Enquanto
mirei e remirei as páginas da revista o Sezídio confirmou-me que sim, tinham
reduzido o tamanho das letras, e sem óculos já lá não iria. A Dolores
ofereceu-me prontamente os dela mas recusei, um homem deve resguardar o
orgulho, fosse eu visto com aquelas armações cor de rosa cheias de brilhantes e
teria pela frente dois ou mais anos de luta para restabelecer a auto-estima.
Maldissemos o economicismo exagerado dos
nossos dias e desenterrámos Gutenberg (1398-1468) e o dia em que colocou os
olhos numa velha prensa de esmagar uvas, pois não lhe terá ocorrido o rol de
transformações que a sua atitude induziria e o mundo sofreria mor dessa sua
idéia maluca. A prova ? Ali estava eu enrascado e lendo só os títulos…
A
Cármen aproveitou e desatou a língua, que até aí os livros, lindos mas raros,
manuscritos, iluminados ou animados por belas ilustrações, eram coisa rara de
se ver e fora do alcance do comum mortal. Ele, Gutenberg, fora claramente o
percursor, ou seja, foi quem no-lo deu, ou libertou, todo este mar de
informação em que soçobramos. Disse ela aproveitando o ensejo, era
bibliotecária na universidade e passavam-se semanas sem que lhe ouvíssemos um
suspiro que fosse.
Criou
os tipos e os caracteres, alinhou-os, entalou-os e pressionou-os contra uma
folha de papel, espremeu-os com a velha prensa do lagar das uvas e obteve num
só mês, mais livros do que aqueles que os monges tinham copiado nos últimos
duzentos anos. Afirmou ela abrindo os braços solenemente e sorrindo. Tinha bons
dentes e ninguém diria já ter festejado os cinquenta.
Logo
o Couto, que trabalhava numa gráfica nos adiantou que aquela iluminada ideia
acarretara um mar doutros problemas, que a racionalização do tamanho da folha
de papel e o seu aproveitamento ditaram letras cada vez menores, que os padres
e frades de cada paróquia, por norma gente entradota, sofreram as primeiras
vicissitudes às mãos da miopia. Contudo, atalhou o Neves, de pronto e como os
de Olhão, os vidreiros da ilha de Murano, em Veneza, há muito conhecedores das
propriedades das lentes logo ali viram, disseminado entre os milhares de
religiosos e velhos da Europa, um mercado nada despiciendo e vá de produzirem
em profusão umas meias esferas de vidro, a modos de meias lentes, que
deslocadas ou arrastadas por cima das pequenas letrinhas as ampliavam até
atingirem a dimensão de um rato fareleiro se necessário fosse. Uma espécie de
lupa primitiva e sem cabo.
O
Francisco atalhou, aflito e temendo que se lhe acabasse o tempo, quase sem voz,
quase incapaz de respirar, vá lá, adivinhem, sim, trabalha aqui no bairro, na
Óptica Marilux, atalhou ele que, apercebendo-se desse facto, os italianos,
golpistas e oportunistas desde a Roma antiga, como sempre, aproveitaram para
inventar ou criar os primeiros óculos, industria que ainda hoje dominam a nível
mundial, confirmando que as descobertas são como as cerejas ou como as
conversas, atrás de uma vem sempre outra melhor ainda.
- É
ou não é Rui ?
E
puxando da bomba da asma inspirou fundo, fechou os olhos e recostou-se. Bem,
o Rui, tal como eu, pasmava de ouvi-los.
Terá
sido pouco tempo depois que um holandês, melhor será dizer flamengo (nessa
altura ainda não havia Holanda, confirmou o Bastos) um flamengo experiente
fabricante de lentes, apresentou a descoberta casual, acidental ou estudada,
desculpem mas não sei explicar-vos os pormenores, do primeiro microscópio de
que reza a história. Na verdade sei somente que se tratou de uma casa reputada
no ramo das lentes havia muitos anos, e onde, colocando uma lente à frente de
outra, fazendo-as convergir ou divergir, no essencial constataram o aumento
exponencial das coisas mais ínfimas, mostrando na ocasião ao mundo um outro
mundo, micro, até aí ocultado ao ser humano que pela primeira vez viu e se
espantou com o universo das bactérias e micróbios. E nisto olhou com olhos de
carneiro mal morto a Cármen, como que pedindo a anuência dela ao que dissera.
Cá para mim não restavam dúvidas, aqueles dois andavam enrolados era o que
era. Vendo-a sorrir o Bastos continuou.
Desconheço
ter este flamengo alinhado as lentes de modo convexo côncavo, convexo convexo,
côncavo convexo ou côncavo côncavo, sei que as alinhou e que ganhou com isso
rios de dinheiro. Todavia decerto não foi esse o incentivo que, anos mais
tarde, levou um outro italiano a dar-lhes alinhamento tão diferente que longe
de ter visto bactérias lobrigou Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno, e nem
imagino que mais terá conseguido ! Imaginem as voltas que a partir daqui não
terão dado a óptica a biologia, a microbiologia e a astronomia ! Ah ! E também
o fabrico de papel.
- E
evidentemente as tintas os lápis e as canetas borrachas etc. etc. e tal …
Atirei eu que ainda tinha que cuidar de comprar pão e com pena minha teria que
ir-me embora, de modo que balbuciei, como que introduzindo o fim à conversa:
-
Uma mente preparada vê antecipadamente o passo seguinte e desbrava o futuro
dando que fazer ao presente pessoal. Improvisar é aqui, neste cantinho à beira
mar plantado. Por isso mesmo, nessa sequência lógica outros surgiram posteriormente nessa esteira, Nicolau Copérnico por exemplo, (1473-1543), cuja
teoria lançou com base em observações suas e em muito matutar de cabeça que
os descobrimentos portugueses despoletaram por todo o mundo, e mundo nessa
altura era quase só a Europa, mas sem provas que fundamentassem o seu modelo do
universo. (Heliocêntrico, teorizava o Sol no centro do sistema solar).
Copérnico somente aprofundou essa visão como a mais susceptível de verdadeira se comparada com o clássico modelo Ptolemaico que defendia o modelo Geocêntrico. (A terra no centro). Quisesse ele mais e teria que fazer como os portugueses, esses sim, mudavam o mundo do avesso mas davam provas do que diziam com o seu experiencialismo. Foi ou não foi rapaziada ?
Copérnico somente aprofundou essa visão como a mais susceptível de verdadeira se comparada com o clássico modelo Ptolemaico que defendia o modelo Geocêntrico. (A terra no centro). Quisesse ele mais e teria que fazer como os portugueses, esses sim, mudavam o mundo do avesso mas davam provas do que diziam com o seu experiencialismo. Foi ou não foi rapaziada ?
-
Tinhas que vir ao de cima com a tua mania que és esperto e sabichão. Bem malta
vou almoçar, ou vamos almoçar que pelo menos eu não estou para aturar o Umberto,
este gajo é uma seca.
- E
não é que se foram todos ?