse mudado e me
sinta de novo apaixonado como na primeira hora, buscando as camisolas de manga
cava que juraria ter guardado nesta gaveta e afinal nem nesta nem nas outras,
recuso-me assumir tê-las sumido na raiva que de mim se apoderou quando me
trocaste por aquele atirador das facas, aquele reles e sonso faquir,
abandonando-me cego de fúria e de ódio.
Naquele dia numa perseguição
inconsequente, procurei-o de cutelo na mão, sorte a dele não o ter encontrado
ou as feras teriam tido nessa noite rancho melhorado. Não imaginas Margarida do
que era capaz desvairado por tamanho choque e alucinado por tamanhos ciúmes, sorte tua
também não ter atinado com o teu paradeiro naquele dia minha grande puta, minha cabra,
meu amor, minha querida, minha vida, perdoa-me, não sabia o que fazia.
Calmo como estou agora,
reconsiderando ante ti, penitencio-me roído de culpas e remorsos, e juro-te meu
amor, uma só palavra tua e a minha alma será salva, estala os dedos e num ápice
ter-me-às arrojado a teus pés, coberto de sangue a fim de saciares a tua sede,
mas deixa que te diga meu amor, minha paixão, minha kerida, minha vida, não
tentes fazer-me o mesmo porque não terei contemplações, afianço-te que
submergirás ao meu abraço e a minha mão enrolará em duas voltas esses lindos
cabelos em que tantas vezes e tão loucamente me enleei, e no primeiro golpe
atirarei ao teu pescoço, garanto-te que ainda manejo o cutelo com a destreza de
antanho e te degolarei à primeira, sem arrependimento nem dor, sabes que seria
incapaz de te magoar ou fazer sofrer minha kerida, a minha paixão é a mesma
coração, somente o meu amor por ti se agigantou.
Por isso minha querida, meu
amor, nem tentes, nem sequer penses, nem te atrevas a voltar a abandonar-me meu
sonho. Lembras-te do Pasha e do Zulu sempre com o pelo tão luzidio Guidinha ?
Lembras-te como só sossegavam à hora de serem alimentados quando era eu a
fazê-lo amor ? Lembras-te do palhaço Rikinho que desapareceu de um dia para o
outro e nunca mais voltou nem foi visto em lado algum coração ? Recordas o
engolidor de espadas ucraniano que nem o arsenal de punhais levou e a quem
nunca mais ninguém conseguiu pôr a vista e cima minha doce paixão ?
Não te quero perder de novo
minha queridinha, estive dez anos sem ti e não quero voltar a perder-te meu
amor, espero sinceramente que o teu regresso tenha sido por mim meu
sonho. Aguardarei mais uns dias
Guidinha, vou vigiar-te de perto, vou rever polir e afiar a cutelaria, estou um
pouco destreinado é certo, mas ainda serei capaz de dar conta de qualquer
recado em meia hora e continuo a ser o melhor com o cutelo.
Adoro-te filha, amo-te minha
filhinha, e Deus é grande, pensa bem amor, faz por ti Margarida.....