Não
era a fé que me movia, nunca a tive, aliás, peço desculpa, uma vez houve em que
me vi tão atrapalhado que supliquei perdão por todas as minhas faltas e roguei
pela minha salvação daquele inferno, tudo prometi e todo esse empenho ficou por
cumprir. Sou portanto devedor, devedor de mim mesmo, que me obriguei num
momento de aflição para depois aligeirar o fardo, quando sobre as costas me não
pesavam já os receios, os medos, os terrores.
Não
era o caso agora, agora tratava-se de cumprir um mandamento tão velho quanto o
mundo, tratava-se de dobrar-me sob o jugo de uma força maior que eu, de
soçobrar perante o instinto inato que protege as espécies e lhes garante
sobreviverem e multiplicarem-se.
Nesse
momento mágico, como um crente ante sacra imagem, entrei em transe e, mais que
a vergasta com que o desejo soe golpear-me nesse recolhimento, o corpo se me
verga sob o truísmo encantado da minha devoção,
digo-to
para que saibas desta fé em mim e me ofereças o linimento das águas desse
cálice que sedento busco, sequioso, na mira de abafar as tormentosas chamas que
me queimam e me não trazem nunca a quietude que desejo e só alcanço quando em
ti me dessedento.
Compreende
então que não suportando a angústia me ajoelhei ante ti numa penitência de
mártir, te abracei como um náufrago suspenso do salvador, arrastando-o na
espiral da morte, na vertigem dos abismos em que a redenção não é o meio mas o
fim último da submissão, do gesto e da catarse.
Por
isso te abri como a um sacrário, ávido de maravilhar-me no teu santo graal,
como quem sucumbe ao encanto duma odalisca, ao aroma adocicado das amêndoas, ao
sabor agridoce de travo suave dos pêssegos rosa, por isso me quedei como se
ante um cibório, não antevendo mas vivendo os prazeres do êxtase, vogando no
paraíso prometido por todos os profetas em todos os sonhos e em todas as vidas.
E
feliz sucumbo à minha voracidade, por ser aí que finalmente me perco e me
encontro, porque então, sim, só então sublimo a tentação que me arrastara,
sôfrego, ao âmago de ti, por em ti encontrar o carrasco e a salvação dos
tormentos em que me deleito e suplício, qual cilício e cura desta paixão que me
consome.
Somente
isso explica a profusão de beijos com que, enlouquecido, numa fúria aparente,
cubro o objecto da minha fé, da minha devoção, da minha entrega, ciente de ser
este paroxismo avassalador que simultaneamente me subjuga e liberta da
sensação, em mim somatizada, que me guia e me cega enquanto se não cumpre o
destino, a sina, o fado, e os lábios te tocam, a língua te procura, porque a
sede é tortura consumindo-me as entranhas.
Apazigua-me
esta dor o néctar dos deuses, ou d’uma flor, é vibrando que o procuro, e então,
num estremecimento, guloso, sorvo-o num estertor, alarvemente, esquecido do
tempo e do lugar, esquecido de mim precisamente quando eu um outro, quando e se
ousas derramar sobre mim essa taça, ou me obrigas, também tu já toldada, já
possuída da mesma fé, da mesma devoção, a beber do cálice a cicuta da vida, por
sentires e saberes que só a ressurreição nos limpa do pecado se por amor nele
mergulhámos.
Cega-se,
cega-se e só a mente em turbilhão nos acompanha, não guia, acompanha,
enquanto a língua tacteia o caminho, o cruzamento, enquanto a boca
clama, voraz, o veneno e a paz, o tudo e o nada …
E
antes que tudo termine caio a teus pés, prostrado, numa pausa redentora, porque
agora sim, estamos prontos, pois a noite é nossa e chegada a hora de nos
cumprirmos,