terça-feira, 23 de dezembro de 2014

216 - NUMA ESPLANADA DA DINAMARCA... *


O sol arrancava, apesar do frio intenso, reverberações e reflexos das mesas polidas da esplanada, e a Mara, enterrada num gorro que lhe dava até aos pés batia as mãos uma na outra pra esconjurar o maligno. Não era hábito vê-la ali tão cedo, escondia os olhos nuns óculos maiores que ela e sorria optimista, como sempre.

- Olá Mara ! tu já por aqui ? E a tua dor de dentes ?

- Olá Umberto bom dia, estou melhor, mas nem dormi por isso me vês aqui tão cedo e contra o que é o meu hábito. Já agora explica-me lá uma coisa que disseste ontem, aquilo de na Europa os nossos descobrimentos terem despoletado paixões.

- Eheheh ! Fizeste-me rir, por momentos pensei outra coisa, essa é fácil, gosto que tenhas estado atenta, então tu pensas que na Europa quer o Iluminismo quer a Revolução Industrial aconteceram por acaso ? E por acaso sabias que na Europa dos séculos XVI em diante, em especial no séc. XVII em vez de dizerem “bem feito” diziam “feito à portuguesa” ? O Iluminismo tem uma  costela nossa...

E era verdade, aquelas nossas façanhas por todos os mares e por todo o mundo estavam a revolucionar muito mais que a cartografia, também a zoologia, a medicina, a geologia, a botânica, o magnetismo, as correntes, os ventos, em cada dia derrubávamos tabus, preconceitos e idéias feitas  desde a antiguidade, e comprovávamo-lo ! De bússola numa mão e a experiencia noutra !

A descoberta do Telescópio, que Galileu Galilei (1564 – 1642) na esteira do desenvolvimento da óptica e do microscópio aperfeiçoou, foi fruto das ideias iluministas que exigiam então que tudo fosse comprovado e feito com pés e cabeça, “feito à maneira portuguesa”, repudiando tudo que era saber escolástico e não tivesse sido submetido ao experiencialismo de que os portugueses se arrogavam. Essa opção de Galileu permitir-lhe-ia desenvolver os primeiros estudos das leis dos corpos celestes, (comprovados, isto é submetidos a prova e não meramente pensados, a prova que faltara a Copérnico) estudos de que enunciou o princípio fundador cujas ideias se repercutiram posteriormente na mecânica de Newton.

- Pois, realmente tem lógica, nunca pensamos nisso sabes Umberto, nunca idealizamos os cenário em que as coisas aconteceram. La dynamique de choses.

- É a realidade Mara, por essa altura na Europa o que não pudesse ser comprovado experimentalmente não tinha futuro, daí o aparecimento de microscópios e telescópios e tantos outros instrumentos de precisão, que medissem, comprovassem, atestassem, permitissem ver, pesar, ir mais longe com o pensamento…

Isaac Newton (1643 – 1727) não surgiu do nada, lera Copérnico (1473-1543, coisa impossível sem ter existido Gutenberg) e Johannes Kepler (1571-1630)  e formulou a lei da gravitação universal e as três leis que fundamentaram a sua mecânica celestial clássica. Newton avalizou-se tendo demonstrado a consistência entre o sistema por si idealizado e as anteriores leis formuladas por  Kepler (1571-1630), que também era amante dos telescópios e que por eles firmou digamos que as primeiras leis de mecânica celeste e do movimento dos planetas. Observador atento foi até o primeiro a demonstrar que os movimentos de objectos, tanto na Terra como noutros corpos celestes são governados pelo mesmo conjunto de leis naturais. As leis da Física, essenciais para percebermos as órbitas, a atracção universal e a gravidade.  

Claro que tudo isto, todo este saber, não caiu do céu, e se a idéia de mundo antes dos portugueses era muito limitada, até se acreditava ser ele plano, os nossos navegadores foram muito além dos fenícios, foram mais longe que a rota da seda, deram ao mundo uma outra noção dele mesmo, maior, diferente, e sobretudo despoletaram novas ideias e perspectivas, novos métodos, novos modelos e novas descobertas. Algumas descobertas se deverão decerto a causas fortuitas, casualidade ou sorte, outras somente com muito trabalho foram paridas, caso por exemplo de Thomas Edison (1847 – 1931) que durante uma vida registrou 2.332 patentes !

- Não é o teu sogro que é engenheiro Mara ? E terão nascido por geração espontânea os engenheiros ? Ou terá sido todo este movimento que despertámos que levou à procura de soluções, que reuniu o artesãos mais habilitados e com mais engenho ? Estou a ver latoeiros, carpinteiros, ferreiros, todos armados em engenhocas, primeiro de roda de uma panela fervendo a que salta a tampa, depois em redor de uma máquina a vapor, mais tarde transmitindo a experiência aos aprendizes, posteriormente em escolas, liceus, universidades, institutos, tornando-se eles mesmo modo de vida. Foram mais longe que Aristóteles (384-322AC) e Leonardo da Vinci (145-1519) mesmo a brincar poderão ter imaginado não achas ?

Thomas Edison o “pai da lâmpada” era um engenhocas, não a descobriu, comprou uma patente e melhorou-a, tornou de gabarito mundial uma invenção pela qual ninguém dava dois tostões furados nem durava duas horas, Edison melhorou-a e fê-la durar 1200 horas !  Mas o material cuja incandescência era o ideal para o filamento brilhante e duradouro obrigou-o a repetir a experiência 2.678 vezes até atingir a tentativa vencedora ! Realmente a sorte protege e premeia os audazes, e os trabalhadores e persistentes acho eu.

Edison, a quem devemos tantas descobertas, não foi um inventor prolífico, mas tendo-se apercebido cedo da vantagem que era (em especial materialmente) o encontrar soluções novas para problemas velhos explorou-a. Foi o primeiro instigador, em moldes novos, do laboratório de investigação científica moderno, que fez produzir e render, a cujos técnicos e engenheiros foram dados problemas concretos a fim de lhes descobrirem soluções práticas virtuosas, económicas e fáceis de aplicar ou usar.

Mas atenção Mara, acrescente-se que naquelas terras jamais se empurraram os problemas com a barriga, muito menos para as calendas gregas ou para debaixo do tapete. Parece-me que, ao contrário do que aqui se passa, noutras partes do mundo não é comum esperar 30 ou 40 anos para se resolver um problema ou suprir uma necessidade. Que te parece ?

Curiosamente o português, regra geral, vê-se a si mesmo e ao país em tons superlativos, nunca se sentindo acossado porque nem conhece os outros, os outros países, os outros povos, as outras cidades, outros mundos, outras realidades. Vive e convive bem com as suas curtas, limitadas e peculiares certezas, as quais jamais viu, vê ou verá como uma enxúndia, antes e sempre como o melhor dos mundos, ao qual nem o reino da Dinamarca ** alguma vez se comparará.

Até o nosso modo de ensinar e aprender história, até de a estudar, é compartimentado, mais baseado em factos e datas que nas suas causalidades e relações ou dependências, o que nos limita, é o chamado estudo diacrónico. Há que perceber causas e efeitos, inter-relações e interdependências, há que saber em simultâneo o que fazia ou acontecia no outro lado do mundo e acreditar que tal nos surpreenderá. Este é o modelo de estudo sincrónico, de sincronismo, em sintonia, em simultaneidade.

Para aprender temos que perceber que mecanismos, que condicionalismos, que determinismos permitiram avançar, evoluir ou recuar, regredir, pois assim será possível comparar, avaliar a justeza da nossa visão do mundo e qual a sua implantação nele, melhor que isso, qual ou quais benefícios dela resultaram. O mundo é injusto, pois é. Mas o mundo não pára, nunca parou, nem esperará por nós, teremos que correr para o acompanhar.

A expulsão dos judeus em 1500 (desde a reconquista e em especial com D. Manuel I) e dos jesuítas em 1760 (D. José I e Marquês de Pombal) cavaram dois buracos negros na nossa cultura. Somente muitos anos mais tarde reformas com algum significado foram tomadas, de modo incipiente e (in) discutivelmente muito contestadas as lançadas por Salazar durante os 40 anos do seu reinado. Veiga Simão quando ministro de Marcelo Caetano em boa hora e meritóriamente reformou o ensino em 1973, tendo sido parcialmente travado com o eclodir do 25 de Abril. Infelizmente, e mesmo que incompleta, nenhuma outra reforma viria posteriormente a alcançar o mérito da sua.

Mas Thomas Edison sobre quem me debruçava não foi um fenómeno isolado. Como ele muitos em todo o mundo cooperaram e beneficiaram de trabalho conjunto. Henry Ford por exemplo, não foi o inventor da linha de montagem, antes o primeiro utilizador prático das teorias de gestão de Frederick Taylor (o mentor do Taylorismo) o pai da organização do trabalho que se consubstanciaria na célebre cadeia de montagem.

Henry Ford foi perdulário a pagar aos seus colaboradores (a par de outras atitudes muito criticáveis), Edison chegou mesmo a pagar-lhes os prémios em acções da sua própria companhia ! Quanto mais trabalhassem e rendessem maior benefício ou proveito retirariam do esforço do seu próprio trabalho. Além de que se criavam interdependências que a todos beneficiavam, Henry Ford tinha entre os seus operários (bem pagos) muitos clientes dos modelos que eles próprios fabricavam, contribuindo para o consumo da produção e o desenvolvimento da economia e do bem-estar de todos.

Aposto já terem percebido que só trouxe à colação todas estas histórias para que concluam que em Portugal se faz tudo ao contrário, com quem nada faz a beneficiar de quem trabalha, com quem menos faz a dificultar, quando não a impedir os que desejam trabalhar, de evoluir, e produzir.

Ao contrário dos que tudo fazem para criar valor, somos excelentes a destrui-lo. É olhar os jornais e ver os exemplos destes dias, uma dúzia de oportunistas sumindo pelo cano o trabalho de décadas de todo um povo. Sem que ninguém se ofenda. A desresponsabilização e a irresponsabilidade estão dando frutos em grande. E que frutos ! Haja calma que ainda há algumas coisas de pé, contudo temo que a nossa peculiar ignorância deite todos a perder. Já demos novos mundos ao mundo sim, mas foi há quinhentos anos e com outra gente, outra gente que por lá ficou, por cá ficaram os invejosos, os videirinhos e oportunistas, os parasitas e todos os grunhos que melhor ou pior irão continuando a fazer estragos…

Até ver… porque o português não é, está, ou parece, pois o ser o estar e o parecer na cultura portuguesa são modos intrínsecos mas visceralmente distintos de a viver…

* Atenção; este texto vem na sequência do anterior, e como tal deve ser entendido.
** Alusão à peça trágico satírica de William Shakespeare, Hamlet 

E
Esculturas de João Concha - Évora